agosto 10, 2016

"Correcções" (2001)

Li primeiro “Liberdade” (2010) e o impacto foi tremendo, ao começar “Correcções” (2001) já sabia ao que vinha, ainda assim não deixei de me surpreender, parar e contemplar ao longo da leitura. Temos um padrão temático, a família média contemporânea e as interdependências com a sociedade, assim como um padrão estético, torrentes descritivas complexamente enredadas e surpreendentemente fluídas.


Franzen segue uma linha narrativa já explorada por outros autores americanos contemporâneos — David Foster Wallace, Don Delillo ou no cinema Jim Jarmusch, Hal Hartley ou Todd Solondz — que assentam o seu trabalho nos personagens, secundarizando o enredo, gerando o fio condutor a partir das pregas de cada uma das múltiplas histórias emanadas de cada personagem, necessitando assim de ir ao fundo de cada um, de os elaborar em profundidade e abrangência por forma a garantir elos de conexão.
“Well, I didn't really think in terms of plot. Does this book even have a plot? I thought more in terms of the story-character nexus. With each of the major characters and each of the large sections, I was striving for the classical unities of place, time, and action. I was trying to find simple problems, simple situations—man tries to prove to his wife that he's not depressed; fun-loving woman goes on luxury cruise with intermittently demented husband—and then inhabit them as fully as possible.” Franzen em entrevista à New Yorker, em 2001
O universo de Franzen é profundamente realista, e por isso não admira o nosso constante embate contra o espelho, conseguindo desta forma gerar simultaneamente reflexão e satisfação. No Goodreads podem ler-se várias críticas às pessoas de cada personagem como cheias de defeitos, incapazes de criar empatia com o leitor, mas Franzen não pretende romancear, está antes interessado em recriar e interpretar o mundo à sua volta, e nesse mundo não existem seres perfeitos, tal como não existem grandes linhas de história, apenas pessoas que vivem e fazem o melhor que podem em cada dia que passa. Inevitavelmente, e apesar do humor do autor ir salpicando de sátira, a viagem é profundamente melancólica, como não poderia deixar de ser sempre que nos pomos a pensar sobre as questões da condição humana, os “como's”, os “porquê's” e “para quê's”.

A chave de “Correcções” está em cada um dos leitores, posso dar-vos a minha mas abre apenas caminho para um dos imensos mundos possíveis construídos pelo confronto entre o texto e as experiências de vida de cada leitor. Subrepticiamente ao longo de todo o livro vão surgindo indícios que dão conta da necessidade de nos afirmarmos pelo que somos, de enfrentar o mundo de cabeça erguida e aceitar o que este nos propõe, sem medos nem estratégias de fuga (ex. drogas), de modo que as correções surgem naquilo que vamos fazendo ao longo da vida para corrigir o caminho, para não sair da forma que define aquilo que somos. É um trabalho contínuo que exige esforço, feito de avanços e recuos, de escolhas e decisões, esquecimentos e regressos ao passado, uma vontade interior que nos impele a seguir uma linha e a não divergir dela, corrigindo-a sempre que se desvia. A grande questão que Franzen deixa em aberto para nós é o porquê dessa necessidade, existem algumas tentativas de resposta, mas essas deixo-as para os leitores de Franzen.

Se o livro fosse apenas isto já seria muito bom, mas é mais, porque existe toda uma experiência estética que dificilmente se encontra na comum literatura e que obriga a revisitar os clássicos para se poder encontrar tamanho fôlego artístico. Desde logo por todo um trabalho de pesquisa que é feito em redor da criação de cada personagem, psicologicamente mas também em termos sociais com as implicações dos seus empregos, profissões, amigos e família. Franzen constrói literalmente um mundo a partir de ideias, capaz de se erguer nas nossas mentes como algo de próximo e facilmente reconhecível.

Por outro lado a densidade com que labora as ramificações de cada personagem, decorrendo do conteúdo, surge por via de um tipo de descrição verdadeiramente literária, e não cinemática como se foi tornando moda nos últimos anos. Ou seja, mais importante do que dar a ver é dar a sentir. Franzen não limita o seu discurso ao visível, trabalha como merecedores da mesma atenção o audível, assim como o gosto e o cheiro, e claro o palpável e mais complexo ainda o impalpável. Na sua leitura sentimos por vezes o bloqueio de não conseguir visualizar o que se vai descrevendo porque não é suposto ser visível mas sentido, e talvez seja em parte por isto que a leitura de Franzen é tão particular, tão capaz na sua expressividade.

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