janeiro 03, 2015

“Cem Anos de Solidão” (1967)

Demorei 20 anos a sair de Macondo, depois de aí ter entrado em 1995, voltei lá por mais três vezes, tendo só agora, no início de 2015, terminado a viagem. De cada vez que tentava voltar à leitura aquilo que me afastava era o seu lado mágico-fantástico, o exagero de feitos e capacidades, que me retiravam da crença. No final da leitura, e depois de me ter obrigado a ler até meio, momento em que o discurso começou a ganhar solidez e a crença voltou a surgir, o discurso não só faz sentido como assume a essência da singularidade do discurso de Gabriel Garcia Márquez.


Cem Anos de Solidão” é uma obra-prima porque não poderão ler algo igual em mais lado nenhum. Márquez criou um trabalho singular e poderosamente criativo, através de uma escrita absolutamente vertiginosa pelo ritmo que imprime, suportado por uma torrente constante de personagens, eventos e factos, na sua maioria fantásticos mas sempre a tentar puxar à verosimilidade. Aliás é esse ritmo e volume de informação que torna o livro difícil, porque não é humanamente possível reter tudo o que vai acontecendo, a não ser que nos detenhamos de papel e lápis, mas é esse ritmo que impregna a forma do discurso e contribui para a construção do sentir daquilo que Márquez pretende expressar.
"Melquíades não tinha ordenado os factos no tempo convencional dos homens, mas concentrou um século de episódios quotidianos, de modo que todos coexistiram num mesmo instante"
“Cem Anos de Solidão” acaba por emergir da paisagem literária por ser capaz de retratar de forma lancinante o âmago da experiência de vida latina, ou seja um sentir caótico orgânico interminável e irrepetível. É tudo isto que Marquez consegue dar-nos a sentir sem nunca ter de o dizer, apenas relatando o que vê, através da sua peculiar forma de ver. Aliás essa é uma das enormes conquistas deste livro, conseguir dar-nos a experienciar tanto do interior dos personagens, sem nunca os colocar a falar, sem nunca nos mostrar o seu interior, toda a descrição é realizada sobre acções externas sobre o mundo, mas porque é feita em termos mágico-fantásticos permitem-nos um acesso muito mais profundo ao interior de cada um dos personagens. Acaba sendo paradoxal, um livro que trabalha sempre o mundo externo e no entanto praticamente impossível de adaptar ao cinema, isto porque o mundo descrito - as acções, pessoas, eventos, factos - apresentados não são nunca o real comum, mas um real próprio criado por Márquez, como se ele fosse dotado de uma capacidade especial de ver o mundo.

Enquanto português, e sendo latino, consigo aceder a um vislumbre das metáforas históricas que trespassam todo o livro, tal como a maioria dos restantes latinos, contudo acredito que o livro seja capaz de ir além em camadas de leitura para quem conheça de perto a história da Colômbia. Nesse sentido, é um livro que ganhará bastante com novas leituras, e com leituras mais informadas sobre a Colômbia, assim como sobre a vida de Gabriel Garcia Márquez que não deixa de estar também sempre presente.
"Até então, não lhe ocorrera pensar que a literatura era o melhor brinquedo que se tinha inventado para gozar com as pessoas"

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