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agosto 19, 2016

"A Letra Encarnada" (1850)

Considerada uma obra maior do romantismo americano (século XIX), a par com “Moby Dick” (1851), sendo por isso mesmo de leitura obrigatória nas escolas americanas, “A Letra Encarnada” relata uma história, passada dois séculos antes, centrada na moral de uma sociedade nascente, a dos EUA.

Uma tradução de Fernando Pessoa

Pelo facto do livro aparentemente se centrar sobre o adultério e a punição do mesmo pela sociedade, numa primeira leitura pode ficar a ideia de que o livro perdeu o seu valor para os dias atuais, algo que fica patente nas imensas discussões presentes no Goodreads, iniciadas por muitos dos que foram obrigados a ler o livro nas escolas americanas e se sentiram ultrajados, não apenas pela história mas também pela dificuldade de aceder à mesma já que o livro foi escrito seguindo os preceitos estéticos do romantismo, reconhecidamente menos acessíveis que os do realismo de hoje.

Mas esta obra de Hawthorne vai bastante mais longe do que o motivo que mantém o enredo vivo. Ao contrário de todos os indicadores, desde o título à sua constante menção no texto, o foco não é o Adultério, marcado pela letra A, mas antes a Redenção. O adultério serve aqui apenas como rampa de lançamento da narrativa, com o objetivo de aprofundar o sentir dos personagens para trazer à flor do texto a vergonha, a culpa, a vingança e o desespero. Repare-se como Hawthorne nunca dá conta, de modo explícito, do que verdadeiramente aconteceu, iniciando o relato in media res, com Hester já sobre o cadafalso de letra ao peito.

O que verdadeiramente interessa, e por isso o livro é tão relevante, é o modo como os diferentes atores se relacionam com o sucedido, desde a visada, à filha, ex-marido, companheiro, e claro sociedade. O adultério é apenas um móbil, em seu lugar poderíamos ter o suicídio ou a perda de um filho, claro que com impactos distintos, mas que serviriam do mesmo modo à desconstrução que Hawthorne procura fazer do ser humano e seus laços societais. Para uma obra do período romântico, não deixa de impressionar a capacidade de ir ao fundo da psicologia humana, de nos fazer entrar pelos personagens adentro e compreender como sentem.

Toda esta capacidade para perscrutar o sentir humano é no fundo a essência da arte literária, e cada época apresenta os seus melhores exemplos, que muitas vezes, sem sequer o procurarem, ultrapassam e precedem a ciência e filosofia, como fica evidente na obra de Lehrer, “Proust era um Neurocientista” (2007). Neste caso temos Hawthorne, em 1850, a preceder Nietzsche, que escreveu em “Crepúsculo dos Ídolos”, em 1888 a tão citada expressão “o que não me mata torna-me mais forte”, da seguinte forma:
“Faltava a esta — o que a muita gente falta toda a vida — uma dor que profundamente a ferisse, e assim a humanizasse e tomasse capaz de sentir profundamente.” (p.191)
“A letra encarnada era o seu passaporte para regiões onde outras mulheres não ousariam entrar. O Opróbrio, o Desespero, a Solidão! Tinham sido estes os seus mestres — mestres severos e desregrados — e tinham-na tornado forte, ainda que não fosse bom o que com eles tinha aprendido.” (p.210)
Hester Prynne é assim uma das primeiras grandes heroínas da literatura, e de certa forma uma clara homenagem de Hawthorne à perseverança e dureza das mulheres, comumente catalogadas como sexo fraco, frágeis e incapazes do uso da força, a demonstrar aqui que por debaixo da capa de fragilidade que se lhes atribui, existe muito mais, existe toda uma capacidade não apenas de suportar a dor mas de ir além, de fazer brotar e renascer, sempre mais forte. No fundo a obra reflete a vida de Hawthorne, pessoa tímida e frágil, imensamente dependente de sua esposa, Sophia Peabody Hawthorne, artista dedicada à pintura e ilustração, e o pilar psicológico do casamento, sem a qual muito provavelmente Hawthorne não teria deixado o legado que deixou.

"The Scarlet Letter" (1861) de Hugues Merle. Na frente temos Hester Prynne com a sua filha Pearl, em fundo e à esquerda surgem Arthur Dimmesdale e Roger Chillingworth.

Por fim, e voltando à questão estética, o texto é de difícil leitura, embora reconheça que o facto de ser uma tradução de Fernando Pessoa ajuda imenso. Hawthorne escreve muitíssimo bem, e quando traduzido por Pessoa eleva-se a um nível de beleza por vezes extático. (Interessante que não se saiba ainda hoje porque Pessoa traduziu esta obra, tendo sido encontrada no meio da sua documentação apenas anos depois de ter morrido.) Contudo, e apesar de belo, o texto dá trabalho a "mastigar", já que se oferece muito trabalhado, como que talhado pelo seu sentido estético e não narrativo. Ou seja, antes de garantir a compreensão, o romantismo procurava impactar sensorialmente pela forma, daí que os textos surjam extensos e labirínticos, carregados de simbolismos, obrigando o leitor a esforçar-se para extrair sentido do que vai lendo.

janeiro 28, 2013

Viés do storytelling contemporâneo

Esta Ted de Colin Stokes, How Movies Teach Manhood, traz dois assuntos que me sensibilizam particularmente: pelo lado mais profissional os efeitos do storytelling enquanto elemento base da arte que produzimos; pelo lado humano a condição da mulher e a agressão sexual ignorada pela sociedade.


O cinema de Hollywood por ser o único visto a uma escala global por milhões de pessoas pode ser visto simultaneamente como espelho e gerador de mitos contemporâneos do storytelling humano. Nesse sentido uma análise mais cuidada do que temos nestes filmes pode ajudar-nos a compreender de que é feita a nossa sociedade e como se comporta. Os modelos que seguimos e em que acreditamos são fruto primeiro da família que nos rodeia, que por sua vez são depois trabalhados em parte pela cultura da ficção que consumimos.

89% dos filmes do Top 100 mais vistos em 2011 apresentam personagens masculinos

Nesse sentido é ridículo que numa cultura que diz defender a igualdade entre sexos, os papéis principais, os protagonistas, os heróis, continuem a ser largamente majoritários dos homens. Evoluímos alguma coisa nos últimos 50 anos, mas ainda assim nos últimos anos, invariavelmente, o Top 10 de filmes mais vistos nos EUA e também no planeta apresentam um a dois filmes com mulheres a liderar. Ou seja, os homens ocupam os principais modelos do nosso imaginário proveniente do storytelling cinematográfico em 80 a 90% dos casos. Sei bem que vende mais um herói masculino, mas vende porque os mitos assim estão formatados. Veja-se o caso da Pixar com todo o sucesso que conseguiu nos últimos quase 20 anos, não teve um único filme que tenha sido um flop, ainda assim esperou por 2012 para arriscar lançar o seu primeiro filme com uma heroína (Brave, 2012). Tudo isto nos deve questionar sobre o que vemos e damos a ver, com uma simples pergunta: com que modelos queremos educar os nossos filhos?

Teste que permite identificar se existe viés de género num filme/livro/jogo...

O cinema não é só o Top 10, nem é só Hollywood. Nem o imaginário contém apenas só cinema. Mas isso não quer dizer que não nos devamos preocupar em construir uma boa selecção dos filmes, livros, e jogos que queremos que os nossos filhos leiam, vejam e joguem. Porque se existe algo sobre o qual não tenho dúvidas é sobre o papel extremamente importante que o storytelling tem sobre o crescimento das crianças. É daqui que retiram ideias para os seus sonhos, e é aqui que aprendem a confrontar os seus medos e as suas morais, construindo as bases da ética pessoal.

Why domestic violence victims don't leave, Leslie Morgan Steiner (TED 2013)

Como disse, o storytelling só vem depois da família, o cinema não salva uma criança de uma família destruturada. Porque a violência sexual no seu extremo mais negro está já presente no seio da própria família, o lugar de maior influência formatadora das crianças. Podemos ver isso numa outra TED brilhante também publicada hoje com Leslie Morgan Steiner sobre o tema Why domestic violence victims don't leave. Podemos ver também filmes como Cairo 678 (2010) (trailer) ou Femme de la Rue (2012) que mostram a nu como se comporta a nossa sociedade na relação entre sexos. Colin Stokes diz-nos ainda nesta TED que um estudo do governo americano concluiu que uma em cada cinco mulheres americanas já foi, alguma vez na sua vida, abusada sexualmente.


O cinema não é culpado da agressão sexual, mas o cinema e a demais arte criadora de imaginários e sonhos pode ajudar a mudar os mitos, e aos poucos esse mitos poderão transforma-se em novas acções. Por isso precisamos de mais heroínas como a Chihiro, a Rapunzel, e a Merida.

How Movies Teach Manhood, Colin Stokes (TED 2013)