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março 09, 2014

Estética do Excepcionalismo Americano, "Bioshock Infinite" (parte I)

Comecei por escrever um texto sobre a experiência de Bioshock Infinite mas em virtude da quantidade de ideias e discussões que este despertou em mim, vi-me obrigado a dividir o texto em duas partes, tanto pela extensão como pelos assuntos a discutir. Assim apresentarei nesta primeira parte, um texto sobre a arte e tema, e numa segunda parte um texto sobre o design de jogo e de narrativa.




"Bioshock Infinite" (2013) de Ken Levine é uma montanha russa de emoções estéticas, principalmente geradas pelo cenário e toda a arte visual que suporta o jogo. A entrada em Bioshock Infinite assemelha-se à entrada num parque temático, perfeitamente construído, extremamente coerente, e fortemente atractivo. Toda a componente visual é levada ao extremo do detalhe, nomeadamente no campo da arquitectura e escultura, e ainda com um controlo de luz impressionante capaz de captar os menores brilhos do cenário.

Se no tempo somos atirados para 1912, no espaço somos introduzidos a um dos elementos mais impressionantes do jogo, a cidade flutuante. Uma cidade impossível que contribui para o desenho do imaginário central de Bioshock Infinite, capaz de realizar à nossa frente algo que conhecemos apenas dos mundos do fantástico. Toda a cidade, banhada por uma luz magnífica capaz de dar a ver os detalhes mais ínfimos, subjuga-nos à contemplação e ao êxtase.

Mas para se compreender completamente Bioshock Infinite é preciso compreender as raízes estéticas que alimentam todo o seu ambiente visual, sonoro e narrativo, e que se podem encontrar de forma concentrada debaixo de um movimento político designado de Excepcionalismo Americano. Não sendo uma corrente estética, orientou uma forma de estar no final do século XIX, fruto de vários eventos decorridos no seio dos EUA com um forte apoio de cultura oriunda de França. À medida que escavamos o tema encontramos mais e mais ligações estéticas, culturais e políticas, e é sobre elas que me irei deter neste texto sobre Bioshock Infinite.

Uma das melhores sínteses sobre o Excepcionalismo Americano pode ser encontrada, ainda antes do termo ter sido cunhado, em “Democracy in America” de 1840 por Alexis de Tocqueville,
“The position of the Americans is therefore quite exceptional, and it may be believed that no democratic people will ever be placed in a similar one. Their strictly Puritanical origin, their exclusively commercial habits, even the country they inhabit, which seems to divert their minds from the pursuit of science, literature, and the arts, the proximity of Europe, which allows them to neglect these pursuits without relapsing into barbarism, a thousand special causes, of which I have only been able to point out the most important, have singularly concurred to fix the mind of the American upon purely practical objects. His passions, his wants, his education, and everything about him seem to unite in drawing the native of the United States earthward; his religion alone bids him turn, from time to time, a transient and distracted glance to heaven. Let us cease, then, to view all democratic nations under the example of the American people.”
Neste texto podemos perceber o optimismo e o enfoque dos interesses da cultura subjacente a este período da história americana, e que serve quase de sinopse ao mundo ficcional que podemos visitar em Bioshock Infinite. Mas Bioshock Infinite eleva a sua abordagem ao extremismo político apresentando uma visão do mundo fortemente influenciada pelo chamado Manifesto do Destino do século XIX, defendido por uma facção política mais extremista, que assentava a sua visão em três pilares:
  • A Virtude do povo Americano e das suas Instituições
  • A Missão, espalhar a palavra e refazer o mundo à imagem dos EUA
  • O Destino traçado sob o desígnio de Deus
Esta visão mais extremista foi desencadeada por vários factores, nomeadamente a conquista do Oeste americano, que significou a chegada da civilização por meio da modernização - telégrafo, comboio e cultura - assim como pela própria independência dos EUA que passou a ser personificada pela figura de “Columbia”, nome criado a partir do nome do descobridor da América, Cristovão Colombo (Columbus) e da finalização “ia” do Latim para região, como Lusitania ou Britania. Assim Columbia passaria a significar os EUA, sendo uma figura que se pode ver espalhada por muita arte do final do século XIX e início do XX, tal como podemos ver aqui abaixo, e que é em Bioshock Infinite o nome escolhido para atribuir à cidadela aérea.

"American Progress" (1872) de John Gast. Neste quadro podemos ver a personificação de Columbia que carrega para o chamado Oeste Selvagem a civilização com as linhas de telégrafo, o comboio e a cultura dos livros.

Cartaz americano de apelo ao patriotismo durante a Primeira Grande Guerra. Columbia assume as cores da bandeira americana e apresenta os traços visuais que iriam imbuir toda esta estética. 

Mas Columbia não é apenas a personificação dos EUA, ao surgir neste período da história dos EUA, ligada ao descobridor das américas e à colonização do Oeste, acabaria por se transformar no símbolo máximo do Excepcionalismo Americano, com a ideia de avanço civilizacional permitido pelo desenvolvimento tecnológico da engenharia. Temos aqui assim o renascer de um confronto de movimentos surgidos no século XVIII com a transição do Iluminismo para o Romantismo, assumindo o lado da razão impulsionado pela ciência com o lado místico suportado pela emocionalidade.

Muito interessante perceber como uma parte forte deste choque se suporta na divisão entre as culturas Inglesa e Francesa que estarão também presentes no nascimento de Columbia. É em Inglaterra que o Iluminismo tem a sua maior expressão com Isaac Newton, Francis Bacon e John Locke, embora de França também venha Voltaire, entre outros, mas é em França com a emergência da Revolução Francesa em 1792 que se recupera o humanismo e daí o enfoque no sujeito e emoção, deixando de lado a frieza da lógica da ciência. Por outro lado a circularidade da história não deixa de ser surpreendente, já que a própria grande Revolução Francesa acabaria por surgir como um reflexo do povo francês ao levantamento do povo americano contra a monarquia Britânica. Tudo isto é bastante mais complexo que esta síntese que aqui faço, mas é um resumo que dá conta do que me interessa para definir o mundo ficional de Bioshock Infinite.

Assim no final do século XIX vamos ter um conjunto de obras francesas fruto destes movimentos do final do século XVIII que acabarão por traçar o fundamento daquilo que podemos hoje definir como Estética do Excepcionalismo Americano. Entre estas obras estão,

  • Voyages Extraordinaires, conjunto de histórias de Jules Verne de 1863 a 1905
  • Estátua da Liberdade, 1886, de Auguste Bartholdi, oferecida pela França aos EUA
  • Torre Eiffel, de Gustave Eiffel, construída em França em 1889
  • Estátua da República, 1893, de Daniel Chester French, na Chicago Columbian Exposition
  • Ferris Wheel, 1893, de George Ferris, na Chicago Columbian Exposition
Estas obras acabariam por convergir todas no evento que se pode considerar o lugar de nascimento do Excepcionalismo Americano, a Expo 1893 em Chicago, EUA, que receberia o nome The Chicago Columbian Exposition, a partir da ideia de comemoração dos 400 anos da chegada de Cristóvão Colombo à América. Em resposta à grande exposição de Paris, e a sua Torre Eiffel, Chicago verá surgir a primeira Roda-Gigante, a Ferris Wheel, que acabaria por ser depois imitada e seguida por quase todos os parques temáticos até aos dias de hoje. Assim o que temos nesta altura é por um lado o desenvolvimento tecnológico capaz de apresentar as suas maiores conquistas, quase como resposta aos anseios imaginários revelados por Jules Verne, e por outro lado a emergência estética de um classicismo, que ficaria conhecido como Neoclassicismo. Este movimento fundava-se no iluminismo, na razão e busca académica, e ao mesmo tempo primava pela busca da perfeição lógica e visual nos clássicos gregos da filosofia e escultura, conseguindo unir o mundo da lógica e emoção, numa visão de um mundo optimista, limpo, saudável, uno e coerente.

Claro que se tudo isto servia para criar um mundo melhor, à semelhança do melhor que a ciência conseguia revelar sobre os avanços realizados pelos nossos antepassados, falharia na capacidade de corrigir erros do passado, nomeadamente na criação de elites, de classes dominantes e classes subservientes. Ainda hoje continuamos a socorrer-nos dos escritos de pensadores como Sócrates, Platão e Aristóteles, mas hoje temos consciência do mundo em que viveram, e das suas limitações sociais. Sabemos que a sociedade que objectivavam era diferente daquilo que acreditamos ser hoje uma sociedade ideal. E o mundo ocidental evoluiu, não conquistámos todo o imaginário de Verne, mas andamos lá perto, contudo e apesar de tudo isso em 2014 continuamos a sofrer dos mesmos problemas que seccionavam a sociedade, que a dividiam entre os que tudo podem e os que apenas se podem submeter.

Hoje já não temos uma guerra entre a Monarquia e o Povo, hoje temos uma guerra entre os CEO das grandes empresas e bancos, cotados em bolsa, e o Povo. Os vários movimentos Occupy que surgiram nos EUA nos últimos anos e se vêm espalhando um pouco por todo o mundo, dão conta desta divisão, nomeadamente do 1% que ganha tanto como os restantes 99% juntos. E é por isso que se vem falando que se sente no ar o aproximar de uma Nova Revolução Francesa, que pode não acontecer nos próximos anos, mas acabará por acontecer cedo ou tarde, se nada for feito para alterar o rumo do desenvolvimento.

Cartaz do movimento internacional Occupy

E é exactamente nesse plano que Bioshock Infinite se coloca, colocando-nos no centro de um mundo ficcional avançado tecnologicamente, recorrendo a uma estética de projectar o futuro do final do século XIX, recuperando uma cruzada política de então, que continua a manter-se. Ken Levine consegue assim tocar na especificidade de uma realidade americana, que é também internacional, criticando o chamado movimento Tea Party, e ao mesmo tempo a candidatura de um chefe da igreja mórmon e empresário detentor de uma enorme fortuna, ganha na especulação financeira, Mitt Romney, a presidente dos EUA.

Cartaz de propaganda política de promoção das políticas xenófobas dos fundadores de Columbia em Bioshock Infinite. O cartaz acabou sendo utilizado pelo Tea Party na sua página do Facebook.

Bioshock Infinite critica de forma assaz inteligente o estado da sociedade, em que uma Vox Populi luta pela liberdade da tirania, opressão e de expressão, apresentando um mundo que de tão belo choca brutalmente com a ausência de direitos das pessoas que o habitam. Um mundo capaz dos maiores avanços tecnológicos, mas incapaz de viver em paz e harmonia, impondo a lei pela força, de forma ditatorial e aberrantemente teocrática. Elevando o coeficiente de interpretação, poderíamos dizer que o aspecto teocrático de Bioshock Infinite serve de crítica àquele que é na sociedade atual o governador de todas as acções, o dinheiro. A detenção de mais e mais dinheiro parece prometer o paraíso, a Columbia, e para isso tudo deve ser feito, nem que seja à custa de passar por cima dos outros ou privando-os de direitos.

Voltando à estética e apenas para fechar esta primeira parte da análise de Bioshock Infinite deixo uma dica para quem quiser experienciar este universo visual, façam uma visita à Disneyland Paris, e visitem toda a área da Discoveryland, e depois passem pelas Discovery Arcade e Liberty Arcade, duas ruas cobertas paralelas à Main Street, poderão assim mergulhar no mundo visual de Bioshock Infinite.

Discoveryland, Disneyland Paris, área do parque dedicada à ficção científica

Um dos vários cartazes que se podem encontrar na Discovery Arcade, Disneyland Paris

 Mural na Liberty Arcade, Disneyland Paris, apresenta a história da Estátua da Liberdade


Parte 2 da análise a Bioshock Infinite