novembro 01, 2017

O Pai Goriot (1834)

Foi o meu primeiro Balzac, apesar de não ter sido a minha primeira escolha. Comecei com “Ilusões Perdidas” mas ao fim de pouco mais de 50 páginas, a falta de dinâmica associada ao número de páginas que me aguardavam (736) fez-me ir à procura de uma obra mais acessível. Segui para “O Pai Goriot”, uma vez que vinha rotulado de emblemático e simultaneamente tinha sido o seu maior sucesso de público, logo teria que ser mais acessível. Enganei-me, foram precisas quase 80 páginas para surgir uma cena de envolvimento do leitor, ainda assim a pouco mais de meio senti que devia desistir, não era para mim, no entanto persisti e ao fechar da última página dei por mim totalmente rendido à mestria de Balzac.


A razão para ter sido tão difícil entrar em Balzac prende-se essencialmente com algo que tenho vindo a identificar em vários autores — Stendhal, Eça, entre outros — que trabalham no fio da relação estética entre o romantismo e o realismo. Podemos quase chamar-lhes uma espécie de pré-realistas, no sentido em que trabalham os temas realistas, mas ainda agarrados a ferramentas românticas. A primeira evidência de tal é a beleza da lírica, a de Balzac é verdadeiramente sumptuosa, mas que acaba por privilegiar o belo da forma em detrimento da compreensão das ideias. A segunda evidência tem que ver com o modo como realizam as descrições dos espaços, apegando-se ao detalhe numa busca por afirmar a total realidade do que se relata, mas que acaba resvalando para o excessivo e hiperbólico, propriedades caras ao romantismo. Tenho no entanto de dizer que foi por este modo de trabalhar que chegámos à essência do que mais interessa no realismo, a complexidade dos personagens, e neste campo Balzac é magistral.

Deste modo se a narrativa começa bastante lenta, incapaz de nos agarrar, derivado de um excessivo trabalho de contextualização, aos poucos vamos conhecendo os personagens, e vamos compreendendo que eles são muito mais do que aquilo que nos pareceram no primeiro quadro, no segundo e no terceiro. As personagens são ricas em dimensões de si, porque pensam uma coisa mas procuram fazer outra; porque quando pressionadas pelo tecido social, respondem em função da figura que os pressiona mesmo que isso contradiga os seus princípios; porque na sociedade em que habitam, cumprem diferentes papéis sociais, sendo ao mesmo tempo: pais, amantes, amigos, inquilinos, patrões, esposos, sogros, ricos e pobres.

Pegando em toda esta belíssima caracterização de personagens criada por Balzac, podemos avançar para a temática de fundo de “Pai Goriot”, que se centra nos processos de ascensão social na cidade de Paris, no início do século XIX. Para o efeito Balzac coloca-nos no lugar de um jovem, Rastignac, chegado à grande cidade, provindo de famílias humildes, que vem atrás do elevador social da Educação, ou seja fazer o seu curso de Direito. No entanto a pensão em que fica vai levá-lo a conhecer uma miríade de diferentes personagens, cada um conhecedor de diferentes modos de ascender socialmente. Sendo vários deles muito relevantes, o principal é o Pai Goriot, que aí vive, antes detentor de grande fortuna, mas uma vez oferecida em dote às filhas, que depois o quase renegaram apesar dele não acreditar em tal, vê-se sozinho.

Cena final de Rastignac com o Pai Goriot

Ao longo do livro existe uma viagem continua entre os salões da alta-sociedade parisiense e os espaços mais pobres, como a pensão em que vivem os vários personagens principais, no entanto Balzac praticamente apenas decora os espaços pobres, deixando os da alta um pouco distantes. Neste sentido, e se no início da minha leitura sentia Balzac como mais um burguês tipo daquele século, daqueles que escreveram porque tiveram acesso a fortunas que os dispensaram da necessidade de procura de subsistência, à medida que fui avançando e fui entrando pelos personagens e relatos ficcionais adentro, fui compreendendo que tal detalhe seria difícil para alguém sem experiência do mesmo. Procurando então, verifiquei que Balzac tinha pais que lhe podiam assegurar uma vida cómoda mas não sem trabalhar, os seus pais provinham da pobreza tendo subido com grande esforço, não tendo tido Balzac casas de contactos e conhecimentos abertas diante de si, teve de trabalhar e procurar encontrar-se no meio do frenesim que era a cidade mais populosa daquele século.

Ao chegar ao último terço da obra, com todo o cenário composto, todas as personagens descritas e detalhadas nas suas multi-dimensionalidades, Balzac assume o controlo total do enredo, torna-se metódico no tom e ritmo, tendo eu sentido por vezes que estava a ler mais uma peça de teatro do que um romance, tal a força da dramatização criada. É nesta fase que vamos sentir verdadeiramente o impacto das posições sociais nas relações familiares, e em que Balzac começa a querer tirar-nos o tapete que sustentava a lógica e racionalidade, para nos manipular emocionalmente. Do meu lado, não pude deixar de me levar pela relação entre pai e filhas, por tudo aquilo que a paternidade nos concede, mas também tudo aquilo a que nos subjuga. Não pude deixar de me surpreender pela força do relato escrito ainda no início do século XIX, tão longe ainda das ideias de família nuclear que viríamos a adotar no século XX, mas que mostra bem como todos estes conceitos sociais provêm dos nossos instintos, da nossa necessidade absoluta do social.

O pai Goriot e as suas duas filhas

Dito tudo isto, a obra detém uma tal riqueza de variáveis passíveis de análise, que uma resenha de blog se torna manifestamente insuficiente para dar conta. Claro que não faltam extensas análises académicas, teses completas, sobre a obra e o autor. Também se diga que não é um texto para ser lido uma única vez, tendo em conta a complexidade formal da obra, e o enorme detalhe, é um texto que carece de segundas e terceiras leituras, em função do que se pretenda analisar em concreto. Também não é por acaso que Balzac não se deteve nesta obra única para realizar a sua análise da Sociedade, e se lançou na odisseia da sua vida, construindo aquilo que viria ficar conhecido como "A Comédia Humana", uma série de quase cem livros, mais de dez mil páginas, em que trabalhou infindáveis perspectivas do devir humano.

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