Mostrar mensagens com a etiqueta analise_jogo. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta analise_jogo. Mostrar todas as mensagens

abril 16, 2023

Assassin's Creed Valhalla (2020)

85 horas. São muito poucos os jogos em que investi tanto tempo. Mas surpreendente é ter feito isto apesar do jogo apresentar uma história fraca, cutscenes horríveis e um gameplay por vezes sofrível. Então porque andei tanto tempo por ali? Julgo que a explicação está no facto do mundo interactivo ser deslumbrante, visualmente assombroso. De cada vez que entrava no jogo, imergia, e ficava não menos de um par de horas a explorar o mundo. As mecânicas conhecidas da série tornam o universo muito amigável, permitindo que entremos no trilho da experiência e nos deixemos levar pelas atividades que conduzem à progressão ao longo do jogo. Tirando algum grinding, a viagem fez-se sem grandes sobressaltos, oferecendo a cada investida espaço de descoberta para contínua exploração e diversão.


janeiro 22, 2023

Game design em "Far Cry 5"

Não ia escrever sobre "Far Cry 5" (2018), pela simples razão de ser apenas mais um jogo de grande orçamento, de uma série que já vai longa, não me parecendo necessário dizer mais do que aquilo que já foi dito pelas várias revistas da área. Contudo, à medida que o tempo foi passando a memória da experiência que permaneceu fez-me voltar a ele vezes sem conta. Por isso aqui ficam alguns elementos que fazem deste trabalho uma obra excecional muito em particular no campo do game design, mas também na arte visual e storytelling. 

dezembro 31, 2022

Cyberpunk 2077 (PS5, p1.6)

Há já algum tempo que não sentia tanta satisfação ao chegar ao final de uma história. Tudo perfeito, talvez perfeito demais, num sentido convencional em que se estimulam os sentimentos por via dos valores da família, dos amigos e claro do casal romântico. Ainda assim, no meio de uma distopia pós-apocalíptica tecnológica, o cyberpunk, soube muito bem reencontrar as dimensões do humano como prevalentes. Em "Cyberpunk 2077", a máxima de Pawel Sasko, diretor do Design de Missões, “story goes first with everything” é uma realidade. Podemos navegar o mundo, podemos explorar todas as funções da nossa personagem, das tecnologias, das armas, dos carros, podemos envolver-nos numa miríade de confusões e pequenas missões, mas a história está sempre lá, o nosso personagem está perfeitamente delineado e impacta e é impactado pelo que acontece ao longo da nossa experiência. Não é um RPG tradicional, mas também não é mero Ação-Aventura, é um verdadeiro Immersive Sim, capaz de morfosear RPG, FPS, Stealth, Racing, Cartas, Plataformas e muito Survival, tudo oferecido num mundo aberto deslumbrante. 



novembro 30, 2022

"Twelve Minutes" (2021)

Acaba de ser publicado um pequeno texto com uma leitura sobre o modo como funciona o pensamento crítico a partir de uma análise do videojogo "Twelve Minutes" (2021), no nº2 do journal Hipothesis Historia Periodical. Neste texto dou conta do modo como criamos significado do mundo a partir de processos de comparação e depois aplico esses processos cognitivos ao modo como interpretamos e trabalhamos a resolução do videojogo. Está em acesso aberto.



Zagalo, N. (2022). “Twelve Minutes”: alternative as critical, in Hipothesis Historia Periodical, n.2, Casa Comum of the Rectorate, University of Porto [PDF]


setembro 04, 2022

O lago existencial

"Lake" (2021) é um videojogo despretensioso sobre questões existenciais, em particular a relação entre a ambição material e a felicidade pessoal. Jogamos na pele de Kate, uma programadora de topo, 44 anos, nos anos 1980, que decide voltar por duas semanas à vila em que cresceu, o que a vai obrigar a questionar-se sobre tudo o que conseguiu, assim como tudo o que perdeu. Tudo é feito usando a linguagem dos videojogos, sem recurso a grandes monólogos interiores ou filmes explicativos. Durante 15 dias, somos a carteira da vila, em substituição do pai, e temos de distribuir o correio todos os dias, reencontrando assim as pessoas que deixámos para trás. Tudo isto acontece num lugar sereno, junto da natureza e um belíssimo grande lago que contribui para a criação da atmosfera propícia à reflexão na meia-idade.


"Lake" foi desenvolvido, em Unity, pela empresa holandesa Gamious

junho 17, 2022

"Dot's Home", videojogo sobre problemas sociais

"Dot's Home" (2021) é um belíssimo videojogo narrativo, criado por uma equipa de criativos multimédia em conjunto com uma ONG focada na resolução de problemas sociais, nomeadamente de habitação e discriminação racial nos EUA. O jogo foi criado no âmbito de uma campanha transmedia, a Rise-Home Stories, que produziu para além deste jogo, mais quatro artefactos digitais narrativos: "Alejandria Fights Back!",  um livro para crianças, "But Next Time" um podcast, "MINE", uma web série animada e "Steal-Estate", uma experiência online interativa. O jogo foi apresentado no final de 2021 e está agora disponível gratuitamente na App Store, Google Play e Steam.

outubro 23, 2021

Kentucky Route Zero (2020)

Escondido sob a capa do surrealismo, corrente estética em que a causalidade é desconsiderada conduzindo a consideráveis violações estruturais da história, "Kentucky Route Zero" (KRZ) constrói todo um universo de referências desconectas que obrigam o jogador a ir atrás. Nada disto é original no mundo dos jogos — basta pensar em "The Beginner's Guide", "Everybody's Gone to the Rapture", "Inside". O que é aqui claramente distinto é o uso, diria abuso, do suporte texto. KRZ é muito mais ficção interativa do que jogo de aventura gráfica. A experiência prolonga-se por cerca de 10 horas, tendo sido publicado em 5 episódios entre 2013 e 2020, o que foi permitindo análises distintas no tempo, nomeadamente porque se inicia de forma imensamente promissora, pela inovação na narrativa interativa, mas termina num limbo quase-ausente de interação.

novembro 28, 2020

Porque nos atraem as distopias (“The Last of Us 2”)

Nos últimos anos temos sido servidos por distopias em tudo quanto é meio narrativo, da literatura ao cinema, passando pelos videojogos, a televisão e a banda desenhada, não existe espaço de criação cultural e de imaginário que não tenha exemplos férteis de cenários apocalípticos, do fim de tudo e de todos. Muito se tem falado sobre o seu caráter de antevisão, não faltando profecias sobre o tema, algo a que o fim do milénio não será também alheio, mas parece-me existir aqui algo distinto, algo de que me dei conta ao jogar “The Last of Us 2” (2020) de Neil Druckmann enquanto lia “Hiroshima” (1946) de John Hersey.

outubro 01, 2020

"Metro Exodus" (2019)

"Metro 2033" (2010) foi uma enorme surpresa, "Metro: Last Light" (2013) elevou a qualidade em todas as dimensões, nomeadamente direção de arte e narrativa, tornando difícil qualquer nova sequela e por isso acaba a não surpreender a sensação de mera incrementação de "Metro Exodus" (2019) que se limita a adicionar enxertos de mundo-aberto. A partir do meio da jornada já só o fechar da última página parece manter-nos a jogar, mas continuar até ao final leva-nos à redenção da experiência, do jogo como um todo, em impacto e prazer estético de uma forma quase memorável.

julho 30, 2020

"Death Stranding": clichés, banalidades e um final de fastio

"Death Stranding" (2019) vai de excelente a péssimo em 45 horas. Começa com um mundo-jogo espantoso, personagens e um enredo extremamente instigantes, ocupando todo o nosso interesse, conseguindo produzir uma imersão completa do jogador ao longo de todo o primeiro terço de jogo. No segundo terço, a história começa a estagnar, perde envolvimento, mas a jogabilidade ganha relevância, já dominamos o sistema de jogo, nomeadamente as potencialidades de jogo assíncrono e por isso o mundo ganha novo interesse. Mas, ao entrar na última parte dá-se o descalabro, a jogabilidade desaparece, adicionam-se tiros para aumentar a tensão, mas tudo não passa do walking simulator, e para ajudar, a história, à qual é oferecido de bandeja todo o enfoque do videojogo, tanto na sua estrutura narrativa como no conteúdo das ideias, parece arrancada a ferros de um filme de série B dos anos 1950. Mesmo a fechar, com tudo já tão mau, Kojima resolve estender, quase infinitamente, o contar da história, repetindo vezes sem conta os mesmos argumentos, ao ponto da impaciência e fastio tomarem conta de de nós. Não admira então que 90% dos jogadores tenha chegado ao final do segundo capítulo, 50% ao final do quarto, e só 29% ao fim do jogo.

dezembro 20, 2019

“Eliza”, a IA como psicoterapia

O melhor de “Eliza” é sem dúvida o enquadramento da história que conta, centrada nos problemas da Inteligência Artificial e da quebra da privacidade, apresenta um novo ângulo da discussão, o potencial da IA como suporte à saúde mental, partindo da premissa: e se todos pudéssemos ter acesso a sessões de psicoterapia com IA? É um tema que poderíamos ver no mundo de “Black Mirror”, além de bastante atual, não apenas pela recente grande evolução da IA, mas por todos os desenvolvimentos tecnológicos que vêm sendo introduzidos na área da saúde. “Eliza” parte desta aparente atualidade, mas vai além, lança ideias para um futuro próximo e questiona-nos sobre um dos maiores flagelos das sociedades desenvolvidas: a doença mental.
Sendo um jogo interativo, as dúvidas emanadas do uso da tecnologia, a diferença entre humano e tecnologia no suporte aos humanos acaba surgindo como centro das nossas escolhas, do mundo em que acreditamos ou desejamos acreditar. Será uma máquina mais eficaz na leitura dos problemas que assolam as nossas mentes, os nossos Eu? Será a máquina mais objetiva e concreta, capaz de desafiar as nossas constantes dúvidas e incertezas? Poderemos confiar nas propostas de uma máquina imparcial?

“Eliza” apresenta várias propostas inovadoras, desde logo a ideia do Proxy. As consultas de psicoterapia não funcionam apenas numa relação humano-máquina, mas são mediadas por um outro humano que serve apenas de veículo à IA. Neste sentido destaca, desde logo, a necessidade do outro, a necessidade de sentir o conselho emanado por um igual, e não uma mera máquina que não poderá nunca sentir a dor do humano. Um outro ponto imensamente interessante acaba surgindo a partir das lutas empresariais e detém-se sobre a questão do sofrimento e da sua necessidade para a nossa felicidade. Filosoficamente falando, poderemos ser felizes se nunca nos sentirmos infelizes, se deixarmos de sentir a dor?

Enquanto videojogo é ficção interativa suportada por uma boa camada de ilustração gráfica, sem movimento nem animação, ou seja, uma “visual novel” ou história visual interativa. Como tudo se move ao redor da história e dos diálogos, a elevação da experiência assenta no texto e nas nossas decisões, relevando para segundo plano a componente audiovisual. Em termos de narração interativa, podemos dizer que temos um bom trabalho, embora sinta que o seu forte é mesmo o enquadramento da história, ficando as nossas decisões demasiado presas ao mero progresso narrativo.
Interessante foi perceber no final dos créditos que o jogo surgiu como fruto de uma residência artística interdisciplinar de Matthew Seiji Burns em Inglaterra, tendo eu depois percebido que Burns é também o co-criador do belíssimo "The Writer Will Do Something" (2015).

dezembro 16, 2019

"Neo Cab" (2019)

"Neo Cab" é o jogo narrativo de 2019. O tema assenta num cyberpunk não muito distante, quase relacionável com os dias de hoje, no que toca a uso de redes sociais, Uber e IA, o que acaba por funcionar muito bem em termos de dramatização das ansiedades sociais atuais: o desemprego pela automatização, as diferenças humano-máquina, a vigilância e a perda de privacidade, o isolamento e o distanciamento da natureza. Em termos formais, temos uma narrativa multilinear com múltiplas escolhas, mais centradas no diálogo, mas com implicações no desenrolar dos eventos. O melhor de tudo acaba sendo a escrita, ou seja, a capacidade de introduzir os temas complexos no meio das discussões e de nos fazer pensar sobre eles.



O jogo usa jogabilidade da gestão de corridas de táxi/uber para nos envolver no universo. Temos várias noites de trabalho, estamos numa cidade nova, e temos de fazer 3 circuitos diários, cuidando das estrelas que nos atribuem, recarregar a energia do carro escolhendo os locais mais em conta, assim como arranjar hotel todas as noites para descansar. No meio de tudo isto a narrativa desenrola-se pela conversação que encetamos com todos aqueles que vamos apanhando na cidade. A progressão, tanto no jogo como na narrativa, está imensamente cuidada, garantido grandes níveis de engajamento. Não raras as noites, queremos continuar, porque queremos saber mais, queremos ajudar, queremos descobrir, queremos avançar.



A imersão é ainda conseguida pela interface muito assente em grandes planos das faces, mesmo que estas nem sempre se concertem com o que está a ser dito, aproximam-se. Mas garantem uma proximidade com alguém ali na nossa frente, sem que, contudo, isso tenha implicado um grande investimento da equipa, em termos de recursos gráficos e de produção (é um jogo indie, e custa menos de 20 euros). Sem dúvida que o que leva o jogo às costas é a história e a sua escrita, tanto a componente linear, como as nossas escolhas.


No campo das escolhas, o mais importante de uma narrativa interativa, houve o cuidado de trabalhar as mesmas em duas frentes — racional e emocional. Não podemos sempre escolher o que queremos, existem condicionantes emocionais que por vezes nos impedem de reagir. Podemos de algum modo sentir a nossa liberdade recortada, por outro lado, é desta forma que conseguem garantir personalidade à Lina, a nossa condutora Uber. Ela não é uma mera extensão de nós, tem vontade própria, tem ansiedades e desejos, e nós enquanto jogamos não estamos meramente a controlar um universo interativo por meio dela, mas estamos a aprender sobre ela e com ela. No fundo, é assim que os autores conseguem gerar empatia entre nós e a Lina, e ao mesmo tempo produzir a enorme sensação de engajamento que sentimos com o jogo. Estamos, na esfera narrativa, mais do que um jogo, isto é uma história, e o que “Neo Cab” faz é construir um acesso privilegiado que o recetor usa não apenas para sorver a história, mas por meio dela experienciar uma realidade distinta da sua, o que é conseguido através da reflexão e consequente tomada de decisões dentro do mundo-história.

janeiro 08, 2019

Red Dead Redemption 2, um mundo-história admirável

“Red Dead Redemption 2” (RDR2) fica como sinónimo do mais completo e irrepreensível mundo-história criado até hoje nos videojogos, o que é diferente de dizer que é um videojogo perfeito. A experiência criada pela obra, ao longo de mais de 60 horas, vai para além daquilo a que o cinema nos habituou, aproximando-se, amiúde, da experiência literária, mantendo, no entanto, sempre a sua marca como videojogo. O que impede a obra de ser perfeita é talvez também aquilo que a torna tão singular, a teimosia da visão pessoal, autoral, do seu diretor criativo Dan Houser (44), nomeadamente no design de jogo e de narrativa.



Parte I
Começando pelo melhor, e mais impactante, o mundo-história. É uma vitória da multidisciplinaridade entre a arte e a tecnologia, contando para o efeito com todo um trabalho de qualidade elevada em quase todos os domínios das artes narrativas — mundos, personagens e eventos — das artes visuais — modelação (elementos estáticos: arquitetura e geografia; e dinâmicos: pessoas e animais), texturas, iluminação (atmosfera e clima), animação, cinematografia ¬— das artes sonoras — design de som e música — assim como artes cénicas — performances, guarda-roupa e palcos (interiores e exteriores). Mas este trabalho artístico, de altíssimo nível, só se dá à criação desse mundo-história admirável porque conjuntamente com este se estenderam até ao limite as possibilidades tecnológicas que garantem a vivacidade do mundo, assentes numa variedade de sistemas computacionais, nomeadamente inteligência artificial de suporte ao movimento, a animação de todo o mundo, tanto nos campos áudio e visual como sistemicamente, com a rede de eventos e micro-eventos, por via das uniões, interseções e interdependências, a garantir níveis impressionantes de organicidade.



A entrada no mundo aberto pleno, na primeira visita que fazemos a uma vila, logo após a fase introdutória do jogo, é de total estupefação, os nossos olhos nem querem acreditar no que estão a presenciar, a navegação pelo universo é quase surreal, ultrapassando tudo o que o cinema ou os parques temáticos já nos tinham oferecido. Não é questão de interatividade, é acima de tudo um trabalho de direção de arte, que ao contrário do que acontecia no cinema, em que se construíam maquetes para filmar e se procuravam geografias alusivas, pode aqui controlar tudo desde o primeiro ao último pixel. Temos paredes, portas, janelas, carroças e palanques de madeira que transpiram texturas de madeira, lama no chão que brilha com chuva e levanta em pó com o sol, tal como as roupas, os cabelos e as peles, todas as formas nunca perfeitas, nunca iguais, nunca simétricas. Ao que se juntam miríades de objetos —cordas, laços, roupas, candeeiros, caixas, cartazes, quadros, fotografias, armas, guitarras, cachimbos, etc. etc. — pendurados nas paredes, nas portas, nas carroças, nas pessoas. Mas se o mundo estático impacta, é o seu movimento, a miríade de animações que suportam as pessoas, nas suas formas de andar particulares de cada personagem, os animais — cães, cavalos, galinhas, pássaros, esquilos — que correm e saltam, as carroças que atascam na lama, que andam mais rápido em descidas do que em subidas, as suas rodas que ficam carregadas de lama e sobem quando pisam pequenas pedras, é a luz do sol e as sombras das nuvens carregadas que nos fazem sentir cada momento, como um momento vivo.

Claro que se fosse isto, uma representação em movimento, era uma animação excecional mas não diferente de outras maravilhas que o cinema de animação já nos ofereceu, a diferença é que este mundo descrito não surge apenas em pequenos quadros e durante breves segundos, este mundo está ali pronto a ser experimentado pelo tempo que nós quisermos e em 360º. Por isso, não basta animá-lo é preciso garantir a sua interatividade, e aí a Rockstar vai aonde nenhum jogo foi, com centenas de pessoas singulares — com traços extraídos de mais de 1200 atores — em movimento contínuo nas vilas, tratando das suas vidas, com quem podemos falar, que sempre têm uma palavra para nos dizer ou uma expressão para fazer. Ao que se juntam quase duas centenas de animais, cada um com o seu comportamento, e capaz de se relacionar com humanos assim como com outros animais, em função do seu lugar na cadeia alimentar. E ainda, meios de transporte — carroças, diligências, comboios, trolleys, barcos, barcos a motor — dezenas de armas e equipamentos — lanternas, máquina fotográficas, laços, binóculos, canas de pesca, sacolas e peles.

Todo este manancial de elementos em movimento é gerido por um sistema complexo que fornece vários níveis de autonomia a cada camada do universo, conseguindo criar a ilusão de um mundo onde penetramos, tal Alice, e sentimos como realidade, vivo. Esta componente orgânica acaba por ser responsável pelo nosso deslumbre, não apenas pela beleza e complexidade, mas também pela capacidade de nos surpreender graças ao que vai emergindo da junção de tantos elementos e das suas interações, tal como nos surpreendemos todos os dias com o mundo em que vivemos.

Parte II
Passando agora àquilo que impossibilita RDR2 de ser perfeito, e que tem servido para impedir o mesmo de ganhar os maiores galardões dos festivais de videojogos — o Design de Jogo — tenho de dizer que até ao final, antes de entrar nos dois epílogos, considerei que eram meras opções estéticas da Rockstar e Dan Houser, mas quando começaram a subir os créditos, e vi como tinha sido tratado o Design de Narrativa, fui obrigado a redimir-me e aceitar as críticas que vêm sendo feitas. Aquilo que foi feito com estes dois epílogos, juntamente com o design de jogo das missões, mostra uma teimosia artística incapaz de aceitar o conhecimento e savoir faire do design. Começo pelo jogo e depois falarei da narrativa.

A Rockstar tem fama pela incoerência do design entre o mundo aberto e as missões. Nos mundos, os jogadores podem fazer quase tudo o quiserem, mas nas missões não podem fazer nada que não esteja pré-estabelecido, algo que as discussões recentes têm gostado de confrontar com uma suposta superioridade do mundo aberto e agência de "The Legend of Zelda: Breath of the Wild" (ver Mark Brown e Discussão sobre agência em RDR2). Discordo desta visão, desde logo porque muito daquilo que Zelda faz é a custa de uma narrativa vazia, mas porque o problema da Rockstar não é esse, esse é antes uma consequência de uma opção estética, ou obsessão, e que tem que ver com o facto da Rockstar se manter agarrada a um ideal que foi ultrapassado pelas necessidades do meio, a imitação cinematográfica. Assim, procura diminuir ao mínimo possível os sistema de informação de suporte ao jogo (UI ou HUD), mantendo a interação quase toda a um nível diegético, impedindo que se utilizem sistemas de feedback de competências e experiência (Skill Trees) ou de progresso (analíticas e métricas de mundo e equipamento), como fazem hoje todos os jogos em mundo-aberto, de "Assassin’s Creed" a "Witcher 3" (2015) ou "Horizon Zero Dawn" (2017). Ora sem estes sistemas, que organizam todo o mundo virtual, e oferecem feedback ao jogador, torna-se complicado, se não impossível, fazer passar aquilo que vamos fazendo no mundo aberto para as missões da história. Nas entrevistas Rob Nelson, um dos produtores de RDR2, fala muito do sistema de Honra, que vai ficando mais negativo ou positivo, consoante o modo como nos vamos comportando, mas na verdade isso nunca afeta o desenrolar das missões. Do mesmo modo, temos de comer, porque ficamos magros ou gordos, mas isso não impacta nada no resto do jogo, porque o jogo não tem um sistema de feedback que alerte o jogador. O jogador não pode estar a meio de uma missão e cair para o lado com fome ou sono, se ele não sabe a percentagem de fome ou sono que ainda lhe resta quando decide entrar na missão. Ou seja, o jogo “fala” com o jogador apenas por meio diegético (mostra que estamos magros ou que temos olheiras, mas para determinar o impacto desse feedback, seria preciso todo um manual de nuances e tempo de aprendizagem para ler esses sinais) mas esse não é suficiente para criar sistemas com a complexidade do que se espera de um mundo-aberto. Pode funcionar, em jogos lineares e bem delimitados, como “The Last Guardian” (2016), mas é impossível de realizar num jogo abrangente como RDR2.

Por fim, o design de narrativa, mas aqui tenho de avisar que entrarei com spoilers, mas avisando. Antes de atacar os epílogos, dizer que existe muito de genial neste jogo, no campo do design de narrativa, sendo o melhor, o início de cada missão. Todas, sem exceção começam com Arthur a seguir para a missão com um ou vários companheiros, a cavalo ou a pé, durante o que se dão breves conversas, que estão magistralmente bem escritas, não apenas porque realizam toda a exposição necessária, sem precisarmos de qualquer cutscene, como pela performance desse guião se consegue criar o sentimento de cada um dos 23 indivíduos que constituem o gangue de Dutch, Arthur e Marston. Mas se isto é o melhor, acaba sendo também responsável pela separação forte, em termos narrativos, que se sente entre o mundo-aberto e as missões, porque apesar de a Rockstar dizer que todos os personagens reagem a nós, e são dotados de imensas linhas de diálogo e expressões, a verdade é que nenhuma dessas capacidades dos NPC se compara nunca a nenhuma das performances que “vivenciamos” com cada um dos elementos em cada missão. São esses momentos, em que nos preparamos para avançar para a “quest”, que nos fazem entrar no espírito daquele gangue, compreender quem são aquelas pessoas, o que as uniu e mantém unidas, o que as singulariza e acaba dando toda a vida de que RDR2 é feito.  Nestes momentos respira-se forte inspiração literária, e por mero acaso andava a ler "David Copperfield", sentindo a momentos algo no tom que aproximava imenso RDR2 de Dickens. Parecia-me estranho até que li uma entrevista com Dan Houser, em que este dizia que se tinha servido de centenas de referências, "mas nada contemporâneo para não o virem a acusar de roubar ideias", dando conta de Henry James, Keats, Émile Zola, Arthur Conan Doyle, frisando esta pérola — "Mas não há maior personagem na história da literatura do que Uriah Heep" — uma personagem de "David Copperfield" de Dickens, explicando o que senti, e tanto daquilo que temos por detrás daqueles personagens do gangue.


*** Spoilers *********************************

Epílogos. RDR2 termina verdadeiramente quando Arthur Morgan morre. Basta procurar as resenhas, as leituras e tributos feitos na net ao jogo, e veremos que Arthur é o personagem que agarrou o imaginário dos jogadores (https://www.youtube.com/watch?v=ES1Td5Pm2IE ). O personagem está imensamente bem escrito, e é suportado por uma performance e curva dramática soberbas. O jogo é sobre Arthur, não sobre John Marston. Sim, antes de RDR2 a audiência vivia fascinada por Marston, ele seria o ego da série, e talvez isso também tenha pesado na decisão de criar dois epílogos de 3 horas cada um, para nos colocar a jogar como Marston, mas foi um erro colossal como podemos ver em vários textos na rede (Forbes, VGR, Collider). Quando Arthur morre, senti o zénite de RDR2, senti a perfeição de uma história, a sua mensagem total ali plasmada e fechada. Os dois epílogos oferecem nada, mesmo a parte final, da morte de Micah, é completamente irrelevante, se era para matar alguém, era Dutch quem queria morto, desde que ele abandonou Arthur à sua sorte. Ainda assim, se os epílogos fossem uma ou duas missões na quinta, para fecharem em modo espiritual, agora horas a fio de tarefas inconsequentes, com mais gangues sanguinárias, e apenas Marston e três amigos para encher. Quando cheguei ao final dos epílogos já nem queria ouvir a música da banda sonora, só queria desligar, fechar, de tão aborrecido que estava. Para mim, não se tratou de nenhum epílogo, mas antes de dois DLC enxertados no final do jogo, um dedicado a Abigail e outro dedicado aos três amigos — Tio, Charles e Sadie e à Quinta. O design de narrativa falha completamente na gestão emocional do jogador, não aproveita a relação criada com a personagem, que deixou marca, para fazer o jogador passar por dois epílogos distantes, sem qualquer relação emocional com as 50 horas que tinha acabado de jogar.

****************************************************

Dito tudo isto, quero fechar apenas dizendo que RDR2 é uma das maiores conquistas desta geração de videojogos. Tecnicamente será superado pela próxima geração, mas o Gangue de Dutch e Arthur Morgan ficarão na memória dos videojogos, nomeadamente na de todos aqueles que jogaram esta maravilha do entretenimento, arte e design.


Referências
Red Dead Redemption 2: A deep dive into Rockstar’s game design, VentureBeat
Red Dead Redemption 2 – how advanced AI and physics create the most believable open world yet,  VG247
The Story Behind the Story of ‘Red Dead Redemption 2’, Variety
How the West Was Digitized The making of Rockstar Games’ Red Dead Redemption 2, Vulture
Red Dead Redemption 2: The inside story of the most lifelike video game ever, Entrevista Dan Houser pela GQ
Rockstar Games Reveals New Plot Details for 'Red Dead Redemption 2', Entrevista com os diretores de arte, Hollywood Reporter
Red Dead Redemption 2 Is True Art, NYT
Avec Red Dear Redemption Interview Rob Nelson, JeuxActu 

dezembro 24, 2018

“Gris”, experiência sensorial

Desconfiei da beleza visual de “Gris” (2018) porque foram inúmeras as vezes, no passado, em que tal se revelou mera superfície sem qualquer substrato. Algumas das resenhas que li inclinaram-me mesmo a deixá-lo para jogar apenas em 2019. No entanto, algo fez com que o comprasse na Steam junto com mais alguns jogos nas promoções deste Natal. Por isso, se sabia que a ilustração me ia deslumbrar, esperava pouco do resto, nomeadamente acreditava que a jogabilidade seria fraca, e que por isso o fluxo seria um tanto arrastado, tudo muito suportado no campo visual apenas. Nada poderia estar mais errado, “Gris” é um exercício de completo domínio de todas as artes envolvidas na criação de um artefacto interativo: da ilustração à interação, passando pela câmara, animação, som e música.



Sendo um jogo de plataformas, não se espere nada que o relacione com outros plataformas deste ano, seja “Celeste” (2018) ou menos ainda “Iconoclasts” (2018) ou “Dead Cells” (2018). “Gris” é uma experiência singular, não existe nada que se lhe assemelhe, é uma obra marcada por uma intensa direção artística. Posso talvez invocar, no plano visual, “Child of Light” (2014), e no campo experiencial, do fluxo interativo, o trabalho de Jenova Chen, “Journey” (2012). Mas se Chen é um visionário do fluxo de interação, Conrad Roset é apenas um artista de aguarela, o que quer dizer que “Gris” não é uma obra de uma pessoa apenas.

A equipa por detrás de “Gris” é composta por três pessoas, todas baseadas em Barcelona. O artista Conrad Roset (1984), que já expôs um pouco por todo o mundo, desde o MoMA em Virginia, ao Show Studio em Londres, passando pela Steven Kasher Gallery em Nova Iorque ou TiposInfames em Madrid, imensamente comissionado para trabalhos de ilustração, possui um significativo número de seguidores. Desenvolveu um estilo próprio, facilmente reconhecível, assente na aguarela colorida em contraste com fortes formas a tinta preta, socorrendo-se bastante da silhueta e sensibilidade femininas como motivação. Em segundo, temos Roger Mendoza que trabalhou na última década na indústria AAA, fazendo programação de IA e gameplay, essencialmente para a série Assassin’s Creed, tendo trabalho no "Assassin’s Creed III" (2012), "Assassin’s Creed IV" (2013) e "Assassin’s Creed: Syndicate" (2015). E por fim, Adrian Cuevas, outro especialista em tecnologia e programação, que também veio dos AAA, onde esteve envolvido em “Far Cry 3” (2012), “Tom Clancy's Rainbow Six: Siege” (2015), e “Hitman: The Complete First Season” (2017). Mendonza e Cuevas resolveram deixar os AAA, e em 2016 juntaram-se a Roset para criar o Nomada Studio em Barcelona. Com dois especialistas em tecnologia, treinados ao mais alto nível para garantir a fluidez do gameplay, e um especialista em arte visual, algo de qualidade teria de ser possível criar.




As competências que suportam a criação de “Gris” explicam porque a ideia que tinha, do indie belo mas gorado, não aconteceu. Roset tinha uma visão criativa, mas Mendoza e Cuevas sabiam como lhe dar forma, como a sustentar ao longo de 5 horas, e contribuir para o densificar dessa visão. Quando se entra em "Gris" e começamos a jogar, mesmo não sabendo nada sobre as pessoas por detrás da obra, sentimos de imediato um trabalho altamente apurado, refinado e polido por alguém que sabe muito bem o que está a fazer. Além disso, estes tiveram ainda a humildade de procurar quem sabia mais do que eles, em áreas como a animação, o irmão de Roset foi buscar Adrian Miguel, que já tinha trabalhado em "Invizimals", e para o sound design, Mendoza trouxe Ruben Rincon, que já tinha trabalhado para “Assassin’s Creed III” e para o português “Between Me and the Night” (2016). Para coroar todo este trabalho, e encorpar completamente as aguarelas de Roset, posso dizer que a entrada de Berlinist, banda composta por Gemma Gamarra, Luigi Gervasi e Marco Albano e responsável pela banda sonora, eleva o jogo em vários patamares experienciais. Os Berlinist trabalham bastante no campo ambiental e atmosférico, em certos momentos pareceu-me existir um traço futurista, a fazer lembrar a banda sonora de "Blade Runner 2049" (2017) de Benjamin Wallfisch e Hans Zimmer.

Pegando neste último ponto, o da experiência, é nele que “Gris” mais investe. Na minha modelação do Design de Experiência tenho dividido o mesmo em três camadas — funcional, sensorial e significado. “Gris” não está propriamente focado no significado, em contar uma história, “Gris” desenvolve-se completamente no plano sensorial. Ou seja, “Gris” trabalha a interação pela forma, busca impactar e transportar emocionalmente o jogador, mais do que fazê-lo pensar nesta ou naquela ideia. Assim como a narrativa não é o fundamento, o jogo também não o é, ele está lá como está a história, mas são ambos suporte. O foco são mesmo as imagens e a música que juntos garantem uma experiência audiovisual interativa única, suficientemente abstrata para que possamos preenchê-la com as nossas experiências, deixando-nos guiar pelo pautamento emocional que nos vai sendo imposto.

dezembro 22, 2018

Lógica no suporte da narrativa

"Return of the Obra Dinn" (2018) é o último jogo de Lucas Pope, mais conhecido pelo brilhante "Papers, Please" (2013), que volta a colocar-nos no lugar de um profissional que tem de executar um trabalho, neste caso somos um perito de uma agência de seguros que tem de fazer um relatório sobre o que se terá passado num barco perdido em alto-mar no século XIX, que entretanto deu à costa. O jogo assume o velho desenho das histórias de detetives, e nós assumimos o papel do detetive, só que desta vez não temos de descobrir uma morte mas sessenta.





Dividiria "Return of the Obra Dinn" em dois grandes momentos: a descoberta de todas as mortes ocorridas no barco, à medida que vamos descobrindo cadáveres, que por meio de uma bússola mágica nos permitem ver o momento, visualmente congelado, em que morreram, e assim vão dando estampa a todas as páginas do livro, que vamos utilizando para tomar notas para enviar à seguradora; e o segundo, o da decifração de quem são essas pessoas e como é que morreram. O primeiro momento tem a particularidade de acontecer em modo reverso, seguindo a abordagem narrativa de "Memento" (2000), o que contribui para aumentar a complexidade do segundo, na decifragem dos eventos. Estes dois momentos são responsáveis pela criação de um terceiro, apenas no nosso plano mental, que é a reconstrução da história de como tudo aconteceu e que acaba sendo a grande motivação para jogar até ao final.

O passar do decifrar de 1 morte para 60 não é mera quantidade para aumentar a duração do jogo, é antes responsável pela criação de uma teia vasta e profusa de elementos, automaticamente ligados por estarem todos num mesmo espaço, o barco, mas órfãos por pertencerem a pessoas que não conhecemos e já estão mortas. Cabe-nos a nós, enquanto investigadores, reconectar todos os elementos, conjecturar a partir das evidências, dar-lhes lógica e inseri-las na grande narrativa do que aconteceu ali. É isto o jogo, e por isso se a base poderia facilmente ser passada a outro formato não-digital, a dimensão do que está em jogo torna isso completamente impossível, ainda que nos vejamos obrigados a recorrer a caderno de notas e lápis reais para nos ajudar a reconstruir o que vamos experienciando no jogo.

Não se pode dizer que seja um jogo revolucionário, muito longe até de algumas resenhas que se viram nalguns sites de referência dizendo que pela primeira vez se sentiram verdadeiros detetives. Basta recuar ao brilhante "The Last Express" (1997) de Jordan Mechner, ou mais recentemente "LA Noire" (2011) ou "Sherlock Holmes: Crimes and Punishments" (2014). Mas e o que dizer da enorme quantidade de jogos de aventura gráfica dos anos 1990 que usavam e abusavam do mistério e do detetivismo para motivar o jogador na progressão narrativa, dos quais temos o grande expoente "Myst" (1993), mas também "7th Guest" (1993) ou "Phantasmagoria" (1995), e porque não falar dos seus sucessores, os walking-simulators, nomeadamente com "Dear Esther" (2012) e "Gone Home" (2013). Todos estes exemplos dão conta de uma vertente de excelência do jogo, o "storytelling ambiental", mas não se fica por aí. Numa outra vertente, um outro jogo em que pensei bastante, à medida que ia avançando, foi "Her Story" (2015), pelo modo intrincado do design de todo o sistema que interconecta as centenas de indícios. E por fim, no campo específico da forma, das sequências congeladas em 3d que nos permitem investigar o espaço em redor de cada momento e obter indícios, embora aqui não saiba dizer quem chegou primeiro, já que os jogos saíram ambos este ano, podemos olhar para "Detroit" (2018) de David Cage que explorou exatamente o mesmo conceito.

Ou seja, "Return of the Obra Dinn" não inova num sentido radical, mas também não tinha de o fazer. O que se pedia a Lucas Pope era uma experiência ludo-narrativa, e essa temo-la. Resta-nos avaliar se enquanto tal nos faz sentir, e se o faz, como o faz, se ocupa suficientemente a nossa mente e se se regista nas nossas memórias. Quanto a isto, não há dúvidas, a resposta é cabal: "Return of the Obra Dinn" é uma experiência de grande prazer e objetivamente inesquecível. O primeiro embate é de enorme estranheza, todo o universo visual cria distância, mas à medida que vamos investindo tempo no jogo e vamos assimilando as suas mecânicas, compreendendo as suas vontades e motivações, vamos sentindo-nos em casa, com o que vem o desejo de ali permanecer mais e mais tempo, ao que se seguem as descargas de adrenalina do suspense e mistério e da dopamina pela descoberta das evidências e conexões. "Return of the Obra Dinn" é um artefacto complexo, mas elaborado num detalhe imensamente cuidado, que vai da lógica do sistema à plástica audiovisual, incluindo a banda sonora, criando uma experiência única.

dezembro 21, 2018

Metanarrativas de uma nova sociedade, num videojogo

Que mais se pode pedir a um videojogo que nos faz refletir sobre aquilo que somos, sobre a sociedade em que nascemos e a que estamos a criar para deixar aos nossos filhos? “Florence” (2018) é um jogo extremamente simples, criado para telemóvel, mas munido de uma história que apesar de aparentemente também simples, é capaz de nos lançar nestas interrogações.


Sendo um pequeno jogo surpreende pela boa integração do design. Apesar de usar mecânicas bem conhecidas (ex. puzzles) estas são potenciadas pela história, ganham valor semântico, o que demonstra o cuidado tido na produção do jogo. Este mesmo cuidado é espelhado na arte, tanto no campo visual minimalista mas imensamente coerente, que se socorre da forma e cor conjugadas com a banda sonora (fazendo uso da sonoridade do violoncelo) para dirigir as nossas emoções. Nada disto surpreende se pensarmos que o autor por detrás do trabalho é Ken Wong, criador do brilhante "Monument Valley" (2014). Já agora, não esquecer que a editora de "Florence" é a Annapurna Pictures, que tem desenvolvido um trabalho notável no cinema, e no campo interativo conta com um portefólio bastante coerente. Claro que o ponto alto desta experiência é a narrativa, que sendo tão realista levou alguns críticos a rotularem o artefacto de jogo sério. Bem, só se quiserem rotular os romances de Hollywood também como sérios, ou então dizer que no mundo dos videojogos, o entretenimento só pode acontecer por via de tiros, magia e fantasia.

As várias mecânicas, apesar de lembrarem pequenos mini-jogos, são integradas como parte da história, ou seja, as ações conduzem a progressão narrativa.


*** Spoilers ***

Em “Florence” somos uma mulher citadina, vivendo só, à distância da mãe, num trabalho que não a entusiasma e um hobby que nos agrada. Conhecemos a nossa cara metade, e seguimos com ela todo o percurso narrativo da paixão, do entusiasmo ao seu desaparecimento. A mesmíssima história que já vimos e lemos milhares de vezes no cinema, na televisão, na literatura, no teatro. Mas aqui, e noutras representações mais recentes deste “girl meet boy”, o padrão alterou-se. Se no passado, a separação do casal era o clímax da tensão para intensificar o sabor da reconciliação, agora a separação é uma oportunidade de transformação e crescimento. Passámos de uma narrativa que nos parecia tão natural, o encontro entre dois seres e o lançamento da base para uma nova família, uma nova comunidade de suporte à sociedade, para o indivíduo, dono do seu destino a solo, pensando apenas sobre si e em si.

Ou seja, a ideia de que as metanarrativas desapareceram pela fragmentação das possibilidades acaba sendo uma falsa ideia, já que ela acontece na mesma, como se pode ver bem neste jogo. O encontro entre humanos é uma necessidade potenciada pelo sexo e pela paixão, mas temos vindo a racionalizar essa necessidade, não de um modo consciente, mas pela própria pressão a que estamos sujeitos nas nossas vidas, que acabam conduzindo-nos a um recolhimento sobre nós mesmos. Já não temos tempo para nada nem para ninguém, quanto mais para formar um casal que tanto exige, menos ainda pensar em descendência que nos roubaria tudo aquilo que sonhámos ser enquanto indivíduos. Queremos continuar a crescer, continuar a transformar-nos, continuar a ser crianças merecedoras de mimos, a ouvir o enaltecer das nossas competências individuais. Mais do que construir uma sociedade, estamos a construir bolsas de indivíduos que se sustentam em estruturas abstratas (leis, regulamentos, cidades e políticas) que vão mantendo as sociedades a funcionar...

Claro que estas reflexões são minhas, foram algo imediatas, mas por detrás destas existem outras não menos relevantes: como o empoderamento da mulher, ou a subversão da formatação pela sociedade, entre outras. E é por isso mesmo que o jogo é tão relevante, por abrir a discussão.


Nota: A constante troca entre o "nós" e "ela" faz parte da experiência que é despoletada pela linguagem própria dos videojogos que nos coloca no lugar de uma personagem, um avatar, levando-nos a assumir por vezes o lugar "dela", e outras o de nós mesmos.

dezembro 20, 2018

Lebensborn, os videojogos como cultura

Foi a primeira vez que ouvi a palavra "Lebensborn" que significa "fonte de vida", mas é também o nome dado pelo regime Nazi a um programa que tinha como objetivo aumentar a natalidade de crianças de raça ariana, a partir de um conjunto de pessoas classificadas "racialmente puras e saudáveis", centrado na Alemanha e na Noruega. O programa procurava oferecer suporte a mulheres não casadas, inicialmente mulheres arianas que tinham tido filhos de membros das SS, encorajando-se nascimentos e partos anónimos de mulheres nas casas dos programas com reconhecimento do estado Nazi. O videojogo "My Child Lebensborn" (2018) inicia-se no pós-guerra, e relata o modo como a sociedade norueguesa reagiu a estas crianças. Não é um jogo fácil, é duro, bastante violento em termos emocionais e morais, e mostra como os genes continuaram a servir ideologias mesmo depois do fim da guerra.


Como jogo, é um artefacto muito simples que recorre a estruturas de gestão de recursos, do tipo tamagotchi, mas que nos coloca na pele de educador de uma criança de 8 anos, fazendo-nos atravessar a sua entrada na escola, cuidando por forma a definir a sua personalidade através de um conjunto de decisões complexas que vamos tendo de tomar sobre o que achamos ser melhor para a criança, sobre como deve ela reagir ao mundo que a afeta. Apesar de ser um pequeno jogo móvel, oferece várias horas de jogo, a ponto de conseguir criar um forte envolvimento com a criança, de a sentirmos cada vez mais próxima quanto mais vamos investindo no jogo. A criança de quem tomamos conta, nasceu de mãe norueguesa e pai alemão no tempo da Guerra. A mãe não o quer, o pai arranjou outra vida, os avós não o reconhecem, a sociedade abomina-o. Cabe a nós conduzir o seu crescimento até ao ponto mais saudável possível.

Os capítulos desbloqueados no final dão conta da Estrutura Narrativa.

Em termos de estrutura, temos um arco narrativo a permear todo o desenrolar de eventos e ações, com alguns altos e baixos que nem sempre vão sendo suficientemente apoiados pelo design de jogo. Ou seja, por vezes existe a necessidade de criar tensão, ou introspeção, e os designers optam por inibir as ações no jogo, mas não de uma forma direta (ex. retiram a criança de cena, ou da ação, sem explicação) e isso acaba afetando a jogabilidade, já que do ponto de vista da funcionalidade nos interrogamos se aquilo que está a acontecer faz sentido narrativo, ou é mero bug informático. Ainda assim, e a bem da experiência, tenho de dizer que foram múltiplas as vezes em que me comovi com os eventos relatados e as consequências.


No final, quando fui procurar saber mais sobre o "Lebensborn", e quando achei que já não poderia chocar-me mais, descobri que para além de fomentar a procriação desenfreada de filhos de mulheres arianas, chegaram a estabelecer-se redes de raptos pelo norte da Europa, que tiravam crianças com traços arianos às famílias. Para além disto, quando as crianças que nasciam de mulheres arianas nestes programas não apresentavam os traços esperados, eram enviados para campos de concentração, ou internados em hospícios dados como doentes mentais...

Os números não têm qualquer relação com os milhões de judeus mortos, estamos a falar de cerca de 10 mil crianças neste programa, mais cerca de 10 mil raptadas, mas não são os números que me tocam, é a brutalidade, é a total ausência de humanismo que começa na ideologia Nazi e prossegue com a recusa do povo norueguês na aceitação destas crianças, completamente inocentes. É algo humanamente transcendente, e é algo tratado por um videojogo que dá assim mostras da sua total maturidade enquanto medium, enquanto produtor de cultura.

O jogo foi criado pela Sarepta Studios, e está disponível para iOS e Android.

dezembro 15, 2018

"A Way Out", obrigatório dois para jogar

Josef Fares é autor de um dos mais importantes jogos desta década, “Brothers: A Tale of Two Sons” (2013), tendo conseguido inovar no cruzamento entre a linguagem cinematográfica e a linguagem da interação. Por isso quando foi anunciado que no seu novo jogo seria obrigatório duas pessoas para fazer avançar o jogo, as expectativas aumentaram exponencialmente: 'o que estaria Josef Fares a congeminar com o potencial da interação partilhada?' O resultado pode ser agora jogado em “A Way Out” (2018), e se no geral não nos surpreendeu, porque abusa dos clichés de Hollywood, no final consegue marcar-nos emocionalmente e deixar-nos na ânsia pelo próximo.

“A Way Out” (2018) de Josef Fares

O jogo começa inteiramente colado à atmosfera de “The Shawshank Redemption” (1994) passando depois por “Escape from Alcatraz” (1979), chegados cá fora, iniciamos uma viagem primeiro mais pastoral pelo interior rural americano, à la “Cool Hand Luke” (1967), seguido de uma fuga à policia à lá “The Sugarland Express” (1974), incluindo família,  que de tão alucinante quase mais parece “Fast & Furious” (2009), o que não é completamente inocente tendo em conta o que se revela perto do final sobre os personagens. Continua-se a viagem e voa-se para o México para ir atrás de Harvey, uma espécie de Fausto Alarcón de "Sicario" (2015), ambos colados a Tony Montana de “Scarface” (1983). No final temos uma luta, com armas e punhos, rumando a um ambiente de um qualquer “Bourne” (2002-2016). Como se tudo não bastasse, um dos principais personagens é o irmão do diretor, Fares Fares, imediatamente reconhecível de Westworld (2018) mas também de “Zero Dark Thirty” (2012). Já no campo dos jogos, por vezes sentimo-nos em "Uncharted", outras em "Life is Strange" (2015). Exposto tudo isto, fica evidente a quantidade de clichés de que se faz o universo cinemático criado por Josef Fares, o que é pena, porque não havia necessidade. Não me parece que faltem ideias a Fares, nem me parece que o público dos videojogos tenha de ser tratado como se só conseguisse acompanhar uma história quando ela é marcada por um ritmo de Hollywood. Assim não adianta nada Fares andar a mandar f@der os Oscars (já agora o jogo peca por excesso de asneiredo completamente desnecessário).




Em termos de interação segue-se “A Way Out” vem bastante colado a “Brothers” com uma fluidez algo presa mas aprazível, se bem que por vezes deixando um pouco a desejar, facilitando em excesso a vida ao jogador. Já no campo do gameplay, é onde se goram mais as expectativas, já que o engenho apesar de interessante, rapidamente entra em repetição, acabando por raramente nos surpreender. Ou seja, se é engraçado termos de colaborar para realizar ações, muitas vezes isso acaba por nos desligar da atmosfera narrativa, porque ficamos mais a pensar na pessoa que está a jogar connosco do que no jogo. Por outro lado, e ao contrário “Brothers” existe um claro excesso de cinemático vs. Jogo/interação o que por vezes gera alguma frustração. Se a isso juntarmos os clichés, percebe-se rapidamente porque o jogo tem dificuldade em atingir notas máximas.



O melhor é mesmo a componente emocional que Fares controla muito bem por via das cinemáticas e acima de tudo da música, com um jogo que exige pouco do jogador e está mais disposto a criar uma experiência pronta a ser sorvida. Já a sequência final é digna de ser jogada por todos, e voltar a ser jogada, e voltar a ser jogada, que foi o que aconteceu cá em casa. Percebemos claramente que não é um filme, e que nem sequer se trata apenas de carregarmos simultaneamente no mesmo botão, é antes algo que um filme nunca nos poderia dar, o sabor da picardia, a tristeza pela descoberta da verdade, o choque perante os nossos personagens, o querer ganhar a todo o custo, e o rematar de um enredo que nem sempre tem de seguir o caminho moral aguardado.

dezembro 09, 2018

A narrativa excecional e o design por vezes arcaico de "God of War"

"God of War" (2018) não é uma experiência revolucionária, mas tal como já tinha acontecido na primeira série, iniciada na PS2, que também não o era, é um jogo capaz de utilizar várias componentes criativas dos videojogos em níveis de excelência e assim oferecer uma experiência bastante elaborada. Diria mais, que GoW tem vindo a servir para mostrar o que é possível fazer com a linguagem dos videojogos, dando conta, em cada novo jogo, dos parâmetros mais estáveis do meio. Ainda assim, e apesar de ser uma experiência, do ponto de vista estético, muito boa, tanto consegue apresentar elementos excecionais como elementos meramente satisfatórios. Nas próximas linhas detenho-me nos elementos que geram o contraste.

Atreus e Kratos apresentando as roupas e armaduras que lhes atribuí no final.


A) EXCECIONAL

1 - O tratamento da narrativa, desde o cruzamento de enredos a toda a relação destes com a arte de suporte aos personagens por via dos atores, assim como toda a arte de suporte ao ambiente desde a arte visual, à sonora e animação. É isto que torna "God of War" tão poderoso, e o reconhecimento por tal é oferecido nos créditos, com a equipa de Narrativa a surgir em primeiro lugar, logo após o diretor e produtores, seguida do Design, Programação e Arte (sobre as equipas e seus lugares na produção e desenvolvimento de videojogos ainda falarei noutro post).

Kratos

2 - A história, tanto do jogo como na sua relação com os jogos passados. A história não é decoração nem mero suporte ao jogo, a história é o pilar que sustenta a razão do jogo existir. Mas ela só se eleva a esse patamar pela presença de Atreus (filho de Kratos), que obriga a história a sair dos elementos externos de Kratos, que por via da mitologia nórdica são bastante coesos, para se focar no seu interior, algo que só é possível por via do filho, já que este funciona como autêntico espelho psicológico. Por outro lado, e agora entrando na história, existe uma coerência na manutenção da firmeza de Kratos, que é um deus, por oposição à belíssima progressão de carácter de Atreus que está em crescimento, mas que é não é apenas um deus (não revelo o resto porque entraria no detalhe da história).

Kratos e Atreus

3 - As performances dos atores, nomeadamente de Jeremy Davies como Baldur, que é talvez das melhores performances algumas vistas num videojogo, desde sempre. Interessante, como quanto mais avança o 3d e os jogos se vão tornando quase fotoreais, maior vai sendo a necessidade de atores reais. Nesse sentido, Sunny Suljic oferece uma belíssima transformação a Atreus ao longo de todo o jogo, já Christopher Judge (Stargate) mantém a firmeza de Kratos completamente inabalável.

Stranger e Kratos

Atreus, Baldur e Kratos

4 - O design dos combates, na sua fluidez e relação com as artes visuais e sonoras, capaz de oferecer pura adrenalina e ao mesmo tempo descargas de dopamina via progresso e impacto estético.


B) SATISFATÓRIO 

1 - Os resquícios de um game design ultrapassado, nomeadamente pelas arcas que se vão encontrando em todo e qualquer canto e as batalhas que surgem a metrónomo. Este problema sente-se com maior força durante toda a primeira metade do jogo, em que se opta por atrair os fãs da série, e por isso não dedicar muito espaço à progressão narrativa.

2 - O design do espaço, com demasiadas áreas a impossibilitar o jogador de avançar sem que os elementos do terreno deem qualquer razão para tal. Ou seja, não só o jogo está ainda demasiado linear, como força o jogador a fazer o que quer ou necessita para fazer progredir a experiência. Isto é tanto mais evidente no facto de todas as interações com o mundo serem apenas possíveis quando surge o círculo, o que é um péssimo indicador do trabalho de design.

3 - Se a câmara está desenhada de forma magistral, com um constante vai-e-vem entre interativo e não-interativo, existindo um responsável na equipa especificado como "narrative camera animation",  acaba por assumir uma preponderância tal, diria mesmo obsessiva no controlo da câmara, a ponto de por tudo e por nada, nos ser retirado o controlo do jogo apenas para poder gerar a experiência estética desejada.

4 - Esta obsessão por guiar, orientar, alinhar, no fundo forçar uma determinada experiência atinge o cume na total ausência de design de estruturas ou sistemas no campo da narrativa. A história oferece-se como experiência completamente fechada, com a agência num nível quase zero, ao jogador resta-lhe seguir e assistir passivamente ao desenrolar dos eventos.


Para que os amantes do jogo, e são muitos, a julgar pelo Metacritic, tanto dos críticos como dos jogadores, não digam que estou a ser injusto e que estou sozinho nestas críticas, deixo-vos com as notas de Adrian Chmielarz, diretor de "The Vanishing of Ethan Carter" (2014), com as quais me identifico bastante.


C) SÍNTESE

GoW é uma experiência deslumbrante, capaz de tocar as nossas teclas mais humanas, da exaltação à empatia. Enquanto artefacto, representa uma vitória das artes narrativa e visual sobre o design, com a história a tudo comandar, a arte a tudo obrigar, e o design simplesmente a aceitar em modo subserviente. No final senti-me dividido, mas nem por um momento arrependido do tempo investido.