novembro 30, 2012

CONFIA, e a Imagem versus Texto

Está a decorrer a I Conferência Internacional em Ilustração e Animação em Ofir, organizada pelo IPCA, sob a direcção da Paula Tavares, Paul Wells e Pedro Mota Teixeira. Entretanto aproveitei o hiato de espera pelo jantar para escrever um pouco sobre as ideias que pulularam durante esta tarde pela conferência.


Ao final da tarde estive a presidir a uma mesa na qual pudemos discutir questões em redor das camâras virtuais, e o seu poder para se mostrar a si próprias. Ou seja, pegando no exemplo de abertura de Fight Club em que a câmara sai de dentro do cérebro de Edward Norton, para nos mostrar algo impossível com uma câmara real. Até que ponto neste campo as câmaras se estão a limitar a mostrar em vez de contar, era a questão lançada.

Imagem da sequência de abertura de Fight Club (1999)

O autor do texto perguntava até que ponto a mimeses deixa de se diferenciar da diegeses. Na mesa seguinte surgiu uma nova discussão que veio de encontro a esta lógica da diegeses e mimeses, e que nos falava sobre a diferença entre a ilustração e o texto, e o facto da ilustração conseguir comunicar ideias que o texto parece não estar apetrechado para fazer.
"A verbal metaphor, because it can be imagined differently by each reader, might not be strong enough to overcome established assumptions. However, actually seeing that metaphor creates a more concrete experience." (Susan M. Hagan)

É fácil pensar nos filmes da RSA Animate em que as ideias são transformadas em ilustrações para percebermos o quanto esta afirmação pode ser real. A facilidade com que acedemos ao conteúdo da comunicação quando esta ganha corpo visual. Por outro lado não posso deixar de confrontar isto com as ideias com que me tenho debatido recentemente e que vão num sentido contrário, ou talvez não, depende da abordagem. A minha ideia é de que a imagem por ser mais fácil de apreender se torna mais limitada na capacidade para comunicar sentidos mais complexos.


Veio isto a propósito de uma Ted X - The Mystery of Storytelling de Julian Friedmann na qual se defendia que o filme de Hollywood se tem vindo a tornar mais visual, e nesse sentido os seus filmes contêm sensivelmente apenas 2/3 do diálogo dos filmes Europeus. Este abaixamento do diálogo não é algo que surja do plano criativo, mas tem sido mais uma imposição mercantilista no sentido de tornar os filmes acessíveis em todo o planeta em termos línguisticos. Ora o que me debato, e lanço aqui a questão, é até que ponto o facto de tornar o filme mais visual e menos dialogado, se impôs como uma limitação gramatical da linguagem cinematográfica, que ao ficar impedido de usar o texto se viu incapaz de atingir camadas de sentido mais complexas, talvez só acessíveis pela linguagem. Sobre isto tenho discutido com as minhas colegas do projecto engageBook. O exemplo dado pela Ana Lúcia, é muito relevante,
“Quando alguém diz ou escreve Árvore. Todos aqueles que ouvem ou leem, visualizam na sua cabeça uma árvore diferente. Quando por outro lado se plasma a palavra numa imagem, todos na audiência veem mentalmente a mesma árvore.”
Assim temos que o texto, em vez de fechar uma ideia, de a limitar, abre-a muito mais. Neste sentido podemos dizer que o texto é pela sua natureza formal, uma obra sempre minimal. Ou seja o texto consegue estimular no leitor quase sempre um universo de sentidos em diferentes camadas (a tal Obra Aberta (1962) de Umberto Eco), algo que a imagem só consegue fazer quando se agarra ao lado mínimo do visual, quando de algum modo se esconde e não mostra o que tem para dizer.

Uma imagem vale mil palavras. Será?

Além disto o texto tem ainda um outro poder muito importante, que é o facto de que: quando Eu ouço a palavra “árvore”, eu vejo a Minha “árvore”, e não a do autor da ilustração. Neste sentido a capacidade para se ligar afectivamente é mais ampla no texto do que na imagem. Se assim é, resta à imagem como única porta de salvação ficar-se pelo convencionado, pelo cânone, para conseguir chegar a todos, para conseguir tocar a todos. Talvez isto explique em parte, porque o Cinema e os Videojogos se fazem cada vez mais de sequelas. Mas enfim, isto daria para muito mais discussão, e muito provavelmente em breve  voltarei aqui a este tópico.

novembro 29, 2012

OffBook #30: "We Love Retro Media"

"We ❤ Retro Media: Vinyl, VHS, Tapes & Film" é o 30º episódio da série OffBook e saiu já no início deste mês, mas ainda não tinha tido oportunidade de o ver. É um episódio dirigido a um nicho dos nichos da arte moderna. Este episódio fez-me lembrar o episódio #25 - The Art of Glitch dado o carácter circuncscrito e limitado da técnica e dos seus públicos.


Quero no entanto dizer que a crítica que faço diz respeito mais às cassetes de audio e de vídeo, e não propriamente ao Vinyl e Filme. Julgo que as propriedades de uns são incomparáveis com as propriedades de outros, em termos de registo e preservação. Aliás as cassetes nunca passaram muito da ideia de mero registo de cópia, e não um real detentor de obra original.



No fundo tudo isto que aqui falamos não passam de suportes das obras, não são as obras, e é nesse sentido que não lhes atribuo grande validade. Aliás se pensarmos no CD enquanto suporte, terá sido o suporte que mais rapidamente cresceu na história dos media, talvez ainda superado pelo DVD, um seu sucedâneo, e da mesma forma se tornou no suporte que mais rapidamente se desvaneceu.

We live in a digital world that gives us all the media we could possibly dream of at the click of a mouse, yet many people miss the old school physical formats from our past. Listening to vinyl and cassettes allows us to connect with music in a different way than MP3s. VHS and 8mm create visual aesthetics and atmospheres that are difficult to replicate in digital video. 

video via instagram

Não é propriamente revolucionário, mas o interessante é percebermos que é possível criar vídeo a partir de qualquer tecnologia de produção visual. O Instagram é uma rede social de fotografias que tem a particularidade de colocar à disposição dos utilizadores um conjunto de filtros retro que transformam e marcam todas as fotos que ali entram. Estes filtros tornaram-se imediatamente numa imagem de marca da própria rede. Aliás o Instagram conseguiu em poucos anos roubar a mística que a Polaroid tinha criado no mundo das fotos físicas. Usando as mesmas dimensões de uma fotografia Polaroid, e aplicando filtros conjugados de transformações da saturação/desaturação, de brilho, contraste, e sharpening, o Instagram criou uma identidade formal própria na apresentação de fotografias. Com todo este sucesso era inevitável que alguém se lembrasse de criar um vídeo com recurso a esta aplicação.


“The First Ever Music Video Filmed Entirely Using Instagram"

O vídeo foi criado por Arturo Perez para a banda mexicana The Plastics Revolution. Foi fotografado na cidade de São Francisco mas ao contrário do que chegou a circular na rede, as fotografias não foram feitas com um iPhone, mas antes com uma Canon 7D, só depois foram colocadas no iPhone 4s para serem convertidas para o Instagram. O que era inevitável, pois existem partes do vídeo que só poderiam ter sido feitas com outras máquinas muito mais rápidas ou então no formato de vídeo. Arturo Perez refere assim que usou a Canon 7d, para poder fazer uso da sua capacidade de fotografar 7 imagens por segundo. Deste modo foram feitas 45 mil fotos na Canon, das quais foram seleccionadas 1905 para ser convertidas para Instagram e são essas que aparecem neste vídeo.

Empatia, colaboração e cooperação

Acabei de ler The Age of Empathy de Frans de Waal, que viagem magnífica. Trabalho com o conceito da Empatia desde o início da década passada, e vi o evoluir da aceitação do conceito pela academia ao longo dos últimos anos, ler tudo isto foi um reforçar de muitas convicções. Não conhecia ainda Frans de Waal que foi eleito em 2007 um dos 100 cientistas a seguir pela Time. O seu trabalho enquanto biólogo, primatologista e etologista levou-o a desenvolver estudos comparativos entre os animais, só mamíferos, e o ser humano, e a procurar compreender que características animais se comparam connosco. De Waal publicou vários livros mais ligados à primatologia e etologia, mas apareceu no ano passado numa TED muito partilhada, Moral Behavior in Animals, e que praticamente resume o conteúdo de The Age of Empathy.


Neste livro e nesta Ted, De Waal fala da empatia, mas abre a sua aplicabilidade, ao comparar a empatia animal com a do ser humano, coloca o dedo na ferida aberta pelo capitalismo em 2007. De Waal recua lá atrás para nos dizer que Charles Darwin não nos deixou apenas o legado da Selecção Natural, demonstrativo do vigor competitivo. Depois de escrever a Origem das Espécies, escreveu The Expression of the Emotions in Man and Animals (1872), aonde explicava em muito maior detalhe como se processava a comunicação interpessoal e social tanto nos animais como nos humanos através da emoção. Como diz De Waal, “biology is usually called upon to justify a society based on selfish principles, but we should never forget that it has also produced the glue that holds communities together” (2009:7). O problema é que a ciência não estava ainda preparada para o estudo das emoções no tempo de Darwin. Aliás como o De Waal vai sempre dizendo ao longo deste livro, a academia sempre foi reticente em aceitar a possibilidade de equiparar as características animais com as dos humanos. Em termos cognitivos, emocionais, comportamentais, ou de consciência. Não sabemos se por forças religiosas, ou se por simples obstinação antropocêntrica, mas ainda hoje persistem tiques na academia e fora dela nesse sentido.

Ted Talk Moral Behavior in Animals (2012) de Frans de Waal

Aliás um dos melhores documentários que vi até hoje, e que continua a ter muito pouca divulgação, chama-se Why Dogs Smile and Chimpanzees Cry (1999). É uma obra poderosa, capaz de demover qualquer antropocentrista. Ao longo de hora meia somos levados a compreender como entre o homem e os restantes mamíferos, existem tão poucas diferenças. Mas diga-se que o grande responsável por se ter colocado as Ciências Afectivas no mesmo patamar das restantes ciências na academia foi António Damásio, e o seu O Erro de Descartes (1994). Com ele foi possível começar a aceitar-se no plano científico o conceito de empatia sem se ser rotulado de fantasista, ou pior. Continuamos a trabalhar para demonstrar a sua cientificidade, mas são cada vez mais as áreas que abraçam o conceito, desde a Psicologia à Biologia. E se no campo da criatividade antes se falava em Desejo e Projecção, conceitos caros à Psicanálise, hoje assumimos a Empatia como o grande conceito que define de forma ampla a relação entre os seres, entre os seres e os animais, e entre os seres e os objectos ou obras.

Pode ser visto no Daily Motion, Parte 1 e Parte 2

A Empatia começou pelo simples significado de senso comum - “colocar-se no lugar do outro” e evoluiu entretanto. Zillmann trabalhou a conceptualização no campo da Psicologia dos Media definindo a Empatia como um estado no qual, não apenas “sentimos como o outro, mas sentimos pelo outro”. No campo da neurociência em 1998 Gallesse e Goldman descobriam os chamados neurónios-espelho que permitiram avançar o nosso conhecimento sobre os processos neurológicos por detrás da empatia. Os neurónios-espelho, são responsáveis pela nossa atividade de mímica do outro, e de certo modo explicam processos afectivos mais básicos como o Contágio Emocional. Baron-Cohen (2003) pelo seu lado dividiu a empatia em duas componentes - cognitiva e afectiva. A primeira define a capacidade para “prever o comportamento ou estado mental de outra pessoa”, enquanto a componente afectiva define a “resposta emocional apropriada ao estado emocional da outra pessoa”. Posto tudo isto eu dizia no meu livro Emoções Interactivas, que
"o processo de empatia é um processo complexo, que está intimamente relacionado com as teorias da mente ou da simulação mental sobre a nossa capacidade para construir um modelo da mente do outro seja por meio da simulação ou imaginação, que potencie a competência para antecipar as acções do outro e, desse modo, não só perceber e sentir o outro, mas também agir, ajustando-se emocionalmente ao outro. É um dos pilares fortes da interacção social..." (Zagalo, 2009:62)
De Waal neste seu livro leva a definição um pouco mais longe, porque estabelece uma relação mais directa entre a imagem mental de empatia e a nossa acção fisiológica. Partindo de tudo o que elenquei aqui antes, desde o senso comum aos neurónios-espelho, De Waal diz,
“empathy and sympathy start not in the higher regions of imagination, or the ability to consciously reconstruct how we would feel if we were in someone else’s situation. It began much simpler, with the synchronization of bodies: running when others run, laughing when others laugh, crying when others cry, or yawning when others yawn.” (De Waal, 2009:51)
A "Sincronia dos Corpos", é para mim o conceito mais importante apresentado neste livro. Um processo mecânico, sem complexidades, fruto da evolução das espécies, e através do qual conseguimos ao longo de milénios, desenvolver sistemas sociais de tão grande complexidade. Aliás Rizzolati num artigo de 2004 vai mais longe elevando a importância dos processos de gregariedade, à condição básica do nosso sistema de aprendizagem,
“Se queremos sobreviver, precisamos de perceber as acções dos outros. Para além disso, sem compreender a acção, a organização social é impossível. No caso dos humanos, existe uma outra faculdade que depende da observação das acções dos outros: aprendendo imitando. Diferentemente da maior parte das espécies, nós somos capazes de aprender imitando, e esta faculdade está na base da cultura humana” (Rizzolatti e Craighero, 2004).
Esta afirmação de Rizzolatti é interessante duplamente, porque se é verdade que somos o que somos, porque aprendemos imitando, e evoluímos imitando, não é menos verdade que os animais não sejam capazes de o fazer. E esse acaba por ser uma das grande discussões presentes neste livro de De Waal. Demonstrar que eles têm consciência de si, e que eles conseguem aprender uns com os outros, que eles conseguem sentir empatia. O que eles têm, em princípio, é um processo de memorização menos sofisticado, que impossibilita que o conhecimento se acumule, e desse modo se possa transformar e evoluir. No fundo o que faz de nós seres ligeiramente diferentes dos animais, é a nossa capacidade para exercitar continuamente o método experimental, procurar antever o “depois”, através de tudo aquilo que sabemos do “antes”.


Mas o mais importante é que tudo isto demonstra que o discurso sobre a evolução das espécies tem sido erradamente associado à competitivdade e agressividade. Percebe-se daqui que se somos hoje a espécie mais evoluída do planeta é graças ao enorme sentido colaborativo e de partilha que conseguimos estabelecer na interacção social. Tem sido através deste sentido, que cria rede social, que temos conseguido evoluir o conhecimento de nós próprios. Mas se isto surpreende quem defende teorias económicas do relacionamento social, não surpreende quem estuda a psicologia social desde há mais de 50 anos.

O mesmo experimento de Frans de Waal com os mesmos resultados mas do documentário Capuchins: The Monkey Puzzle

Não é de agora que estabelecemos a forma como o ser mamífero funciona por oposição ao réptil. A essência está presente desde a primeira hora em que nascemos. Sem uma vinculação forte entre mãe e filho, a possibilidade do bebé sobreviver é muito reduzida. Passamos a infância toda dependentes dos seres mais velhos, que nos levam comida a boca e dão carinho. Dos estudos realizados há mais de meio de século, em tempos perturbados, percebemos que o bebé não definha apenas por falta de comida, mas também por falta de contacto humano. Sem o contacto humano, o nosso cérebro não constrói as sinapses necessárias para poder compreender o outro, e emocionar-se com o outro, os fundamentos da empatia não se constroem tornando-se num ser associal. A empatia é assim, como diz De Waal, a cola que nos mantém juntos, e nesse sentido é uma das característica que a Selecção Natural tudo tem feito para preservar.

novembro 26, 2012

Simulação de emergência narrativa

The Snowfield é um videojogo experimental sobre conceitos de narrativa emergente desenvolvido sob o tema da I Grande Guerra Mundial. Foi criado por dez estudantes de Singapura e dos EUA no programa de Verão de desenvolvimento de jogos do MIT GAMBIT Game Lab em 2011. Está agora disponível online para experienciar, depois de ter sido um dos finalistas dos IGF 2012 deste ano.

In The Snowfield you are a lone soldier wandering the aftermath of a great battle. It is the dead of winter and you won't last long in the cold. But you are not alone.
A ideia de partida do director do projecto Matthew Weise (coordenador da equipa e não estudante) passava por criar um jogo com narrativa forte, sem ter de recorrer a muita IA nem à produção de muito conteúdo. Nesse sentido seguiu duas ideias centrais: a) criar narrativa pela emoção; b) escolher a estrutura da narrativa a partir dos testes com os utilizadores. Assim para a primeira ideia, Weise diz-nos [1] que,
One of the myths about narrative we wanted to discredit was the idea that plot structures or archetypes are what make players care about game stories—in other words, what makes players react emotionally. Traditionally, game developers assume narrative creates emotion. We believed emotion creates narrative, and that emotional touchstones are what cause players to perceive a set of system outputs as a story.

Apesar de eu acreditar nesta ideia de que a emoção cria narrativa, parece-me vago e incompleto para se poder chegar a um produto capaz de oferecer a experiência narrativa como a conhecemos. Aliás é o próprio Weise que o reconhece no final do seu post-mortem dizendo, 
The Snowfield was a successful emotional experience, a successful mood and atmosphere piece, and a successful virtual evocation of World War I, it was not a successful illustration of my theories on narrative. [1]

Apesar disso julgo que a ideia de procurar os momentos de ruptura emocional a partir dos testes com os utilizadores pode ser muito interessante. A demonstrá-lo fica o objectivo inicial da mecânica principal, e no que se viria a transformar depois.
"The Snowfield's" freezing-to-death mechanic. Originally, freezing was just a gating mechanic, to prevent players to reaching the edge of the map without resorting to invisible walls, but when testers responded so emotionally to it (nearly all of them said it made them feel “cold and alone” in the heat of July) we decided to embrace that simple emotion and build the game around it. This was an outgrowth of our “emotion creates narrative” philosophy, as something that guided development as well as in-game player narrative. [1]

Apesar do jogo não ter conseguido atingir o esperado pelo director, o jogo consegue desenvolver uma experiência única. Faz lembrar Dear Esther, apesar de não ter o seu poder de envolvimento. Mas tenhamos em atenção que falamos de um jogo feito em apenas oito semanas. Sinto que de algum modo Weise conseguiu aproximar-se da ideia central de criar um espaço de simulação sem arco narrativo, mas com poder suficiente para evocar narrativa a partir dos estímulos emocionais que o jogo despoleta em nós.


Link para jogar online.


[1] O excertos de Matthew Wiese foram retirados do Postmortem na Game Developer, Game Career Guide, Fall 2012

novembro 25, 2012

videojogo feito de barro e cartão

The Dream Machine é um videojogo feito de barro e cartão criado com pura paixão por duas pessoas apenas, Anders Gustafsson e Erik Zaring, ao longo dos últimos 4 anos na Suécia. O jogo foi dividido em cinco episódios, tendo a demo do primeiro saído em 2009, o segundo capítulo em 2010, e o terceiro em 2011. O quarto deverá sair ainda este ano e o quinto no próximo ano. Ao longo de todos estes anos foram conseguindo várias nomeações e prémios (IGF 2011, IntoThePixel 2011, Indie Cade 2012) e financiamentos (NordicGame e Governo Sueco) o que lhes foi permitindo sustentar a criação do jogo.

In the game, you play as Victor Neff, a guy who's just moved to the big city with his wife, Alicia. They used to live in a smaller town, but with the economic recession, job opportunities started to dry up and with a baby on the way they really couldn't risk unemployment.The game begins the morning after they arrived to their new home. While trying to get settled in, they soon discover that all is not as it seems in the quiet, unassuming apartment building...
O que mais me impressionou em The Dream Machine foi a estética e a técnica. No campo da estética, as suas influências são muito cinematográficas, e como os próprios autores assumem temos aqui influências muito claras de Jan Svankmajer e David Cronenberg no campo visual, enquanto no plano narrativo assumem uma abordagem clínica do tipo Roman Polanski. Ainda neste campo referem a influência dos Bolex Brothers (Saint Inspector, 1996) e dos Quay Brothers (The Epic of Gilgamesh, 1985). Já no campo do design de videojogos a influência não podia ser mais óbvia com a equipa da República Checa, a Amanita Design, responsáveis por Machinarium (2009).
"I remember getting inspired to use other materials after playing Samorost by Amanita Design. I was longing for a different expression and for the qualities inherent in making stuff by hand. I convinced Anders that it would be a great idea to have hand-made stuff in our game." [Link]

Depois no campo técnico o jogo criado a partir de elementos reais animados, brilha intensamente, emana paixão dos criadores. O detalhe, a complexidade, e o tempo envolvido requerido para produzir o trabalho (criação do personagem principal). Impressiona interagir com o jogo e sentir a fluidez quase perfeita a cada interacção no feedback da animação, apesar de se tratar de um point-n-click feito em Flash. Para conseguir esta qualidade os personagens não foram meramente capturados do real, tiveram de ser capturados e projectados sobre polígonos 3d (processo explicado) para assim se conseguir criar toda esta fluidez de movimento e integração completa com os cenários e as interacções.


Em termos dos episódios, a dupla criativa não fecha nunca a porta aos episódios já realizados. Existem constantes updates a ser realizados aos cenários e personagens, que se vão reflectindo sobre todos os episódios. E mais interessante é ver como isto decorre de uma abordagem aberta à participação dos jogadores,
"The developers love to read feedback from players and often change puzzles or add clues if too many players indicate it's too difficult. Since the early episodes were originally playable only through their own website, Gustafsson and Zaring were able to keep track of unsuccessful attempts to combine things, and every now and again they would add new interactive possibilities or responses. " [Link]

O primeiro capítulo pode ser jogado grátis no site. O segundo e terceiro podem ser adquiridos no Steam em promoção ou ainda no Indie Bundle Royale.

teoria da relatividade em jogo

A Slower Speed of Light não se assume como um serious game mas bem podia. Slower é um pequeno jogo desenvolvido por uma equipa do MIT Game Lab, em Unity, que pretende transformar conceitos de física complexos em simples simulações visuais e interactivas de modo a permitir a fácil apreensão por parte de leigos.


Através de um modelo de simples simulação na primeira pessoa do espaço tridimensional, e socorrendo-se de um gameplay básico que passa por encontrar esferas espalhadas pelo mundo, somos levados a experienciar, no tempo e em função das esferas encontradas, cinco distintos conceitos da física sobre a relatividade, a saber:
"the Doppler effect (red- and blue-shifting of visible light, and the shifting of infrared and ultraviolet light into the visible spectrum); the searchlight effect (increased brightness in the direction of travel); time dilation (differences in the perceived passage of time from the player and the outside world); Lorentz transformation (warping of space at near-light speeds); and the runtime effect (the ability to see objects as they were in the past, due to the travel time of light)"



À entrada do jogo existe um alerta de saúde que deve ser levado em consideração. Posso dizer da minha experiência, que durou sete minutos, nos quais cheguei quase ao meu limite de mau-estar. O principal problema é a variação de cores que ocorre quando andamos (para evitar o mau-estar podemos desligar a saturação nas opções do jogo). À medida que vamos apanhando as esferas a velocidade da luz vai-se reduzindo, vamos começando a ver o mundo a velocidades mais elevadas, saindo da área da luz visível para o campo dos infravermelhos e ultravioletas. Mas o melhor está reservado para o final do jogo, depois de conseguirmos capturar todas as esferas, os efeitos da luz são desligados e passamos a percepcionar o espaço como um contínuo espaço-tempo, em que os objectos assumem distorções causadas pela velocidade próxima da luz a que viajamos pelo espaço.


A Slower Speed of Light tem tudo para impulsionar a aprendizagem dos conceitos da Teoria da Relatividade no ensino secundário. Embora os físicos considerem a teoria de fácil assimilação, não o é, e por isso mesmo se tem mantido de fora do ensino pré-universitário. Mas com um jogo deste tipo, enquadrado e complementado pelo professor, acredito que o nível de abstracção que era exigido até agora baixa imenso facilitando o acesso aos alunos destes níveis de ensino.

Entrevistas com os autores e trailer

Link para fazer download e jogar (PC e Mac).

novembro 24, 2012

Brandon Generator, animação interactiva online

The Random Adventures of Brandon Generator (2012) é um trabalho de ficção colaborativa produzido pela Microsoft para promover o Internet Explorer 9 e o HTML5. A Microsoft juntou talentos incontornáveis em várias áreas, Edgar Wright na escrita, Tommy Lee Edwards na ilustração, Scott Benson na animação, Julian Barratt na narração e David Holmes na música e criaram um artefacto online memorável.


É difícil definir exactamente o que é Brandon Generator. Wright define-o como um "crowd sourced animated film", enquanto Tommy o define como "interactive online animated graphic story". Julgo que ambas as designações estão correctas. Em termos de trabalho audiovisual temos uma animação com sabor a motion comics, mas mais elaborada do que isso. Ao contrário dos motion comics, em que o trabalho provém de ilustração previamente impressa, aqui tudo foi desenvolvido para este formato final. Como diz Tommy o objectivo passou por "elevar o modo como as histórias são contadas online".


O que posso dizer é que esse objectivo foi conseguido em toda a linha, nomeadamente no campo estético. A ilustração de Tommy com toque Marvel é de todos o que mais se evidência, e controla grande parte da nossa relação com o artefacto, por outro lado a animação simples de Benson cria um ritmo específico para o universo narrativo que é depois fortemente suportada pela belíssima narração de Barrat e a música de Holmes. Ou seja, se o artefacto funciona é porque nada foi deixado ao acaso, a Microsoft não se ficou pela simples vontade de criar um trabalho demonstrativo da tecnologia, mas quis investir na criação de algo capaz de ficar na história da ficção online.


No campo interactivo, apesar de existirem algumas interacções possíveis com cada episódio, a interatividade joga-se quase toda no plano da comunicação assíncrona com a ficção. Ou seja, no final de cada episódio os espectadores eram convidados a participar, escrevendo trechos de continuidade para o episódio seguinte, desenhando elementos para fazerem parte do universo gráfico, ou deixando mensagens telefónicas para o personagem principal que depois poderiam entrar na banda sonora do episódio seguinte. Tudo isto era depois assimilado pelos criativos para fazer evoluir a história e a animação no sentido da participação deixada pelos milhares de espectadores. Consequentemente os espectadores sentem-se envolvidos na narrativa, a sua participação origina consequências reais sobre a narrativa. A participação contrói-se a partir de uma parceria real entre os criadores e os receptores, colocando-os num plano horizontal criativo, elevando fortemente o envolvimento de todos.





Imagens que mostram arte produzida pelos participantes, e na última imagem os nomes dos vários contribuintes só do episódio 3.

A história de Brandon Generator anda à volta do bloqueio criativo o qual leva um escritor a desmaiar de cansaço, quando este acorda descobre que todo o trabalho foi feito enquanto esteve inconsciente. E aqui começam as interrogações, quem terá feito as misteriosas contribuições, quem terá deixado as mensagens no gravador, quem terá desenhado no seu caderno de notas. A narrativa está brilhantemente desenhada no sentido em que a interacção do espectador está em sintonia total com o conteúdo da história, permitindo que cada elemento narrativo que nós acrescentamos enquanto espectadores possa fazer parte daquele universo sem propriamente o distorcer ou corromper. Wright conseguiu assim criar, nas suas palavras "an internet head trip where the users become co-writers, where they can help Brandon or punish him". Na minha interacção com o trabalho aconteceu algo interessante que me levantou algumas questões, sobre tudo isto. No final do ep1 deixei uma contribuição escrita para uma potencial continuação que não se revelaria muito distante daquilo que depois vi acontecer, em traços muito genéricos é claro. Aqui fica o escrevi,
"One day, the lack of coffee, made Brandon go out, in search for a coffee shop. In the walking he found a beautiful a girl. They took a coffee together, they laughed, and then he disappeared... "
Esta imagem aparece apenas no Episódio 3

Esta pouca diferença, levou-me a questionar sobre o poder do escritor e criadores para nos sugestionarem. Ou seja, até que ponto a nossa participação é de algum modo fortemente condicionada por aquilo que acabamos de ver. Somos enredados pela atmosfera, pelo personagem, e talvez dada a qualidade da imersão narrativa criada pelo trabalho somos como que conduzidos para um determinado universo ficcional do qual dificilmente nos conseguimos desprender. Continuamos a ter liberdade, mas somos sugestionados a pensar a dentro de um determinado quadro de convenções, o que homogeneíza os discursos!


Em termos de desenvolvimento, o trabalho web foi desenvolvido pela LBi, e no site de making of é possível obter mais informação técnica sobre o HTML5, CSS3 e Js usado. Mais interessante de tudo é a afirmação de Tommy a propósito de tudo isto quando ele diz "This whole thing would not exist without the internet." e suporta a afirmação referindo,
"Not only is Brandon Generator co-created by the online community's input, the whole process of creating the finished project is quite virtual. I live in rural North Carolina, where I storyboard, illustrate, design, and direct the animation for Brandon Generator. My CG modeling team (Don Cameron & Daryl Bartley) are in Los Angeles. Scott Benson handles all the animation and composite After Effects work up in Pittsburg. But through using skype, our smart phones, email, and various file-sharing methods, the four of us work hand-in-hand to create a seven or eight minute animated film. Edgar spends most of his time between Los Angeles and London. Same with composer David Holmes I think. Al the sound guy is British, but I'm actually not sure where he is at the moment. LBi builds the Brandon Generator website and handles all the tech from London. It's quite the little global effort." [link]
Impressiona. O mundo é cada vez mais global porque existe uma rede electrónica que suporta e mantém uma comunicação humana em modo contínuo. E daí que nos vejamos confrontados com a necessidade de repensar os modelos narrativos que temos, repensar não apenas os modelos de produção, mas também os modelos criativos. Não que eu acredite que estes possam transformar-se nos modelos dominantes. Como ainda há pouco tempo aqui referia num estudo de Zac, estamos muito formatados pelo modelo linear de contar histórias. Mas o que Brandon Generator nos mostra, é que a participação assíncrona pode ser um caminho muito interessante a explorar no storytelling interactivo (não que seja uma total novidade, mas está muito bem feito), porque mantemos a estrutura linear tradicional, adicionando uma camada participativa não disruptiva dessa linearidade.

Trailer do primeiro episódio

Experienciem The Random Adventures of Brando Generator, depois percam-se na página do making of.

análise de videojogos

Michael Abbot do blog Brainy Gamer levantou recentemente uma discussão muito interessante à volta do modo como jornalisticamente se analisam, discutem e descrevem os videojogos, nomeadamente os mais recentes exemplos experimentais como Journey, Unfinished Swan e Papo & Yo. Realizou uma análise das palavras utilizadas nas várias críticas, e chegou à conclusão que o vocabulário utilizado é muito homogéneo e que descreve de forma muito genérica este género de jogos.

Nuvem de palavras utilizadas nas críticas ao jogo Journey

Nesse sentido resolvi analisar este assunto a partir de duas abordagens distintas: o quadro de análise e o medium de análise. Esta análise foi publicada na Eurogamer com o título, Crítica de Videojogos. Texto, Media e Experimentalismo.

novembro 19, 2012

Randobot, novo jogo e entrevista

Randobot (2012) é o ultimo jogo de Vasco Freitas, um dos mais interessantes game designers nacionais, que nos trouxe Farmer Jane (2008), G-Switch (2010) e Freeway Fury 2 (2011). Desta vez o Vasco criou um jogo que me parece ser mais interessante para análise do que propriamente para jogar. Um jogo que não sendo cerebral acaba funcionando como uma metanálise dos fundamentos de jogo e do gameplay de plataformas.


Conceptualmente a história do jogo é em si muito interessante porque serve de metáfora à própria grande indústria de videojogos. O engenheiro é pressionado pelo produtor a enviar para fabrico um robô que ainda não está terminado nem completamente operacional. O engenheiro estabelece como meta a possibilidade de poder ir fazendo updates ao sistema antes que o robô seja completamente colocado no mercado. Tal como os jogos nos chegam e por vezes não respondem como deveriam, tendo nós de ir aplicando patch atrás de patch. Quando assumimos o controlo do robô percebemos claramente que este tem falhas, e são essas as falhas que acabam por servir de essência ao gameplay do jogo. O movimento à esquerda ou à direita tem apenas 80% de hipóteses de bom funcionamento, o de salto apenas 55%, e os restantes tiro, andar agachado estão inactivos. As falhas surgem de modo random, daí o titulo do jogo Randobot. Precisamos de atingir os objectivos em cada nível para ir reparando o nosso robô por forma a que este funcione de modo menos aleatório.


O interesse do jogo surge exatamente aí, quando mesmo tendo 80% da funcionalidade dos movimentos esq/dir percebemos o quão fragilizada fica a nossa capacidade de agir sobre o gameplay. Sabemos o que temos de fazer, mas não sabemos se o nosso robô vai reagir no exato momento em que vamos precisar dele, e isso coloca uma tensão ainda maior sobre nós. Isso frustra as nossas expectativas quanto ao domínio da lógica do jogo, é como se o gameplay do jogo se tivesse especializado em tirar-nos o tapete. O random é algo problemático para quem joga videojogos, porque nos habituamos a estudar padrões, analisamos e voltamos a analisar, até conseguir detectar o padrão. Uma vez feito este trabalho passamos a dominar o jogo, e o prazer apodera-se de nós. Mas aqui isso não acontece, não conseguimos dominar o padrão, porque ele não existe, é totalmente aleatório, o que gera grandes doses de frustração. Nesse sentido pedi ao Vasco que nos respondesse a algumas questões,


- Qual é a história por detrás do jogo, como surgiu a ideia do engenheiro e do robô?
:: Estava a jogar um jogo em que as teclas por vezes não funcionavam, devido a um bug. E então pensei se teria piada um jogo em que o mau funcionamento das teclas fizesse mesmo parte do jogo. À primeira vista parecia uma ideia louca (o que me agrada!), destinada a "falhar", mas pensei que se fosse bem executada poderia funcionar...

Imaginei que a aleatoriedade pudesse ser um tipo de gameplay interessante para explorar, devido ao jogador ter de medir o risco das suas decisões e ter sempre em atenção que algo pode deixar de funcionar como esperado de um momento para o outro. Achei simplesmente piada à ideia do jogador nunca saber se um salto vai funcionar, e ter que se precaver para o caso de não funcionar. O tipo de estratégia e processo mental envolvido seria bem diferente do habitual.


Inicialmente o jogo era para ser mais simples, só mesmo para experimentar, mas depois, como costume, tive vontade de ir acrescentando mais coisas. A ideia do engenheiro e robô veio mais tarde, servindo para justificar o facto das teclas por vezes não funcionarem, e como história, o que acabou por também ser uma parte importante do jogo.


- Qual o objectivo por detrás de um gameplay aleatório?
:: Neste caso não houve um objectivo em particular, apenas segui o impulso de experimentar a ideia. Falando de "gameplays aleatórios" em geral, eles existem em quase todos os jogos, e podem servir vários propósitos (tornar o jogo mais interessante, variado, imprevisível, pseudo-realista, etc). Jogos de cartas ou de dados, por exemplo, são um bom exemplo em que a aleatoriedade é parte fundamental do jogo.

- O que pretendias testar? Atingiste a ideia que tinhas?
:: Não pretendi testar nada em particular, apenas concretizar a ideia e ver os resultados. Achei que valia a pena fazer o jogo, já que não existia nada semelhante. Penso que atingi a ideia que tinha, sim, no sentido em que concretizei a minha visão inicial.

- Como te parece que as pessoas estão a responder a essa aleatoridade no gameplay? O que lhes podes dizer em relação à sua frustração?
:: Achei as reacções das pessoas muito interessantes. Alguns dizem ter adorado o jogo do princípio ao fim, enquanto que outros acharam demasiado frustrante. Alguns acharam a ideia interessante, inovadora, e bem executada, enquanto que outros acharam que isto nunca se devia fazer. Sinto que as opiniões dividiram-se muito nos extremos, e é sempre interessante quando isso acontece.

A frustração que sentem é muito dependente do jogador, e para dizer a verdade nem estava à espera que essa fosse uma reacção tão comum, já que as pessoas a quem mostrei o jogo antes de lançar nem acharam muito frustrante. Não tenho muito a dizer a quem tenha achado frustrante, a não ser que podem sempre voltar a tentar noutro dia, e que acho que vale a pena jogar até ao fim, nem que seja para ver como a história acaba :)

Jogar Randobot.

novembro 18, 2012

Face de Spielberg, uma marca autoral

A propósito dos supercuts encontrei um vídeo-ensaio excepcional, criado por Kevin B. Lee, sobre aquilo que este considera ser uma marca autoral em Steven Spielberg, o "grande plano da cara de olhos bem abertos". Lee baseou este supercut/ensaio num trabalho apenas fotográfico de Matt Patches, The Spielberg Face: A Legacy.


O close-up facial é uma realidade que se tem acentuado imensamente nos últimos anos no cinema, nomeadamente no cinema de Hollywood em busca da estimulação de emoções fortes nos seus espectadores. Daí que o uso da cara seja uma obrigatoriedade, já que é através dela que grande parte da emocionalidade é transferida para o espectador. Desde as questões de mímica e de contágio emocional à simulação do sentir do outro, até à sincronia da linguagem verbal, todos os indicadores sobre o funcionamento do ser humano social indicam que nos agarramos desesperadamente aos sinais expressivos do outro para compreender o mundo que nos rodeia.


A face acaba por ser de todos os elementos do corpo, o mais rico em sinais expressivos, porque o mais provido de variedade muscular e consequentemente de potencial gramatical para a germinação conceptual de emoção. Para quem quiser aprofundar o estudo da face aconselho o Paul Ekman, estudioso da face nos últimos 40 anos. Ou um acesso mais simples, o brilhante documentário da BBC, The Human Face (2001), apresentado por John Cleese.




Neste pequeno trecho de Kevin B. Lee, somos levados por um passeio através de um supercut à volta das expressões faciais realizadas nos filmes de Spielberg ao longo dos últimos 40 anos e com dezenas de diferentes actores. Lee discute e fundamenta muito bem o fenómeno da Face de Spielberg, como marca de autor, mostrando plano atrás de plano de faces de personagens com os olhos bem abertos, em grande plano e com movimento de aproximação sobre dolly. Todas estas imagens, se convertem numa face única, a Face de Spielberg, que quer transmitir a ideia de que algo monumental, maravilhoso e épico está a acontecer em frente ao nosso personagem, e logo em frente a nós. Diria que a Face de Spielberg, é a face do verdadeiro Sonhador.

If there is one recurring image that defines the cinema of Steven Spielberg, it is The Spielberg Face. Eyes open, staring in wordless wonder in a moment where time stands still. But above all, a child-like surrender in the act of watching, both theirs and ours. It’s as if their total submission to what they are seeing mirrors our own.

The face tells us that a monumental event is happening; in doing so, it also tells us how we should feel. If Spielberg deserves to be called a master of audience manipulation, then this is his signature stroke. You can’t think of the most iconic moments in Spielberg’s cinema without The Spielberg Face.
Esta análise em vídeo, e como já tinha dito no texto anterior sobre os supercuts, demonstra muito claramente a enorme vantagem de analisar um filme com recurso à sua própria linguagem. Mesmo quando analisamos o texto de Matt Patches, que é muito próximo daquilo que aqui discutimos, como o conteúdo é apresentado apenas por meio de imagem estática, não podemos ganhar uma noção completa da marca autoral de Spielberg. Perde-se o movimento, o que neste caso é essencial dada a aplicação do movimento da dolly que contém em si mesmo uma enorme intensificação da expressividade do objecto.

Keyframe: The Spielberg Face (2012) de Kevin B. Lee

Supercuts

Os supercuts (montagem acelerada de pequenos trechos audiovisuais que procura isolar elementos visuais ou sonoros de forma encadeada) massificaram-se com a distribuição facilitada pela internet, mas foi um processo que se iniciou com o processo de digitalização do cinema, que veio criar novos meios de acesso aos artefactos fílmicos. A facilidade com que hoje podemos aceder a dezenas de filmes, e rapidamente podemos cortar, colar, comparar, integrar, reinterpretar mudou radicalmente o modo como podemos atuar sobre a imagem em movimento. Além disto o conhecimento colectivo gerado pela rede facilita o processo de busca, identificação, e recordação. Assim como facilita os processos colaborativos de discussão e partilha dos trechos a trabalhar.


Tendo em conta a enorme quantidade de supercuts que foram aparecendo nos últimos anos, podemos dividir os mesmos em dois grandes tipos,  os informativos / educativos e os de forma / entretenimento. Sobre os segundos pode-se encontrar muita coisa no sítio supercuts.org, tal como The End, Apocalipse, Twin Towers. Sobre os primeiros discutirei agora em maior detalhe.

Supercut do IMDB Top 250

Alguns criadores têm surgido e têm captado a nossa atenção, não apenas pela minúcia e qualidade técnica do seu trabalho, mas também pelo lado conceptual do mesmo. De um lado temos supercuts informativos como aqueles que é hábito aparecerem no final de cada ano, que resumem em 5 ou 6 minutos um ano inteiro de cinema ou o recente exemplo do IMDB Top 250. No campo mais educativo temos trabalhos de muito maior alcance, como são os supercuts criados por Kogonada, que trabalham sobre um determinado aspecto estético cinematográfico, e o colocam em evidência, levando-nos a ver para além da mera crítica textual, realizando um trabalho verdadeiramente pedagógico. Kogonada é um ex-estudante de doutoramento, na área de estudos fílmicos mais em concreto sobre Yasujiro Ozu, mas que decidiu abandonar para se dedicar a fazer os seus próprios filmes. Numa entrevista dada ao Creators Project, Kogonada refere que aquilo que busca nos seus trechos, são as marcas autorais de cada criador,
Well, I’ve been a cinéphile for some time, and I still believe in the auteur. So I’ve noted tendencies in certain filmmakers for a while. The truth is, there are not a lot of filmmakers, certainly in the US, that have a particular aesthetic. I own a lot of the works from directors that, I think, have a distinct voice and style. For me, it’s been a matter of contemplating which particular technique from these directors would cut nicely together (with many of these auteurs, it’s not just one technique you could highlight, but a number of them). I’m less interested in documenting every example of a particular technique in the work of a director, then I am putting together something that is both attuning and visually interesting.
O que é relevante no trabalho de Kogonada é a forma como este consegue desenvolver um olhar clínico para extrair as semelhanças estéticas dentro das obras de cada autor, e dá-las a ver com tanta clareza. O trabalho sobre a perspectiva, One-point Perspective, em Kubrick é absolutamente magistral. Apesar daquilo que Kogonada nos traz não ser propriamente surpreendente, já que ainda recentemente aqui tínhamos falado sobre movimentos e espaços impossíveis na obra de Kubrick. Este supercut consegue ainda assim trazer nova luz sobre a obra de Kubrick, plasmando na nossa frente a realidade desconstruída do seu trabalho obsessivamente estilístico. Exatamente o mesmo podemos ver no trecho sobre design de som nas obras de Aronofky.

Kubrick // One-Point Perspective (2012) de Kogonada

O que estes vídeo-ensaios fazem é chamar a atenção para motivos e detalhes que só quem estuda os autores se apercebe. Alguns podem até nem passar completamente desapercebidos, mas a vantagem de um supercut é poder ver o elemento dissecado em vários obras do mesmo autor, e assim poder conceptualizar mais detalhadamente o alcance estilístico de um determinado efeito num autor. Isto permite-nos perceber melhor as obsessões e manias dos criadores, para assim conseguirmos compreender as suas motivações criativas.

Sounds of Aronofsky (2012) de Kogonada

Finalmente julgo que estes supercuts colocam a nu algumas questões que me incomodam desde sempre na academia no seio dos Estudo Fílmicos, e que passa por analisar o meio cinematográfico através do mero texto. Como podemos ver aqui, estes dois artefactos de Kogonada assumem um valor que supera intensamente qualquer texto que tenha até hoje procurado dissecar estas propriedades em ambos os criadores - Kubrick e Aronofsky - porque usa exatamente a mesma linguagem da obra analisada. Nesse sentido o seu discurso está muito mais próximo da “realidade” do artefacto analisado, cometendo muito menos “erros” de tradução na análise do audiovisual para o mero textual.

jogo musical com neve

O criador da banda sonora de Fez (2011) resolveu criar o seu próprio jogo, January (2012). Rich Vreeland licenciou-se em Music Synthesis pelo Berklee College of Music in Boston, depois disso trabalhou no GAMBIT Game Lab (Singapore MIT) e nos Demiurge Studios, entretanto em regime de freelancer criou além da música para Fez, a de Drawn to Life: The Next Chapter (2009) entre outras.


January é um jogo musical, de uma enorme simplicidade, mas ao mesmo tempo uma enorme beleza. A simplicidade está no gameplay visual, que por sua vez é acompanhado por um sistema musical generativo, que vai gratificando as nossas acções no jogo. Temos de apanhar flocos de neve com a língua, e à medida que o vamos fazendo algumas notas são tocadas, por forma a fazerem sentido musical entre elas e assim gerarem uma experiência musical. No final do jogo somos mesmo convidados a gravar e publicar o midi da música que criámos enquanto jogávamos.


Sobre o jogo em si, Rich Vreeland diz-nos que,
I wanted to capture the feeling of what it was like to be young and alone in the snow, which was always a fond memory of mine. I intentionally made the music somewhat ambiguous, by using a hexatonic scale. The game tracks the previous two notes that have played, and generates new musical decisions based on that. The player controls the rhythm of the music (by choosing when to lick snow), and can introduce chords and octaves by licking certain kinds of snowflakes.
Jogar