agosto 24, 2016

"Rei Lear" (1605)

À terceira peça de Shakespeare, depois de "Hamlet" (1602) e "Macbeth" (1606), padrões começam a emergir e as minha ideias sobre a sua obra começam a ganhar consistência, das quais extraio duas grandes conclusões: uma sobre as qualidades dramáticas, e outra sobre as insuficiências do texto.

"King Lear and the Fool in the Storm" (1851) de William Dyce 

Shakespeare é considerado um dos maiores arautos das letras, sendo provavelmente o autor mais estudado nas Faculdades de Letras de todo o mundo. Uma das principais razões para esta adoração prende-se com a profundidade da análise psicológica realizada por Shakespeare sobre os seus personagens, ou seja a profundeza a que leva a dramatização das suas histórias. À distância de mais de 400 anos impressiona tanta clarividência, tanta mestria na desconstrução da natureza humana e sua remontagem enquanto histórias capazes de seduzir qualquer ser humano. A forma como o fez, na escrita, foi à data inovadora, já que Shakespeare não se coibia de criar novos termos para se expressar, mas seria suficiente? Ou seja, será suficiente ler Shakespeare para compreender Shakespeare?

Esta pergunta leva-me à minha segunda constatação sobre Shakespeare, da insuficiência do texto. Ou seja, à leitura da sua terceira peça, e concordando com as qualidades enquadradas acima, não posso deixar de questionar o modo como o texto falha, ou melhor, é insuficiente no garante da expressividade subjacente ao mesmo, funcionando mais como esboço, mero registo de ato cénico, e não obra final, completa. Não digo que a peça que lemos é guião, até porque lhe falta toda moldura descritiva de cenário e palco, mas pouco se destaca desse formato. Neste sentido, falta ao texto não apenas a capacidade para situar espacialmente o ambiente, mas mais importante do que isso, faltam duas componentes essenciais ao drama: a direção de atores e a performance.

Aliás, não raras vezes as resenhas feitas aos textos de Shakespeare incluem análises às diferentes encenações vistas do mesmo, o que reforça o que tento aqui estabelecer, de que quando apenas de frente ao texto, perdemos parte significativa da ideia expressiva do seu autor. É verdade que não podemos mais aceder à ideia total do autor, a encenação e sua performance são artes efémeras não passíveis de registo.

Por outro lado, também é verdade que podemos, enquanto leitores, dar vida à encenação nos bastidores do nosso consciente, embora isso não impeça a distância e fragilidade do texto, desde logo porque não foi com essa ideia que o texto foi criado, e este é o meu ponto fulcral. Ao contrário de Cervantes, Shakespeare não estava a tentar conversar com o leitor, mas antes a tentar impressionar o espectador.  O objetivo das suas linhas assentam na maquinação de cenas vivas — visuais, sonoras e atores —, é isso que podemos tentar ver, antecipar ao ler, mas ao fazê-lo damos connosco no isolamento da relação com o texto, ausentes de performers e público.

"Lear and Cordelia in Prison" (1779) de William Blake

Dito isto, quero dizer que “Rei Lear”, tal como “Hamlet” e “Macbeth”, impressiona, pelo modo como nos envolve, nos instiga a seguir a história, como nos aproxima e distancia dos diferentes personagens. Não me parece que se ganhe, entrando em atos de pura interpretação simbólica, como os realizados por alguns académicos, incluindo Freud. O texto é claro e fala da chegada a uma idade em que todo o ser humano se questiona sobre as suas faculdades, focando-se sobre os efeitos de legado e sucessão, algo que desde tempos imemoriais tem provocado guerras atrás de guerras, e ainda hoje é capaz de provocar as maiores cisões familiares, desde as que muito têm às que nada têm, denotando mais uma vez a centralidade dos textos de Shakespeare que o tem mantido sempre atual.

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