fevereiro 26, 2015

EBA: Dança e storytelling

A dança como qualquer arte possui a capacidade de contar histórias. No entanto, e apesar de poder recorrer a elementos basilares como personagens e espaços, e poder ainda trabalhar a dimensão do movimento através do tempo, as suas necessidades formais tornam o desenho da narrativa um processo bastante complexo. Porque se a dança parece poder beber directamente de uma das artes mais relevantes no acto de contar histórias, o teatro, ela não deixa nunca de se aproximar do seu núcleo artístico central, que é a música. Vem esta conversa a propósito do espetáculo de dança “A Bela e o Monstro” posto em cena no Teatro Aveirense pela Escola de Bailado de Aveiro, nos passados dias 14, 15 e 16 de Fevereiro 2015.


Quem acompanha este blog sabe bem o quão me debato com a problemática da narrativa nos videojogos, nomeadamente as insuficiências expressivas no campo da interactividade para contar histórias. Por isso me interessou particularmente analisar neste espetáculo de dança os meios e os modos utilizados para contar a sua história. O espetáculo foi organizado por uma escola de bailado, sediada na cidade de Aveiro, mais focada no ensino da arte do que na produção de espetáculos. Desse modo, não esperava presenciar algo ao nível de um Royal Ballet, mas a verdade é que me surpreendeu, e bastante. Estamos a falar de um conjunto de bailarinas formado por alunas de ballet e dança contemporânea, dos 3 aos 18 anos, falta-lhes ainda muitos anos de experiência, o que só evidencia ainda mais toda a excelência do trabalho da produtora (Maria João Lopes dos Santos) e de produção e coreografia (Ana Capela, Cátia Cascais, Maria João Santos, Maria Jorge Maia, Maria Rui Maia e Mário Ferreira).

A forma como cada quadro da história foi composto, tanto nos cenários como nos personagens, permitiu-me entrar no espetáculo muito rapidamente, compreendendo as acções e empatizando com os bailarinos. O facto da produção recorrer a dança clássica e contemporânea potenciou por meio do contraste um ritmo muito emotivo, com a graciosidade do clássico a suceder-se ao abstracto rápido do contemporâneo. A divisão em três actos foi também muito bem desenhada, com as terminações a fechar em tons pesados, para incitar a ânsia de querer saber o que se iria suceder. Gostei particularmente do primeiro acto, muito movimentado e curto, deixando no espectador uma sensação de plenitude, e desejoso dos restantes actos. Mas o espetáculo como um todo, desenvolveu-se numa boa progressão em crescendo até ao final, sendo capaz de nos surpreender a cada novo quadro, ora pela coreografia, ora pela representação, conduzindo a um fecho de pano capaz de agitar em nós um forte impacto emocional e o desejo de voltar a contemplar interiormente a experiência vivida.




A dança é em essência uma arte do movimento do corpo, como tal, cinge a sua expressividade ao poder comunicativo do corpo e seu movimento. Quando encenada, pode ainda socorrer-se de um palco, o ambiente que pode estender, amplificar e contextualizar o que o corpo quer dizer. Contudo está-lhe de certo modo vedado o acesso à palavra e ao texto, correndo o risco de se converter em teatro ou ópera. Nesse sentido a dança, tal como a música, vive um certo dilema expressivo, porque tem de comunicar através de um meio simbólico não padronizado. Ou seja, os movimentos - gestos e posturas - que se fazem, contêm em si um enorme poder expressivo, contudo, e ao contrário da palavra/texto, não possuem um código partilhado (ex. alfabeto) que todos compreendem da mesma forma. Daí que um passo ou movimento de braços não possa ser descodificado por todos da mesma forma, cingindo-se a experiência da dança mais a uma apreciação estética e menos a uma assimilação de informação.




Aliás no campo dos códigos a dança está ainda mais isolada que a música, já que esta se pode catalogar em unidades, as notas musicais, e compor como um todo, em pautas musicais, sendo facilmente registada e comunicada. A dança tentou algo parecido, nomeadamente com o Labanotation, iniciada por Rudolf Laban nos anos 20 do século passado. Apesar de ser um sistema relevante, e que algumas escolas utilizam, parece ter servido melhor o mundo da robótica e computação do que a arte da dança em si. O problema é que um gesto, por mais perfeito que seja, tem sempre uma tão grande quantidade de variação possível, que se queda muito longe da possibilidade de estabelecimento de padrões, quantificadores unitários, à semelhança daquilo que fazemos na música. O ballet também desenvolveu toda uma terminologia própria, contudo, e apesar do detalhe e perfeccionismo, é algo mais abstracto que não diz referência apenas aos movimentos do corpo, mas ao enquadramento do corpo em cena, tornando a sua composição bastante mais subjectiva.

Apesar de tudo, mesmo que uma qualquer forma de anotação se tornasse o padrão no mundo da dança, tal como no mundo da música, seria sempre um sistema muito distinto de um alfabeto. A razão principal é que essa notação apenas dá conta dos valores sintáticos, ou seja da forma do movimento, não decorre daqui a possibilidade de conotação, associação de ideias, que possa elevar a comunicação de um patamar sintático a um patamar semântico. Ou seja, o sistema de anotação pode ser extremamente útil para a comunicação entre dançarinos e encenadores, mas o que se comunica diz respeito exclusivo à forma do movimento, não lhe atribuindo qualquer objecto, conteúdo ou mensagem.

A título de exemplo, um “plié” dá conta da dobra de joelhos, a denotação sugere-nos a imagem de alguém que se baixa, dobrando os joelhos para fora. Daqui não é possível intuir nada mais além do próprio gesto, apenas analisá-lo e categorizá-lo por comparação a gestos iguais executados por outros. Já a palavra “água” denota em nós de imediato a ideia de líquido transparente, mas não se fica pela informação estrita do que representa, mesmo sem contexto, ela pode gerar dentro de nós conotação, realizando rápidas associações de ideias que nos fazem atribuir àquela palavra ideias como: sede, banho, mar, rio, bem-estar, vida, etc.




Ora contar uma história depende exactamente disto, de apresentar estímulos que sejam capazes de levar as mentes dos receptores a construir associativamente sobre ideias próprias. A história é algo que alguém conta, mas que só existe verdadeiramente no momento em que se efabula na mente de quem a recebe. Ou seja, quando o ouvinte/espectador reconstrói no âmbito das suas experiências vividas, dos seus quadros mentais do mundo, os espaços, as personagens e as suas ações e lhes atribui uma forma narrativa, o sentido. A compreensão de uma história pressupõe assim que o espectador seja capaz de compreender o que lhe está a ser dito, mas mais do que isso, que seja capaz de integrar o que lhe é dito   naquilo que já sabe sobre o que é dito. E é aqui que a dança tem dificuldades, porque não tendo unidades concretas de estimulação de conotação, fica limitada à expressão do movimento pelo movimento, e os seus espectadores ficam limitados à apreciação do belo desse movimento, dos seus aspectos estilísticos e das competências.




Assim, torna-se relevante para mim identificar os modos como a dança faz frente a este problema. E não é que tenha identificado algo de novo no formato utilizado para encenar “A Bela e o Monstro”, eu é que me encontrei e compreendi. Dei-me conta que o modo como a dança enfrenta o problema é muito peculiar, embora de um ponto de vista psicológico não difira tanto dos outros meios. Assim o contar de histórias na dança funciona primordialmente a partir do uso de universos narrativos preexistentes, de preferência consagrados junto do público. Ou seja, em termos psicológicos, opera-se pelo lado da familiaridade com a história, utilizando o conhecimento previamente acumulado pelo espectador sobre a mesma, para que por meio da encenação de diversos “quadros” se possa ir relembrando a história na mente dos espectadores. Assim o espectador de “A Bela e o Monstro” não se dedica apenas a apreciar o movimento dos corpos, mas ainda a comparar cada quadro com cada imagem mental que guarda da história. Essa imagem mental pode ter sido gerada antes por lendas e mitos, um livro, um filme ou uma animação.




Mas eu dizia que não era diferente em termos psicológicos, porque é aquilo que o cinema mais faz nos dias de hoje com os seriados e as sagas. Para um espectador é muito mais fácil entrar num filme, para o qual já tem quadros mentais estruturados, sabe quem são os bons e os maus, onde moram e como se comportam. No entanto, enquanto o cinema, os jogos, livros ou séries TV, procuram uma constante progressão, ou regressão (prequels), da história, tentando por aí surpreender o espectador, a dança não o faz, porque não pode, mas também porque não necessita, a surpresa e o diferente aqui advêm do modo como cada encenador coloca em cena a história que já conhecemos. Neste sentido para um apreciador de dança não existe limite para o número de vezes que se vai ver “Lago dos Cisnes”, “Quebra Nozes”, “Romeu e Julieta”, “Sonho de uma Noite de Verão”, “A Bela Adormecida” ou “Cinderela”, o interesse acaba por jogar-se todo na coreografia que acompanha cada quadro.

E assim foi com "A Bela e o Monstro", reconhecendo os quadros, que podem ver nas várias fotografias deste texto, fui percorrendo a história que conhecia, comparando e integrando, enquanto me deliciava com a beleza dos movimentos e coreografias, apreciando a composição do todo, fruindo uma experiência estética completa.





Imagens seleccionadas a partir das fotografias captadas por Graça Bilelo.

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