janeiro 07, 2017

Do enfado do romantismo

Chegado a meio, acabei por ler o resto em diagonal, apesar de saber que surge em praticamente todas as listas dos melhores livros de ficção de língua portuguesa*. Passo a explicar.


Vitorino Nemésio doutorou-se com uma tese em Alexandre Herculano em 1934, tendo em 1936 editado um dos seus mais importantes contributos académicos, "Relações Francesas do Romantismo Português”. Serve isto para definir e delimitar o seu estilo literário ao romantismo, o que estaria na base e génese do seu, quase único romance (apenas mais duas pequenas obras 20 anos antes, e uma posterior, quase 30 anos depois), “Mau tempo no Canal”. Tendo o Romantismo iniciado-se com a Revolução Francesa, viria a sucumbir ao realismo na segunda metade do século XIX. Mesmo em Portugal, temos Alexandre Herculano e Almeida Garrett, seguidos por Camilo Castelo Branco, e já na reta final Júlio Dinis, a fechar o género por volta de 1870, altura em que surge Eça de Queirós e vira tudo do avesso no país, transformando por completo a face da literatura portuguesa, abrindo caminho ao realismo e a tudo o que isso implicaria não apenas em liberdade temática, mas discursiva.

Ora Nemésio, passados mais de 70 anos, volta atrás no tempo. Não o faz por acaso, estava-se em plena efervescência no que toca à discussão académica das delimitações cronológicas dos modelos literários do século anterior. Os seus escritos académicos disso são prova. Por isso surgir da sua pena um romance assente nestes modelos, faz todo o sentido para si, e para alguns académicos, mas não deixa de ser anacrónico.

Voltando ao início. Se fechei o texto na diagonal, não foi apenas por considerar a obra anacrónica, isso é apenas um efeito do tempo, embora mereça reflexão. Mas foi apenas por ter esgotado a minha quota de paciência para com o romantismo literário. Do ponto de vista teórico, deveria adorar o romantismo, pelos seus valores, motivos e objetos. Contudo quando aplicado, nomeadamente na literatura, satura-me. A tendência para o exageramento e subjetivismo que conduz ao obscurecimento do que se vai descrevendo, cansa-me. Mas o que mais me incomoda é que aquilo que seria de esperar do estilo, um aprofundamento do sentir (psicologia) dos personagens, dado o seu enfoque no amor e suas tragédias, é completamente fantasioso, diria mesmo inócuo. Comparando-se ao que o realismo fez com as descrições psicológicas, parece até que se inverteram papéis estéticos. Assim, se fiz o esforço com “Moby Dick”, acabei por já não sentir suficiente ímpeto para o fazer por Nemésio. Diga-se que a impressão causada em 1944 não é replicável hoje. Se na altura o romance era um género praticamente ausente no país, estando a literatura nacional quase refém da poesia, hoje não nos falta romance, prosa e ficção.

Não posso contudo deixar de dizer que Nemésio escreve de forma belíssima, tal como Melville. São vários os momentos em que nos quedamos a ler e reler, pelo prazer que nos dão certas descrições mais divagantes. Mas quantas são as vezes em que nos perdemos, não percebemos onde estamos, ou onde estão os personagens, nem o que dizem, ou porque dizem. Não é uma questão de vocabulário, que sendo rico é acessível. É mesmo de estrutura narrativa, de maneirismo na forma das descrições que se perdem no espaço e no tempo. É como se nada pudesse ser dito de forma clara, menos ainda direta, e fosse obrigatório emaranhar. Como se o criador em vez de descamar a realidade para nos a apresentar, a esboçasse com mais e mais camadas até que esta se tornasse irreconhecível, fora do alcance de quem não a viu a nu, dificultando a partilha entre quem conta e quem recebe, por ausência de imaginário comum.

Talvez noutra fase da minha vida, com mais tempo e calma, possa cá voltar para desfrutar o que agora não fui capaz.


*Listas de livros de língua portuguesa
12 Melhores Livros Portugueses dos Últimos 100 anos, 2016
As 50 Obras Essenciais da Literatura Portuguesa, 2016
Melhores Romances Escritos em Língua Portuguesa, Público, 2016
Melhores Romances Escritos em Língua Portuguesa, Restrito, 2016
Grandes Livros RTP, série documental, 2009

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