fevereiro 14, 2015

Dostoievski, arte e autobiografia

Nada posso dizer de novo sobre “Crime e Castigo” (1866) de Dostoiévski, é um clássico, como tal escrutinado em todas as demais dimensões que possamos imaginar. Contudo aproveitarei estas linhas para dar conta da minha experiência com o livro. Escrito no século XIX nada lhe falta se comparado com o género literário tão em voga neste nosso século, o thriller psicológico. Os personagens e os seus problemas desmontados como quem desmonta um relógio suíço, a constante introdução de novos problemas e as suas reviravoltas, a gestão minuciosa do suspense através do ritmo a que cada nova informação vai sendo revelada. É um livro escrito para nos prender, ainda que mesmo que o não fosse, nos manteria interessados pelo seu personagem e a sua busca existencial. Nesse sentido acaba sendo uma obra intemporal, já que o âmago da discussão se prende àquilo que faz de nós seres-humanos.


Crime e Castigo” (1866), illustrações de D. Shmarinov, para edição russa de 1970

Crime e Castigo” é um relato do mundo realizado a partir do interior de uma alma amargurada. Dostoiévski coloca-nos sob a pele de Raskólnikov, e faz-nos sentir o peso do ser, do outro, da sociedade. É um relato imensamente poderoso, que muito deve à experiência pessoal do autor. Em 1849 Dostoiévski foi preso sob suspeita de conspiração contra Nicolau I da Rússia. Com ele foram detidos muitos outros, todos condenados à morte. No dia marcado para a execução, já estavam amarrados aos postes os primeiros quando chegou a ordem do Czar para comutar a pena por trabalhos forçados na Sibéria.
“A mágoa e a inquietude sem saída de todo aquele tempo, sobretudo das últimas horas, tinham-no oprimido a um ponto tal que agora se precipitava, literalmente, para a esperança que lhe abria aquela sensação plena, nova, íntegra. A sensação acometeu-o como um ataque: acendeu-se-lhe na alma como uma faísca e, num sopro, incendiou-o todo. Tudo nele se abrandou de vez, jorraram-lhe as lágrimas. Caiu de joelhos…” Dostoiévski, “Crime e Castigo” (1866)
À medida que vou recuperando a leitura de clássicos, e seguindo obras enaltecidas, dou-me conta do quão relevante é o peso autobiográfico de uma obra. Como a experiência pessoal de sentires, vivências, lugares, pessoas, vidas, medos e alegrias é importante no criar de lastro de sustentação do relato de uma história interessante, crepitante, capaz de se dar a uma total degustação por outro ser humano. A obra imaginada, deslocada do fio de vida de quem a escreve, pode até ser um exercício interessante, mas dificilmente contém o detalhe necessário à reconstrução cristalina de um espaço-tempo capaz de ombrear com a obra que se recria a partir das experiências vividas de um autor.

Isto explica, em parte, as razões pelas quais certos autores conseguem por vezes fazer uma obra, de rasgo genial, mas depois nunca mais voltam a atingir picos com a mesma intensidade. Aliás, isto vem de encontro à queixa do júri do prémio Nobel deste ano que referiu o facto de os escritores se acomodarem ao conforto da vida com bolsas, impossibilitando o surgimento de experiências de vida capazes de suportar novas ideias, novas abordagens, novos mundos. Mas isto não é uma queixa apenas deste júri, para quem vive no meio, e o gere enquanto editor, sabe que isso é uma realidade. Atente-se nas palavras de Bruno Vieira Amaral, autor de uma primeira-obra nacional de enorme sucesso junto da crítica em 2013, com vários prémios, e que em entrevista nos diz que não quer dedicar-se apenas à escrita, que irá continuar a dedicar-se a múltiplas outras coisas,
"Não quero viver da escrita, isso é uma armadilha... obriga a uma desmultiplicação... Sei como o meio funciona... obriga a decisões que podem ser más a médio, longo prazo para o trabalho do escritor. Muita produção, com um ritmo que rouba a liberdade de dizer 'vou escrever quando me apetecer'." (Bruno Vieira Amaral, in iOnline, 10.2013)
Isto sente-se bastante quando começamos a ler (ou a ver no caso do cinema) a obra de certos autores, nomeadamente os contemporâneos, que pouco mais fizeram na vida para além de escrever. Ao fim de 3 ou 4 livros ficamos com a ideia que dizem sempre o mesmo, que nada mais dali se pode esperar retirar. Não admira que criativos mais conscientes desta vicissitude da criação artística, pensem em renegar a arte que os consagrou. A título de exemplo veja-se Bela Tarr, retirou-se em 2011 depois de 30 anos e 9 filmes, atente-se às suas palavras:
“Ser cineasta é um belo trabalho burguês. Mas eu realmente não o quero fazer. Eu não sou um  verdadeiro cineasta. Eu sempre estive nisto pelas pessoas, e só queria dizer algo sobre as suas vidas. Durante 34 anos de cinema, disse tudo aquilo que queria dizer. Eu posso repetir, posso fazer uma centena de coisas, mas na verdade não quero aborrecer-vos. Não quero copiar os meus filmes. É isto.” (Bela Tarr, in IndieWire, 02.2012)
Num sentido completamente oposto, veja-se como António Lobo Antunes, com 24 romances publicados, se mantém ativo, e como se processa a escrita de cada nova obra sua. Como o processo mecânico e repetitivo toma conta da vontade expressiva, transformando o pessoal em maquinal.
“Cada vez mais escrevo sem plano. Sento-me e fico à espera de começar a ouvir a voz. Tenho de fechar uma parte da cabeça para que a outra funcione. E a mão começa a andar sozinha... Este livro está pronto há muito tempo. Não sei, não me lembro. Só escrevi. Não me lembro de nenhum, mesmo deste que estou a escrever. Leio a última linha e continuo.” (António Lobo Antunes, in Estante, 10.2014


ACTUALIZAÇÃO: 28 Fevereiro 2015

É interessante analisar como alguns dos autores mais consagrados viveram as suas vidas assentes em empregos que lhes permitiam ter o tempo e dinheiro para escrever nas horas livres. Num quadro publicado pela Laphams Quarterly podemos ver o que faziam autores como Charlotte Bronte, Kafka ou Faulkner. A escrita para estes autores estava longe de ser um emprego, uma obrigação, funcionava antes como escape, e ao mesmo tempo modo de expressão das suas experiências de vida diária.

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