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junho 17, 2016

“Fallout 4” (2015)

A melhor definição que encontrei para dar conta da experiência desenvolvida por “Fallout 4” foi, “intoxicante”, referida por Peter Brown. O mundo de jogo, os personagens, as quests, o storytelling interativo, tudo está desenhado e integrado no sentido de gerar uma das experiências mais imersivas que podemos encontrar nos videojogos. Peca por ir pouco além de "Fallout 3", no entanto consegue manter todos os seus atributos e gerar toda uma nova experiência capaz de nos fazer esquecer o nosso próprio mundo.




Começando pelo menos bom, e já tendo frisado a pouca transgressão face a “Fallout 3”, não posso deixar de apontar o dedo ao desenho de personagens, medíocre e inaceitável para um jogo AAA. Apesar do bom desenho 2d, é manifestamente insuficiente para as necessidades 3d, com má animação, fraca expressão corporal e facial, fraca interação, e acima de tudo os shaders, muito muito fracos, quase ao nível da computação gráfica dos final dos anos 1990, início de 2000. Fica a dúvida se foi propositado, este nível menos articulado do design de personagens, para se assemelhar ao mundo futurista-retro, ou se foi uma opção de produção, investir mais na componente narrativa e menos no esplendor visual.

Estranhamente muitos destes problemas não se replicam no ambiente virtual que consegue criar vários momentos de pura beleza visual, e aqui também indo para além de “Fallout 3”, nomeadamente no uso da cor, no detalhe do mundo e suas alterações atmosféricas. Temos áreas opressivas, carregadas de escuridão, nuvens ou chuva, mas temos momentos de sol aberto em que a natureza se dá, brilha com um fundo de céu azul  e dá gosto estar ali. Por outro lado, ora estamos no meio das ruínas e escombros dos restos deixados pela humanidade, ora encontramos restos muito bem mantidos, com seu sempre típico toque de design americano dos anos 1940, que dão conta de vidas normais, na praia, nos carros, nas salas de estar.

Mas se existe área em que "Fallout 4" se excede é em toda a camada de interação, no design de jogo e agência. A jogabilidade funciona em três grandes modos — exploração e criação; batalha e ação; e história — permitindo-se que o jogador defina qual dos modos é mais relevante para si. Desde logo a escolha do nível de dificuldade contribui para a  definição destas três abordagens — com o fácil dirigido à história e o difícil às batalhas — mas aquilo que vamos preferindo fazer no jogo acaba por ser aquilo que mais contribui para definir o modo, ou seja, o jogo não se impõe mas dá-se ao jogador.

No campo da “exploração e criação” temos o deambular por um mapa enorme, repleto não só de edifícios que se podem visitar por dentro, mas também as colónias que podemos ajudar a criar e a manter, para o que precisamos de coleccionar itens que otimizem não só os nossos recursos tecnológicos, mas também os das nossas colónias. Uma componente de jogo dirigida a quem gosta de jogos que apelem à criatividade, vontade de construir, e experimentar novas ideias.

Diria que o menos conseguido é o de ação, porque sendo um jogo de ação-aventura continua a manter muita da sua rigidez proveniente da base RPG, embora menos que o seu predecessor. Ou seja, apesar de termos um leque de armas imenso, e de podermos desenvolver muitas ações no reforço bélico, assim como termos de passar grande parte do jogo em lutas territoriais, as sequências de batalhas parecem sempre algo inarticuladas, falta uma base de stealth capaz de elevar as estratégias, embora com  a vantagem de serem dotadas de enorme agência, já que o jogador vai tendo grande liberdade no delinear das suas próprias estratégias de ação.

Por outro lado, o melhor de "Fallout 4" dá-se no modo história, nomeadamente, e porque tal como com as batalhas, permite atingir níveis de agência bastante elevados, não precisando sequer de nos colocar face a dilemas ou escolhas limite para nos fazer sentir parte do mundo, abrindo mão de muito controlo narrativo para garantir um verdadeiro sentimento de participação na construção do mundo-história.

Por muitos defeitos que possamos apontar a “Fallout 4” a sua elevação no campo da narrativa interativa, a capacidade para nos questionar e fazer refletir, muito depois de abandonar o jogo, sobre o mundo que ajudámos a criar, sobre as opções que tomámos, como teria sido se tivéssemos agido de modo distinto, é absolutamente brilhante. Temos um mundo ambiente habitado por imensas pequenas comunidades que acabam fazendo parte de um conjunto de quatro grandes grupos ou fações, com as suas próprias ideologias, sendo nós obrigados a passar por quase todas, conhecendo-as por dentro, até que somos obrigados a decidir onde nos queremos situar.

O jogo requer reflexão, que tipo de abordagem defendemos para um mundo a tentar renascer, que ideologia de comunidade nos fala, sendo que a escolha não se limita a seguir em frente, mas implica tomada de decisões territoriais para que a fação escolhida possa manter-se, implicando algumas decisões terminais sobre alguns dos amigos que entretanto criámos noutras fações. As comunidades em "Fallout 4" são autênticas redes de relações, e as nossas ações sobre estas produzem impactos ricos de significado, carregados subtilezas que nos obrigam a refletir sobre o que fazemos e porque o fazemos.

Jogar como personagem feminina é mais relevante do que a aparência, assumimos o papel de mãe, e não de pai, de um dos personagens principais, mudando radicalmente o nosso posicionamento em muitos dos diálogos, tornando a nossa opção relevante ao longo de todo o jogo.

“Fallout 4” obriga-nos a rever aquilo que somos, a questionar as nossas atitudes, valores e crenças. Ainda que por vezes nos force a determinadas atitudes, percebemos que elas são fruto de decisões nossas, tomadas previamente. Raramente "Fallout 4" nos coloca frente a decisões a preto e branco, temos sempre vários níveis de aproximação às decisões finais, várias sub-níveis de escapatória das tendências de decisão que vamos seguindo e que nos permitem antecipar o que se poderá passar, mas como na vida real essas decisões não são simples nem um fim em si mesmas, já que acabam por acarretar consigo sempre novas dependências, novos problemas, novos carmas.

dezembro 13, 2015

Videojogo do Ano [AAA:2015] - "The Witcher 3: Wild Hunt"

A escolha de um jogo capaz de representar o melhor que se fez ao longo de todo um ano é impossível de realizar-se de modo objetivo, por isso aquilo que aqui apresento é como não poderia deixar de ser, subjetivo. Aquilo que é relevante para mim num videojogo não o é para outra pessoa, seja um jogador, um criador ou crítico. Cada um de nós tem abordagens e motivações distintas sobre o meio, logo os relevos que encontramos são também distintos. No meu caso, a principal razão para escolher “The Witcher 3: Wild Hunt” (W3), como o videojogo AAA de 2015, assenta na sua contribuição para a inovação formal do meio, destacada pela sua escrita interativa e mundo aberto.

1. Modo de Jogo
O primeiro elemento a considerar aqui é o modo de jogo. Quando entramos em “W3”, somos convidados a escolher um de 4 modos — Just the Story!"; "Story and Sword!"; "Blood and Broken Bones!"; "Death March!". Pode parecer apenas mais um tradicional sistema de escolha entre fácil e difícil, mas é bem mais do que isso, a escolha entre os dois extremos comporta verdadeiramente dois modos distintos de aceder ao universo de W3. Fundamentalmente o primeiro modo centra a nossa experiência na história, enquanto o último centra a nossa experiência no jogo. Como sabemos os videojogos são constituídos a partir destes dois ingredientes, a história e o jogo que se entrelaçam para criar uma experiência.

Assim ao jogarem no primeiro modo todas as batalhas, puzzles espaciais, e bosses são desenhados para encaixar no ritmo progressivo de uma história. A nossa passagem por estes raramente nos obriga a voltar a repetir sequências, porque dificilmente morremos. Exceptuando claro quando entramos em áreas em que temos “experiência” insuficiente, e aí somos totalmente abalroados, uma componente de extrema relevância na manutenção do foco num mundo aberto. Por outro lado, torna secundário toda a componente de poções, óleos, bombas e signos, permitindo que se jogue todo o jogo sem preparar qualquer poção, nem nos preocuparmos muito com as capacidades específicas de cada signo. O foco na manutenção e atualização da armadura e armas é suficiente. Deste modo consegue-se concentrar toda a atenção do jogador na história de Wild Hunt com Ciri, fazê-lo focar-se nos personagens, e jogar muito mais com as decisões que se vão tomando. Esta experiência do jogo, quase sem morrer, perfaz uma viagem de mais de 50 horas (apenas a história principal).

Por outro lado no quarto modo, todas as sequências de ação assumem um lugar central no jogo. É impossível ultrapassar cada batalha, ou eliminar monstros no terreno, sem primeiro se focar nas suas fragilidades, para as quais é preciso desenvolver as poções correctas, e desenhar a melhor estratégia de signos para conseguir ultrapassar o obstáculo. Neste modo, mais do que a história de Wild Hunt ou Ciri, estamos focados em ser um Witcher (um caçador de monstros), temos de aprender a arte, das poções e espada, para conseguir progredir no jogo. Deste modo, se o jogador não passar à frente as partes narrativas, poderá estar a apontar para uma história principal com cerca de 100 horas, dificilmente se poderá fazer em menos.

Existe muita discussão sobre qual o melhor modo, mas mais uma vez volto à subjetividade que referi no início deste texto, não existe um modo melhor, já que existem jogadores diferentes. Não podemos, como se faz nestas discussões, esquecer que falamos de uma obra interativa, não de um filme ou livro. A obra deve trabalhar com o interator, e não forçar a experiência que o designer imaginou. Se acredito que o aqui temos representa uma evolução séria e refletida desta adaptabilidade à participação do jogador no mundo, acredito mais ainda que dentro de alguns anos deixaremos de precisar de fazer estas escolhas à entrada de cada jogo. Os jogos irão interpretar a forma como jogamos, e estruturar-se em função daquilo que estamos a fazer no mundo de jogo. Porque na verdade, apesar de podermos apontar aqui variações no desenho da jogabilidade, se as virmos a funcionar em conjunto com as acções que cada jogador está disposto a realizar, poderemos ver como a experiências que se retiram acabam por no final se aproximar para ambos os tipos de jogadores, congregando-os em redor do mesmo do jogo. Construir uma poção ou uma bomba pode garantir uma enorme gratificação para alguns, mas não lhes dá mais conhecimento sobre a profissão do personagem, já que tudo não passa de metáforas de representação muito distantes do real. E assim, se para uns ajuda a criar a ilusão de proximidade, o tornar-se no personagem, para outros funciona como uma desconexão da história, já que as acções se configuram como meras tarefas sem apelo narrativo.


2. O género e a consequencialidade
W3 é um videojogo que vai além dos rótulos existentes, não existindo ainda uma forma única capaz de categorizar o tipo de experiência aqui em questão, precisando nós de recorrer a 4 etiquetas para definir o género: Ação, Role-Playing Game, Terceira-pessoa e Mundo Aberto.
Em termos de género W3 faz parte do grande processo evolutivo da forma plástica dos videojogos. A capacidade para mesclar jogo e história esteve desde o início muito mais ao alcance do texto do que do audiovisual. A chamada ficção interativa dos anos 1970 abriu todo um mundo de possibilidades à integração do jogo de papeis dramáticos nos videojogos, que por trabalhar apenas elementos de texto, facilmente manipuláveis por algoritmos, conseguiu atingir picos de interação com o interator, que o vídeo interativo por essa altura nem sequer imaginava. Com a evolução tecnológica avançámos imenso na capacidade expressiva do meio, nomeadamente com o surgimento do CGI 3D, que permitiu começar a manipular a plástica visual com o mesmo nível de detalhe que manipulávamos palavras e letras de um texto.

Existem várias obras que são dignas de menção nesta tentativa de fusão entre RPG (a participação narrativa) e Ação (manipulação e navegação virtual) de entre os quais “Fallout 3” (F3) e a série “Mass Effect” (ME), ainda que tanto F3 como ME1 mantenham uma impressão RPG muito forte, o que se alterou bastante no tomo seguinte da série,  ME2 o mais equilibrado, resvalando já demais para a ação em ME3. Ao contrário destes, temos por exemplo “Walking Dead” capaz de nos levar a participar na história, mas à custa da nossa imersão no mundo (baixa manipulação e navegação), ficando ainda muito colado ao tipo de experiência criada pelos textos interativos. Por outro lado temos “The Last of Us” capaz de criar um nível de manipulação e navegação do mundo que funciona em perfeita sintonia com a história que vai sendo relatada, sendo no entanto totalmente incapaz de se abrir à nossa participação, porque limita a nossa interação à Plástica (manipulação e navegação), forçando o linear no Enredo.
Diagrama da narrativa interativa nos videojogos

Deste modo, W3 é uma espécie de sucessor de F3 e ME2, mas mais do que isso, uma coroação desta abordagem artística à linguagem do meio, capaz de nos oferecer um mundo história audiovisual que reage às ações do jogador, criando uma experiência de profunda consequencialidade. Isto torna-se possível por dois componentes fundamentais: a narrativa interativa e o mundo aberto.


3. Consequencialidade: Narrativa interativa
O resultado do trabalho narrativo efetuado em W3 é tão impressionante, que a meio do jogo dediquei-lhe um texto, que criei a partir de uma entrevista com um dos escritores principais da obra. Se estiverem interessados nesta componente do jogo, recomendo a leitura e a visualização da entrevista. Focar-me-ei aqui apenas naquilo que ainda não disse nesse texto.

A estrutura da história principal resume-se nos três actos clássicos, para os quais trabalham dezenas de quests principais, mas que funcionam em plena sintonia com as quests secundárias, e em parte tornando mesmo quase obrigatório fazer muitas das secundárias, para se ganhar o aprofundamento completo da história. Ou seja, as ações secundárias, não são aquilo a que nos habituámos em ME2 ou F3, são mesmo dotadas de consequencialidade na narrativa principal, nomeadamente na forma como conseguimos compreender e sentir todo aquele mundo. Em termos de história, subscrevo a descrição do Aníbal Gonçalves no IGN, de que temos aqui por um lado o poder da fantasia de "The Lord of the Rings" a funcionar com a força da intriga humana e familiar de "Game of Thrones", o que torna W3 num dos jogos mais maduros em termos de história, na linha "The Last of Us". Apesar da abordagem interativa, W3 não deixa de seguir o modelo dramático em 3 atos, no sentido de potenciar ao máximo a experiência emocional dos jogadores, e que passo a elencar:
[Prólogo: Introdução ao mundo pelo sonho

Ato 1: Iniciamos a nossa busca por Ciri (a jovem feiticeira, imensamente poderosa, treinada por Geralt, o nosso witcher/bruxo), que nos vai permitir conhecer quase todos os personagens do jogo, assim como ficar a conhecer quase todo o território [cerca de 20 horas no Modo História].

Ato 2: Encontrado o rasto final de Ciri, teremos de reunir todos os nossos amigos de viagem do Ato I, para impedir que Ciri seja levada [cerca de 20 horas no Modo História].

Ato 3: Aqui chegados, é necessário encontrar uma solução final para dar conta de quem pretende raptar Ciri [cerca de 12 horas no Modo História].

Epílogo: Erradicação da superstição]
O nível de detalhe da escrita da história - composta de 450,000 palavras, o equivalente a 4 romances - é fundamental na capacidade de resposta do jogo. Ao longo das 50 horas de jogo encontramos milhares de diálogos, na sua maioria dotados de escolhas que geram caminhos narrativos específicos, no sentido de atender à participação concreta do jogador. Por aqui desenvolve-se um sentido de conversação plena com a obra, em que apesar de muito ser desenhado e delimitado pelos criadores, muitas são as possibilidades que se abrem na nossa frente para decidir o que fazer, para realizar escolhas que se aproximam do modo — como eu em concreto vejo o mundo, como eu na especificidade acredito que as pessoas se devem relacionar, colaborar e cooperar. W3 é um mundo imaginado por um colectivo de criadores, mas cabe-me a mim, no momento da minha experiência, colaborar com este colectivo na criação daquele universo.
A experiência final que retiro de ter passado 50 horas naquele mundo, não é de mero relato, mas de ter vivido, porque contribuí para o modo como aquele relato se concretizou e fechou. Fui eu que resolvi salvar uns, deixar à sua sorte outros, assim como matar outros; fui eu que decidi romancear com uma e não com outra; fui eu que decidi destronar uns e coroar outros; fui eu que decidi salvar o planeta ou em sua vez proteger aqueles que me eram mais queridos. Isto é participação narrativa, é colaboração autoral na experiência que se desenvolve. Isto é fazer acontecer, e não simplesmente aceder ao que já aconteceu. Isto é a linguagem dos videojogos, agir no presente, em vez de simplesmente testemunhar o passado. Mais do que aprender com os outros que já viveram experiências, aprendemos fazendo, assumindo as responsabilidades de cada uma das nossas ações.
A tentativa falhada de criar uma moral difusa em "Mass Effect"

Se ME2 tinha todo um sistema de impacto das escolhas — Renegade/Paragon — que procurava tornar difusa a moralidade das nossas ações, e assim impossibilitar o jogar estratégico para a construção de um ideal de personagem, W3 simplesmente opta por eliminar qualquer feedback diagramático da moral. Esse feedback por muito difuso que seja, será sempre motivo de manipulação por parte do jogador. Em W3 não existe uma árvore moral das nossas opções, nem sequer somos confrontados com feedback bruto a cada uma das nossas escolhas. Porque mais do que escolher e decidir, é do diálogo que emerge a especificidade da nossa experiência, tal como no mundo real — posso optar por mentir agora, ser honesto daqui a pouco, manipular as crenças das pessoas, ou simplesmente dar-lhes o que elas pedem. Como seres humanos, somos tudo menos binários, somos um caos moral que vive do acaso do contexto em que nos encontramos em cada momento.


4. Consequencialidade: Mundo aberto
Li várias discussões que procuravam pôr em causa o interesse do desenho de W3 em mundo aberto, dando conta que uma jogabilidade mais linearizada, poderia ser mais relevante para os jogadores, nomeadamente porque evitaria a dispersão, mas também porque garantiria um mundo mais coeso e detalhado, já que os criadores não teriam de investir massivamente na criação de um mundo que muito de nós não verão. Ora, parece-me que tudo isto é um contrassenso, já que joga em desfavor do meio, nomeadamente da sua expressividade.
Voltando ao que falei acima, sobre os três grandes domínios da interatividade de um videojogo - manipulação, navegação e participação - só o mundo aberto pode permitir os três. Um jogo como “The Last of Us”, que funciona linearmente, seguindo a abordagem espacial de túnel de storytelling, permite belíssimos níveis de manipulação e navegação, mas impede a participação. Não falo aqui das escolhas e decisões nas árvores de diálogos, mas das escolhas e decisões no espaço. Ou seja, o mundo aberto não se vem tornando standard por mero capricho, ou por tentar competir no marketing de quem faz o maior mundo como se acusa, ele é um elemento vital. Veja-se um dos casos mais emblemáticos na demonstração da participação espacial, o “Dishonored” (2012), em que a navegação e manipulação do espaço é aberta obrigando-nos a tomar decisões, que por sua vez produzem consequencialidade ao nível da jogabilidade, podendo mesmo resultar em alterações narrativas. Isto foi também explorado mais recentemente na série “Assassin’s Creed”, que começou por ter um mundo aberto apenas nas áreas jogáveis, sem efeito prático nos momentos de cutscene, e mais recentemente em “Assassin's Creed: Unity” (2014) apesar de continuar de portas fechadas à participação especificamente narrativa (com os diálogos), abriu-se a este modo participativo por via do espaço no momento de cada grande assassinato.

Sendo a participação o mais importante no design de mundos abertos, temos ainda o factor de imersão por via da credibilidade. Poder navegar por mapas espaciais sem impedimento, escolhendo as quests que se fazem a meu bel-prazer e não por imposição linear, operada pelos autores do jogo, garante para além da minha participação no desenrolar da progressão da experiência, a credibilidade da minha ação, que por sua vez oferece a credibilidade no universo de jogo, e assim a imersão. É verdade que por vezes entramos em áreas adjacentes em que os inimigos nos matam com um único golpe, porque estão muito acima da minha experiência, mas isso faz parte do design de mundos abertos, e na vejo isso como um problema para a experiência, apenas diz ao jogador que é melhor não ir já por ali, não o impedindo de tentar ir se assim o desejar.

Dou o exemplo da primeira travessia para Skellige que é suposta só acontecer depois de várias quests principais em Novigrad, e consequentemente elevação do XP, mas que eu de tanto insistir acabei por conseguir realizar mesmo não tendo os supostos XP necessários. Claro que notei no fim de passar as duas sequências, que existia ali um clímax narrativo a que eu tinha chegado antes do tempo, mas na verdade foi para mim muito interessante ter lá chegado antes, já que a primeira passagem por Novigrad é talvez dos momentos menos conseguidos em todo jogo, pela sua calma e quests demasiada tarefeiras. Ou seja, o mundo aberto permitiu-me criar toda uma experiência em função da minha volição no jogo, e não do que me ditam os seus criadores.
Numa outra situação, menos relevante mas contudo impactante, fruto do mundo aberto e persistente, abandonei um barco meio partido por sereias voadoras junto a uma ilha pequena numa determinada fase do jogo, tendo depois, muito mais tarde e por outras razões, voltado a passar por esse local, e encontrado esse mesmo barco, identificado porque partido tal como o tinha deixado, criando a estranha impressão "é o meu barco", uma sensação de posse, mais do que de um barco, do território de jogo, o que só por si funciona como um poderoso argumento de credibilidade, diria quase um afrodisíaco de imersão.

É deste conjunto, participação narrativa e espacial, que emerge aquilo que consideramos ser o elemento fundamental da expressividade dos videojogos, a agência, ou consequencialidade. Ou seja, o sentimento de que a minha atuação sobre aquela obra é consequente, de que eu, enquanto indivíduo sou levado em consideração. É isto que andamos há 30 anos a tentar desenvolver no campo dos jogos narrativos, e é isto que W3 faz bem, não querendo dizer que atingimos o último estágio deste processo, mas estamos cada vez mais perto de poder dizer "missão cumprida".

O menos bom do jogo anda à volta da arte visual, principalmente a animação. W3 tem bons artistas visuais, tecnicamente muito dotados, mas não tão bons artisticamente como por exemplo a equipa de “Assassin’s Creed: Unity”. Já os seus animadores, por culpa própria ou das equipas de programação, raramente conseguem brilhar. Não podendo de forma alguma dizer que é mau, longe de mim tal ideia, o trabalho é muito bom, só não consegue chegar ao nível excepcional que apresenta a escrita e o design de jogo. Contudo, esta equipa merece todo o nosso respeito, tanto pelo trabalho brilhante que apresenta como pela forma humilde como o faz, veja-se o texto abaixo que vem dentro da caixa do jogo, inspirador.
Nota de agradecimento da equipa CD Projekt que vem no interior da caixa de W3


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"Witcher 3": indústrias criativas e escrita de narrativa interativa
Videojogos de 2015.