Mostrar mensagens com a etiqueta interactividade. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta interactividade. Mostrar todas as mensagens

dezembro 30, 2022

Máquinas de contar histórias

"Story Machines: How Computers Have Become Creative Writers" foi publicado em julho 2022, mas os seus autores, Mike Sharples e Rafael Perez, académicos na área da aprendizagem e criatividade IA, dizem-nos que o livro começou a ser preparado em 2001, por isso não se espere aqui um tratado sobre o enorme potencial aberto pelos sistemas GPT, que apesar de serem abordados representam apenas uma pequena parte da discussão.

setembro 19, 2021

Cortázar, o hipertexto e Joyce

Rayuela” (1963) (em Portugal “O Jogo do Mundo”) é reconhecido como uma das maiores obras da literatura da América latina. É reconhecido pelo pioneirismo do uso da não-linearidade hipertextual (ligações que permitem saltar páginas e capítulos). O seu autor, Julio Cortázar, foi imortalizado graças a este livro. Contudo, a minha experiência ficou bastante aquém, diga-se que muito provavelmente por defeito de profissão — trabalho, há mais de 20 anos, o design de narrativas hipertextuais. Esperava mais. Esperava ver uma obra que por ser criada por uma mente literária, rasgasse todos os preceitos da literatura e principalmente da linearidade narrativa. Acaba por não o fazer, em nenhuma das frentes. Com um registo demasiado colado a Joyce, oferece muito pouco à literatura. A forma sustenta o nosso interesse pela novidade estrutural, mas desvendado o padrão seguido tudo começa a cair.

janeiro 21, 2019

Regresso a "Choose Your Own Adventure"

Voltei a este formato de livros apenas para poder analisar melhor as técnicas e o design por detrás das escolhas oferecidas ao leitor. Para quem não conhece, "Mystery of the Maya" pertence a uma série que dá pelo nome de "Escolha a Sua Própria Aventura" criada por Edward Packard, que consiste em fazer desenrolar uma aventura base que se diversifica por meio de escolhas conducentes a uma miríade de diferentes desenlaces. O leitor é personagem da própria história e as decisões do personagem são as suas.


A nostalgia que tinha destes livros era fraca. As vezes em que lhes peguei nunca me convenceram. Sempre que chegava ao final da página e surgiam as escolhas desistia. Durante anos convenci-me que este modo de gerar interação com histórias era ridículo. Quando vi os primeiros filmes — "I'm Your Man" (1992) — com este sistema de escolhas, fiquei ainda mais certo disso. As escolhas pareciam ser mais dirigidas a quem escreve o livro ou realiza o filme, e menos a quem vive uma história. É verdade que as histórias se alteravam com grande impacto, mas eu não sentia as escolhas como algo pessoal, mas antes como algo distante, fora de mim. Ou seja, escolhia apenas para ver no que dava, eram escolhas de lógica e não emocionais. Por mais emotivo que o enredo fosse, as escolhas pareciam surgir como meros nós de definição do desenrolar dos eventos, e não como uma verdadeira ação minha. As consequências eram enormes, mas não eram motivadas por mim, apesar de supostamente ter sido eu a escolher. Era como se eu estivesse apenas a tentar aceder às diferentes opções que o autor me dava, nada mais.


Isto mudou com os videojogos, mas apenas neste milénio, já que nos anos 1980 e 1990 tivemos muitos que se socorriam do mesmo paradigma de escolhas e sem sucesso. Foi com videojogos como "Heavy Rain" (2010), "Mass Effect" (2007), "Life is Strange" (2015) ou ainda "The Walking Dead" (2012) que pela primeira vez experimentámos escolhas emocionais. O personagem existe, tem vida própria na história, mas em certos momentos somos chamados a decidir por ele, e desse modo, as escolhas acabam por estranhamente tornar-se pessoais. Ou seja, constrói-se um modelo empático entre o leitor e o personagem, e depois então inserem-se as escolhas, deste modo, vemo-nos numa relação de obrigação para com o personagem. Por meio da empatia gerada, sentimos como ele e por ele, e por isso as escolhas que fizermos fazem-nos sentir aquilo que acontece ao personagem no desenrolar da narrativa.


Ao ler este pequeno livro, “Mystery of the Maya” (1981), voltei a viajar no tempo das técnicas de escolhas. A série tem cerca de 60 livros, mas este é um dos 4 ou 5 mais citados, nomeadamente por ter bastantes finais, 39, alguns bastante alucinantes. Mas como disse, as nossas escolhas não impactam o sentimento narrativo, elas são como nós lógicos que nos permitem ver variantes de um universo, como se fossem máquinas do tempo que nos permitem aceder a: “e se fosse assim”. Claramente que isto pode ser atrativo para um público juvenil, até aos 10 anos, nomeadamente aquele público mais dedicado à experimentação e a sistemas, que gosta de perceber como funcionam as coisas e o mundo. Estes livros dão-se muito bem a esse público porque lhes permite visualizar todo o sistema narrativo como mapa de nós, e perscrutar assim todos os caminhos possíveis. Já para o público que tenha adquirido o gosto pelo contar de histórias, que tenha encontrado o acesso aos sentires dos personagens e suas interdependências com os mundos-história, estes livros dirão muito pouco.


Artigos de interesse sobre a série:
These Maps Reveal the Hidden Structures of ‘Choose Your Own Adventure’ Books, Atlas Obscura
One Book, Many Readings, Christian Swinehart
A Brief History of Choose Your Own Adventure, Edward Packard
A Brief History of "Choose Your Own Adventure", Jack Rossen

novembro 04, 2018

A importância das escolhas nos jogos narrativos

“Detroit: Become Human” (2018) vai muito para além do mero entretenimento, por baixo dessa capa aparente de filme de Hollywood de ficção científica, lança-nos num mar de reflexões sobre a inteligência artificial e a robótica, que vão desde a motivação para a singularidade na IA (autonomização do ser) às necessidades e vontades associadas pela robótica (existência física) terminando na relação com o humano. À superfície parece oferecer pouco mais do que aquilo que já nos foi oferecido em filmes como “Bicentennial Man” (1999), baseado no conto homónimo de Asimov, “A.I. Artificial Intelligence” (2001) de Spielberg e Kubrick, “I, Robot” (2004) de Alex Proyas ou “Ex Machina” (2014) de Alex Garland, e no entanto, o facto de se tratar de um videojogo baseado em narrativa interativa, coloca-nos face a uma experiência completamente distinta, simplesmente porque somos obrigados a tomar partido.


Detroit apresenta um universo ficcional futurista, no qual os andróides convivem com os humanos em todo o lado, do mesmo modo que muitas outras tecnologias — dos carros aos sistemas de apoio ao humano — com a diferença de terem a mesma fisionomia que um humano, porque lhes facilita o apoio a essas tarefas mais humanas. Contudo, essa forma humanoide associada a capacidades sociais, afetivas e cognitivas torna-os excessivamente humanos a ponto de serem apenas permitidos nos EUA, enquanto o Canada e outros países mantém a sua proibição.


Ainda sobre o universo, e tendo em conta que se trata de narrativa interativa, reportar que Cage levou as suas possibilidades muito para além daquilo que nos tinha dado nos seus jogos anteriores —  “Fahrenheit” (2005), “Heavy Rain” (2010) ou “Beyond: Two Souls” (2013) —, aqui praticamente todas as nossas escolhas e decisões têm consequências, e essas conseguem aparentar ser ilimitadas. O melhor exemplo disso é que o cerne narrativo, constituído de três personagens andróides que devem carregar toda a história aos ombros do início ao final, na minha primeira passagem completa pelo jogo, morrem os três, nenhum chega ao fim, algo que pelas estatísticas apresentadas acontece muito pouco, mas demonstra a enorme elasticidade da ficção interativa apresentada. Note-se que podemos rejogar cada capítulo e alterar as consequências, contudo somos aconselhados, no jogo, a fazer um primeiro playthrough completo sem rejogar qualquer decisão, que foi o que fiz, mesmo quando em algumas decisões, por me sentir demasiado pressionado para decidir, decidi coisas com que não me identificava totalmente. Aconselho vivamente a que façam o mesmo, pois é dessa primeira experiência completa sem rejogar que poderão extrair os maiores impactos da experiência da narrativa interativa proposta.



Do ponto de vista tecnológico e empático, é interessante verificar como apesar de muitos arautos da tecnologia defenderem a proximidade do momento de singularidade, ou da possibilidade de substituir professores por robôs, num videojogo criado em 2017, em que ironicamente os três principais personagens são andróides, ainda estamos completamente dependentes de humanos, não só para lhes dar forma mas para garantir as performances de corpo e voz.

Porque jogar é experienciar, é viver de forma simulada e virtual. Ou seja, colocados dentro daquele universo de possibilidades, somos questionados e interrogados, somos colocados face a questões que ainda não existem no mundo atual, e para lhes responder só nos resta procurar dentro de nós as respostas. Puxar pelas nossas convicções, princípios e morais, mas também todo o conhecimento que detemos sobre as matérias (neste caso o meu conhecimento sobre o design e implementação de máquinas e formação dos seus sistemas de IA), confrontando argumentos para responder às situações, ainda que hipotéticas e ficcionais, colocadas pelo jogo. Sentimos que “Detroit” nos coloca contra a parede, no que à relação futura entre humanos e andróides dotados de consciência IA concerne, porque atira sobre nós toda a responsabilidade sobre como lidar com eles, obrigando-nos a decidir e a reagir. E se durante o jogo, um pouco pelo que considero excessivo design de pressão sobre o jogador ainda que sirva bem a dramatização necessária ao contar de uma história, senti as decisões por vezes mais distantes, no final do jogo elas caíram-me todas em cima.

Marcha de andróides lutando pelos seus direitos

Por exemplo, ter deixado morrer os três personagens não foi algo simples, impactou a minha experiência, criou frustração mas foi além, porque o jogo não se fica, não se resume a um mero “game over”, algo que Cage detesta nos videojogos. As ausências dos personagens tornaram-se parte do meu universo jogado, e a minha culpa pela sua perda foi transposta para os eventos que continuaram a suceder-se, o que se foi agravando quanto mais as suas ausências se foram tornando consumadas em mim. Mas isto também levanta enorme peso na discussão da autoria, do que tem para dizer um autor, e aqui Cage luta claramente nessa fina linha entre o quanto está disposto a oferecer-nos de controlo sobre os eventos e aquilo que nos quer dizer com a sua obra. Li em algumas resenhas, caracterizações de inconsistência narrativa, ou seja, que Cage não saberia ou não teria conseguido construir uma mensagem completa. Contudo, por muito que me custe dizer, mais ainda tão habituado a defender a intenção autoral no cinema e na literatura, aqui a intenção autoral não pode prevalecer sempre, correndo o risco da interatividade não passar de ilusão. Por isso se o jogo parece mover-se entre barricadas ideológicas ao longo da experiência, deve-se mais àquilo que vamos decidindo fazer, porque o jogo permite que façamos, e menos a uma vontade ou falta de determinação do autor e do jogo em passar uma ideia redonda. Aliás, se dúvidas houvesse sobre a determinação do autor bastaria recuar a 2012, "ver a demo/curta "Kara" e perceber como "Detroit" não surgiu de um simples desejo de fazer mais um jogo, mas vem carregado de intenções (entrevista com Cage).

"Kara" (2012) de David Cage

Posto isto, o jogo consegue algo que nem o livro nem o filme conseguem, levando-me a considerar que retirei desta experiência, algo que é notável para um videojogo, uma melhorada compreensão da minha relação com a tecnologia e sua hipotética singularidade futura. O jogo puxa imenso pela nossa ambivalência, usa truques para confundir o nosso sentir para com os andróides, que servem também para que possamos ir traçando o nosso caminho. Já estamos habituados, no cinema, ao desenho de situações de pura empatia para com os andróides, mas aqui somos também brindados com situações completamente contrárias, e somos conduzidos a passar pelos dois sentimentos, o que consegue mexer com algumas das nossas convicções. Existem algumas questões apresentadas de modo muito simplista, nomeadamente o modo como a generalidade dos humanos vai reagindo, algo que como já se disse, não é alheio ao modo como vamos jogando, ou seja, à medida que vamos jogando a narrativa vai-se ajustando e naturalmente partes dessa vão sendo secundarizadas. Contudo, pelo que vi de possibilidades jogadas por outros, é possível aceder a maior elaboração dessas partes, dita mais simplistas, rejogando partes mais decisivas que alteram o rumo dos eventos finais.

A primeira sequência do jogo, de resposta a um rapto, abre muitíssimo bem o tom do jogo, e nem queria acreditar quando vi na net que podia ter 6 finais completamente distintos.


Ao contrário dos jogos anteriores de Cage, e talvez motivado pelo facto de termos as árvores de nós narrativos a serem apresentadas no final de cada capítulo, mas especialmente porque as variações narrativas são tão acentuadas, sinto o desejo de voltar e rejogar, de voltar a experienciar, de decidir de outras formas para confrontar as minhas decisões naquele universo.

dezembro 28, 2017

Far From Noise (2017)

Quando o tema se aprofunda e enreda em questionamentos sobre o ser, a interatividade reduz-se, porque mais do que conduzir à ação, interessa provocar a reflexão. "Far From Noise" (2017) de George Batchelor é um desses artefacto interativos, que tem como intuito introduzir-nos nas discussões do Transcendentalismo, corrente filosófica promovida Ralph Waldo Emerson e defendida por Henry David Thoreau numa das suas mais emblemáticas obras, "Walden" (1854), de que não gostei particularmente. Somos introduzidos num único cenário que se vai alterando em pequenas variações, restando-nos conversar com os elementos que vão surgindo em nosso redor.


Podia ser uma banda desenhada interativa, mas o facto de estar centrado num plano único retira-lhe o necessário efeito de sequencialidade, ao que se junta a apresentação de um jogo de frases que condicionam o desenrolar dos eventos. Pensando na ficção interativa, o facto de termos variabilidade visual suportada por vários parâmetros — "Colour grade & tint; Sky gradient colours; Light rotation, intensity and shadow strength; Vignette intensity; Sea, Stars and Sun animation" — retira também qualquer sentido a essa classificação. Julgo ser melhor pensar antes que estamos perante um videojogo que opta por reduzir o nível de interatividade, pelas razões já apontadas acima. Para muitos não é aquilo que convencionaram no seu modelo mental como videojogo, mas isso não faz do artefacto algo menor, antes pelo contrário.

O resultado é uma obra sóbria, que apesar de imensamente simples não perde nada na sua capacidade de nos engajar, de nos manter interessados e atentos ao desenrolar dos eventos, sentido gratificação sempre que o cenário se modifica, seguindo a discussão e questionando o que está a ser experienciado.



Pode ser jogado na PS4, PC ou Mobile. Precisam apenas de 2 horas, mas de preferência façam-no pela noite dentro, "longe do ruído" do dia, dos outros, de tudo, para poderem sentir a experiência completa.

setembro 10, 2017

Mass Effect: Andromeda (2017)

A trilogia Mass Effect (2007-2012) é um dos maiores legados culturais dos videojogos, pela força da sua história mas acima de tudo pela inovação operada através da singularidade do meio, a interatividade narrativa. Se o cinema nos deu algumas das maiores epopeias da ficção científica, a literatura e a banda desenhada não lhe ficaram atrás, mas nenhum destes meios podia ter oferecido aquilo que apenas está ao alcance das artes narrativas interativas, agência, ou a responsabilização do recetor pelo desenrolar do imaginário ficcional. Por tudo isto, criar um quarto videojogo foi sempre um grande risco, a Bioware, ao contrário da Valve, resolveu arriscar. O resultado é um trabalho menor, ainda que tecnicamente mais evoluído.


O tema de “Mass Effect: Andromeda” (ME:A) não traz nada de novo, antes aproveita um dos imaginários mais presentes na atualidade da ficção-científica como trampolim para os seus desenvolvimentos. Num espaço tão curto de anos foram várias as obras a socorrer-se da ideia de largada de grandes naves carregadas de seres-humanos criogenados em busca dos chamados “Golden Worlds”, ou seja planetas semelhantes à Terra, em que possamos refazer a vida enquanto espécie humana.


No cinema, tivemos um romance FC com “Passengers” (2016) de Morten Tyldum, poucos anos antes tínhamos tido um dos mais eficazes filmes de FC desta recente geração, “Interstellar” (2014) de Christopher Nolan, e até a própria série Alien se socorreu do tema para este seu último tomo, “Alien: Covenant” (2017) de Ridley Scott. Na literatura tivemos também uma trilogia, “The Wayward Pines” (2012-2014) de Blake Crouch, entretanto convertida numa série de televisão homónima, de imenso sucesso. Este imaginário não é alheio à realidade que nos circunda: a superpopulação e consequente drenagem de recursos do planeta; as alterações climáticas e a potencial destruição do ecossistema que possibilita a vida na Terra; a visão apocalíptica providenciada pelos receios dos avanços da inteligência artificial ou a recuperação dos receios do nuclear; ou ainda, os avanços na compreensão da física quântica e as teorias dos mundos possíveis e paralelos, que nos colocam a sonhar com alternativas ao planeta.

Apesar do tema não ser novo, o tema é vasto e de potencial praticamente inesgotável, como se vai vendo pelas obras que vão surgindo. Contudo, é preciso não esquecer que um tema não é uma história, é apenas um pano de fundo, e é desde logo aqui que ME:A começa mal. A história, ou conflito escolhido para ser representado, assenta numa luta entre espécies, com vilões e super-vilões, que apesar de esforçado nunca chega a gerar conexão com os jogadores. O cruzamento com alguns dos grandes temas da trilogia até são aflorados, chegando a criar-se pontos que nos agarram, como a descoberta da origem da espécie Angara, mas nunca chegam a ser devidamente explorados, e por isso perdem-se no meio de tudo o resto.


O problema dos nós narrativos relevantes em ME:A é talvez o maior demonstrador da incompetência da obra. O universo representado é enorme e muito detalhado, criando no jogador uma completa dispersão da atenção, que não apenas se perde entre missões mas nunca se chega a realizar. No final do jogo, ou melhor da realização da main quest, que engloba apenas as missões “Priority Ops”, fiquei a pensar o quanto desse falhanço não se deve também a uma má estruturação entre missões obrigatórias e opcionais, nomeadamente lendo várias recomendações online. Para quem jogar de modo tradicional, seguindo a linha de obrigatoriedades criadas pelas missões Priority Ops, tem 16 missões pela frente, mas o que fica de fora, a julgar pelos números, é imensamente maior: “Allies and Relationships”, 33 missões, “Others” 12 missões, “Heleus Assignments” 98 missões, e “Additional Tasks” 61 pequenas missões.

Os mundos abertos são a norma atual nos grandes jogos de ação-aventura RPG, mas são também imensamente complexos por tudo o que necessitam de produzir para serem considerados enquanto tal, e acima de tudo pelo balanceamento entre o que deve ser considerado obrigatório e aquilo que deve ser secundário, ou opcional para que o jogador possa sentir um verdadeiro efeito de liberdade e autonomia durante o jogo. Se todas as missões consideradas relevantes para o jogo forem consideradas obrigatórias, e rodeadas de precedências, fica complicado fazer sentir ao jogador que está num mundo verdadeiramente aberto, que se dá à sua agência. Por outro lado, se não se colocam obstáculos ou freios que guiem o jogador ao longo das missões, o mais certo é a narrativa nunca se chegar a erguer. Por fim, mesmo quando se garante que as missões principais estão alinhadas e elas trabalham para o desenvolvimento de um arco narrativo delineado, é preciso não esquecer que missões menores, nomeadamente de desenvolvimento dos personagens são fundamentais para criar o imaginário, e acima de tudo aproximar o jogador da “vida” do jogo.


Neste sentido, considero que a maior falha de ME:A acaba por estar no subdesenvolvimento dos seus personagens e seus conflitos, ou então no modo inarticulado como foi desenhada a estrutura de missões, a julgar pela existência de uma enorme quantidade de missões secundárias a realizar com os personagens que circundam o protagonista. A main quest está apenas focada num objetivo narrativo, e os personagens servem quase de meros peões. Não há espaço para o desenvolvimento dos personagens, e mesmo as pequenas sequências que nos vão sendo oferecidas, até de conflitos hierárquicos, são sempre a correr, com medo de perder o ritmo do enredo. Interessa apenas chegar ao “golden world” e para tal é preciso ultrapassar os obstáculos, ou seja, os vilões que surgem por todo o lado.


Ao seguir este caminho ME:A acaba por perder o bem mais preciso que tinha sido desenvolvido pela trilogia, as tomadas de decisão narrativas. Ao contrário do que acontece em todos os anteriores três jogos, não existem momentos intensos em que tenhamos de tomar decisões, não que eles não surjam, o problema é que o jogo não desenvolve suficientemente as nossas ligações afectivas com os personagens para garantir impacto. Na verdade, isto não tem que ver apenas com a falha na estrutura das missões, já que ao longo de toda a main quest, nunca chega a existir um conflito, digno do nome, entre personagens. Mesmo quando os superiores estão chateados connosco, ou algum personagem está preocupado com algo, tudo parece seguir um rumo meramente declarativo, pejado de neutralidade, como se nos estivessem a testar, a ver se queremos ou não deixar-nos enredar por aqueles sentimentos.

Isto leva-me a questionar o novo sistema de conversação desenvolvido para este jogo. Se na trilogia tínhamos o modelo — Paragon / Renegade — em parte criticado pela suposta binariedade emocional e moral, agora temos quatro polos — Emocional / Lógico / Profissional / Casual. Em teoria enriquece-se as relações entre os personagens, amplia-se o escopo de tomada de decisão, mas na prática não funcionou. Digo mesmo que funcionou mal, já que raramente, ou nunca se vê ou sente o impacto dessas escolhas, ficando a dúvida se têm verdadeira relevância. Por outro lado, acabam por gerar todo um tipo de questionamento sobre as decisões que retira espaço ao pensar sobre o que verdadeiramente está acontecer no jogo, já que nos focamos mais na forma do que no conteúdo. Não tenho uma opinião completamente negativa sobre o sistema, julgo que ele pode até funcionar, desde que a narrativa, em especial a escrita seja boa, já que não raras vezes me senti decepcionado com a trivialidade de algumas respostas. Contudo, não me parece que tenha sido a decisão de design correta, já que o sistema desenvolvido para a trilogia era muito bom, exatamente por não ser binário como alguma má crítica apontou, ou seja, apesar de dual o sistema tratava as nossas decisões num plano dimensional e não discreto.


O melhor do jogo é, sem dúvida, os ambientes criados por onde podemos viajar. Os cenários, o espaço, a possibilidade de aí construir, criar, lançar colonos, e avançar com novas civilizações. Em termos de ações, podemos agora dar saltos impulsionados pelo fato, temos um novo veículo ágil e rápido que nos oferece uma boa perspectiva dos mundos por onde viajamos. A colonização pode ser diferenciada entre desenvolvimento de ciência ou militar. Mas é a fluidez audiovisual que envolve tudo isto que nos faz sentir em harmonia com os lugares e vontade de continuar a voltar ao jogo, ainda que todo o sistema de crafting acabe sendo desnecessariamente complexo, e de difícil gestão.



Em jeito de conclusão, findada a main quest, existe tanto ainda por explorar e fazer no jogo que acredito poder fazer as delícias de quem resolver dedicar-lhe esse tempo, ainda que estejamos já no domínio dos fãs hard-core do jogo, nomeadamente por todas as potencialidades técnicas adicionadas ao que se conhecia da trilogia. Contudo, para quem vem à procura de uma experiência Mass Effect, ligação a personagens, tomada de decisões, perplexidade e dilemas narrativos, não a vai encontrar, e por isso não admira a fraca receção que o jogo teve. Ainda que muita da crítica se tenha focado em problemas técnicos como as expressões faciais, entretanto completamente refeitas nos novos patches, nada nessas transformações consegue disfarçar os vários problemas de escrita e narrativa apontados ao longo deste texto.


Ler mais
Processos de escolha em Mass Effect, VI, 2014
"Witcher 3": indústrias criativas e escrita de narrativa interativa, VI, 2015

julho 02, 2017

“Pry”, artefacto multimédia (livro/jogo/filme)

Esta semana participei num júri de doutoramento na UALG a propósito de Literatura Digital, em que a obra “Pry” (2015) foi utilizada como objeto principal do estudo de caso da tese. Apesar da abordagem multimédia de “Pry”, a promoção, pelos seus criadores Danny Cannizzaro e Samantha Gorman, tendeu a apresentar o mesmo como um novo tipo de livro e um potencial modelo para toda uma nova literatura. No caso da tese, versando sobre Literatura Digital, seguiu-se essa abordagem no sentido de tentar trazer para a teoria da literatura novo conhecimento. Do meu lado pareceu-me que "Pry" deveria continuar a ser visto apenas como artefacto multimédia.


Devo começar por declarar que me movo na área da Multimédia desde há décadas. Comecei pelo cinema, mas o meu interesse pelos videojogos fez com que me interessasse pela tecnologia, o que acabou por me levar a interessar por todo o tipo de experimentos tecnológicos com o cinema, nomeadamente cruzamentos com os videojogos. Aliás isso mesmo viria a ser o centro da minha própria tese. Assim tendo para algum proteccionismo da área e suas obras.

“Pry” é uma obra de grande excelência, desde logo porque apesar de procurar inovar o modelo de livros digitais através da apetecível plataforma que é o iPad — tendo em atenção que a obra começou a ser pensada em 2012, pouco depois do lançamento da plataforma, e de todo o deslumbramento criado na sociedade com as novas possibilidades que se apresentavam para todo o domínio do impresso, dos livros à imprensa — não se deixou seduzir pela “magia” da tecnologia, tendo colocado acima desta as ideias e a comunicação.


Como substrato narrativo temos um soldado retornado do Iraque, 6 anos depois da primeira invasão em 1993, a lidar com as suas memórias, e com o modo como as encaixa no seu dia-a-dia, como se relaciona com as pessoas, age e reage a diversos conflitos e como tudo isso o afeta interiormente. Temos assim um universo narrativo facilmente reconhecível que é depois trabalhado em diferentes media — texto, imagem e vídeo — e integrados numa obra multimédia. A tecnologia presente rapidamente se esvanece, torna-se transparente para que o recetor se possa focar apenas e só na história e nas suas motivações para participar na mesma.

Em sentido lato, a obra multimédia não obriga a existência de interatividade na sua relação com o recetor mas obriga a uma interação entre media processada por computador, de outro modo a multimédia sem interação com o recetor não passaria de cinema. “Pry” não se apresenta como novo meio de comunicação, é uma obra multimédia, diga-se bastante próxima das obras do meio lançadas na vaga dos anos 1990. Aliás, como muitas das Apps que foram lançadas com o iPad que fizeram surgir todo um revisitar dos anos de ouro do CD-Rom Multimédia, agora com muito melhor qualidade vídeo, imagem e som, tudo num suporte imensamente móvel, sem necessidade de ratos ou teclados, criando por meio da interface de toque a impressão de uma interação quase-transparente.


Mas aquilo em que “Pry” se destaca relaciona-se ainda assim com a discussão dos media, pela estrutura narrativa interativa desenhada para dar conta dos estados de consciência da personagem que automaticamente nos coloca frente a frente com a discussão das capacidade expressivas específicas dos meios: literatura e cinema. Assim: a literatura é reconhecida pela supremacia em dar a conhecer o não-consciente dos seus personagens, algo que foi extremamente enfatizado por movimentos como o modernismo e autores como Joyce e Woolf, naquilo que ficaria conhecido como “fluxo de consciência”; por outro lado o cinema apresenta dificuldades em dar conta desses estados interiores dos seus personagens, pela simples razão de que não pode deixar de se focar no visível, tendendo a centrar-se na consciência e suas ações externas realizadas pelos personagens.

Storyboard da interação, na qual se pode perceber como o gesto de abrir pinça, permite aceder à realidade visível (olho), e o gesto de fechar pinça, permite aceder ao não-consciente. 

“Pry” é assim uma obra multimédia que apesar de não inovar o meio, apresenta uma interativdade prenha de sentido. A relação entre a experiência literária e cinematográfica faz-se destacando a relevância do consciente e não-consciente para a compreensão dos personagens e da história, acontecendo apenas graças à interatividade. Ou seja, os autores não se deixaram levar por uma abordagem simplista de dar a experienciar cada uma das camadas da consciência por meio de cada um dos media (literatura para o não-consciente e filme para o consciente), antes o fazem de forma completamente transmediada, passando a ação de diferenciação entre os planos de consciência para a interatividade, empoderando o interactor, tornando-o responsável por aceder às camadas de consciência em função das partes da história necessárias à compreensão do arco dramático completo.

Trailer de "Pry" (2015)

Apesar de todo este meu posicionamento, acredito que as terminologias artísticas são tudo menos exatas e as suas fronteiras nunca estão encerradas. Na verdade a AppStore começou por catalogar "Pry" como Livros, só passados alguns meses é que resolveu mover a aplicação para a secção de Jogos. Contudo, nenhuma destas categorias serve o objeto bem. "Pry" é livro e mais do que livro, é jogo e mais do que jogo, é filme e mais do que filme, por isso talvez tentar reduzi-lo a qualquer uma dessas áreas seja simplesmente ingrato para com todo o trabalho multidisciplinar envolvido e o resultado final, um híbrido que espelha o fundamento da transdisciplinaridade que é no fundo o desígnio da multimédia.

novembro 19, 2016

XKCD, inovando o meio da banda desenhada

A TED de Scott McCloud, "The Visual Magic of Comics", já tem 11 anos, contudo nunca é tarde para inovar no sentido daquilo que McCloud tentou apontar como potencial de inovação da banda desenhada online. Por outro lado, não deixa de ser estimulante, ainda que meramente coincidente, que a bd XKCD tenha sido iniciada também nesse mesmo ano, 2005. Mas se venho aqui hoje falar de XKCD, não é por nenhuma das datas acima, mas é antes porque estava a analisar a listagem de vencedores do Hugo Award para Best Graphic Story dos últimos anos quando me deparei com o facto, que desconhecia, de que o XKCD tinha ganho o prémio em 2014, num concurso que entravam alguns pesos pesados da indústria, “Saga, Volume 2” e “The Meathouse Man” de George Martin.



Para quem anda pela web há alguns anos, e gosta de banda desenhada, duvido que nunca se tenha cruzado com o XKCD. Por uma razão ou outra, as suas tiras vão surgindo citadas, referenciadas, linkadas, discutidas. Se o desenho é básico, o seu autor tem um lastro capaz de lhe conferir temas de relevo, já que Randall Munroe (1984), antes de ser cartoonista, era físico investigador da NASA, onde trabalhava no design de robótica. Deste modo, o XKCD, não pela sua ilustração, embora a simplicidade seja relevante, mas pela formação, humor e persistência do seu criador, tornou-se em pouco tempo um dos maiores expoentes do género bd online, ou webcomic.

Interface de leitura de "Time", com o Play no topo, e a menção "at your own pace"; ao lado os botões de pausa e avanço; e ainda a indicação de que basta rolar o rato para avançar.


Interface de feedback participação dos leitores nas votações dos quadros relevantes, que permitem controlar o framerate do play do webcomic.


No caso concreto de “Time”, é particularmente relevante o modo como abre novas fronteiras no campo da banda desenhada, graças ao suporte do digital, nomeadamente em direção à animação, criando mesmo uma espécie de novo medium, que não é bd bem é animação. Ou seja, em “Time” seguimos duas personagens ao longo de uma aventura futurista, e se por vezes parece ser uma simples animação, logo de seguida essa se converte em banda desenhada, com balões de fala, diálogos, que estatizam o movimento. Daí que a forma de experienciar o webcomic, possa acontecer em modos diversos, desde o avanço pelos simples rolar do rato, ou botões de teclado, ou ainda o apertar de um play que nos leva pela história fora, fazendo variar o framerate em função dos questionamentos do painel ou dos diálogos.
“with "Time," I thought about how there was the in-between space between animation, where you get many frames per second, and a daily comic, where you're getting updates every day. I couldn't think of anything that had been done in the in-between space” Randall Munroe in RollingStone, 2014
Estamos perante um verdadeiro misto de animação e BD, em que o motor assenta na variação do framerate do trabalho. A publicação foi feita, inicialmente espaçada de 30 em 30 minutos, e depois de hora a hora, publicando-se os 3101 quadros ao longo de 4 meses. Se este método de publicação é inovador, e provocador do meio, tudo se torna ainda mais interessante quando Munroe, resolve abrir o modo de acesso animado, à participação dos leitores, para que estes contribuam no definir do framerate. Ou seja, as pessoas que leem a BD, podem ir votando nos quadros que consideram importantes, que devem ser pausados, ou a velocidade de play reduzida, durante o visionamento. Esta informação coligida dos leitores, é depois apresentada por meio de feedback, um glow border, à medida que vamos passando pelos quadros específicos, e usada pelo player para fazer as pausas, e assim variar entre animação e sequencialidade gráfica.

novembro 12, 2016

“Kinoautomat” (1967), o primeiro filme interativo

Uma das razões que me trouxe à conferência ECREA 2016 em Praga, foi poder ver ao vivo o primeiro filme interativo da história, “Kinoautomat” (1967). A sua produção teve como objetivo uma demonstração tecnológica no pavilhão da antiga Checoslováquia, na Expo 1967, em Montreal. O filme além de requerer comandos distribuídos pela audiência, requer ainda um apresentador que interage com a audiência e com o filme. Neste caso tivemos a sorte de ter a realizar esse papel, a filha do realizador Raduz Cincera, Alena Činčerová.



A sessão dura cerca de uma hora e um quarto, para um filme que terá à volta de trinta minutos. Os comandos originais estavam fixados aos sofás da sala de cinema (com cerca de 124 lugares), neste caso deram-nos comandos portáteis, que tivemos de devolver no final, estando na sala cerca de 60 pessoas. O filme é a preto e branco, e é fundamentalmente uma comédia negra, muito típica dos anos 1960, recorrendo a alguns dos estereótipos mais banais, como “a vizinha do lado”, a “família que chega da província”, o “louco que tudo sabe”, ou ainda “a velha inocente que é muito pouco inocente”. Contudo, e apesar de todos estes clichés, fez-me rir como já não ria há bastante tempo, recordou-me imenso o cinema de Louis de Funés. Claro que estar inteiramente predisposto e altamente expectante terá ajudado, mas a verdade é que Cincera consegue imprimir ritmo, produzir cenas curtas carregadas de leitura de enredo que nos fazem ver múltiplas possibilidades muito rapidamente, e por isso ainda mais desejosos de participar nas escolhas propostas.

O cliché, da vizinha bonita do lado que fica trancada fora do seu apartamento, é o mote para todo o conflito.

O sistema de escolhas, e tendo em conta que é coletivo, funciona numa lógica de maioria. Ou seja, existem sempre apenas duas opções, verde e vermelho, e as cenas são escolhidas em função daquilo que a maioria presente em sala escolhe. Parecendo um sistema meramente mecânico, devemos relembrar que em 1967 a Checoslováquia vivia debaixo de uma sistema totalitário comunista, sem direito a eleições, votos, nem escolhas de maiorias. Nesse sentido, uma das grandes questões que terá estado na base da invenção deste sistema terá sido a crítica ideológica. Num país em que não se pode escolher, poder escolher como deve prosseguir o filme, é no mínimo instigador, mas na verdade revolucionário! Não admira que o filme tenha sido proibido no país, e mesmo impedido de circular durante muito tempo pelo próprio governo da Checoslováquia.



Algumas escolhas são triviais, não nos movem particularmente, outras são até bastante duras, ainda que tratando-se de comédia negra, deixam-nos hesitantes, questionam-nos sobre o tipo de pessoa somos, "Eu não posso deixar de...". Por outro lado, por vezes, a questão passa a um estado meta, em que deixamos de nos colocar no lugar do personagem, e passamos a pensar no efeito na história e no que desejaríamos ver acontecer no filme e com os personagens.

A inovação, ou melhor, a grande distinção, face ao cinema interativo que veio a suceder a "Kinoautomat" está no apresentador, o entertainer. O seu papel era o de orientar a audiência no processo de escolha, explicar e garantir que estes realmente interagiam, já que aquela era uma experiência nova. Mas do que pude apreciar, acaba servindo muito mais do que isso, o facto de termos uma pessoa que fala connosco, que dá ordens ao filme, e nos questiona, faz com que as pausas para interatividade, tão malfadadas pela quebra de ritmo, se tornem prazeirosas, e sejam elas parte da obra. Ou seja, o filme interativo não é apenas o que vai surgindo na tela, nem a interação é apenas o que nós escolhemos no comando, é antes um todo, uma instalação, uma performance, um jogo, que cria um espaço de relação interno à audiência e desta com o apresentador, e desses todos com os personagens no filme, na tela. E é por isso que se gera uma experiência tão vívida, tão entusiasmante. Não sou apenas eu que escolho, enquanto escolho penso nos outros, sinto-os ali, meço-lhes o pulso pelo que a maioria escolhe, a própria apresentadora vai fazendo comentários ao tipo de audiência que temos ali naquela noite — conservadores, curiosos, impulsivos, pecaminosos, etc.

As escolhas da sala surgem no ecrã, em pequenas bolas, que crescem de baixo para cima, como um gráfico que sobe, até que se identifica o lado escolhido pela maioria.


Fluxograma de "Kinoautomat" criado por Brian Moriarty, no qual se pode ver como a maior parte das escolhas, são mera ilusão. Por outro lado, não podemos esquecer que a projeção em 1967 era feita com grandes máquinas de projetar película, controladas manualmente, o que impossibilitaria uma criação real de vários ramos de nós.

Em relação ao desenho das escolhas, e pelo que consegui ver, e depois pesquisar online, elas são bastante limitadas, como seria expetável, criando-se muito mais ilusão de escolha, do que consequência efetiva. Contudo, a audiência não sente essa ilusão, a audiência participa ativamente, envolve-se fortemente, e deseja agir nessas escolhas. Instigada pela força questionadora do filme, mas também pela apresentadora que nos espevita a curiosidade do que poderá vir a seguir. Aliás, um dos elementos que mais funciona para esta ativação da audiência, é que em cada paragem do filme, para cada escolha, a apresentadora levanta ligeiramente o véu do que pode vir a acontecer, deixando rolar alguns frames de cada uma das diferentes opções, o que torna ainda mais estimulante todo o processo de escolha.

Trailer recente da experiência

Para fechar, foi sem dúvida uma sessão de cinema, ou experiência, não só muito animada, mas imensamente participada e sentida, a demonstrar todo o poder do cinema interativo, quando bem pensado. Mesmo que recorrendo a ilusão de interação, mesmo que recorrendo a clichés, o trabalho é irrepreensível, o que acredito ter contribuído, e continuar a contribuir, para inspirar muitos dos que se aventuram por estes caminhos.

setembro 12, 2016

No ciclo infinito da interatividade

Depois de se ter estreado no Tribeca Film Festival 2014, onde ganhou o Future of Storytelling 2014 – Grand Prize, é finalmente possível experienciar na web, um dos filmes mais estimulantes do cinema interativo dos anos recentes, “Possibilia” (2014) de Daniel Kwan e Daniel Scheinert, ou simplesmente Daniels.





Possibilia” apresenta uma premissa comum, diria mesmo já saturada, que passa por explorar as diferentes possibilidades à volta de um casal que se está a separar. Já vimos isto no drama interativo “Façade” (2005), mas vimos também no cinema com “Sliding Doors” (1998), e imensas vezes na literatura. Quando a interatividade está presente, o primeiro impulso passa por colocar o espetador no controlo, implicá-lo no decorrer dos eventos, obrigar a tomar partido, mas “Possibilia”, apesar de se valer da interatividade, não segue a cartilha “Choose Your Own Adventure” e não permite verdadeiramente que o interator participe, no sentido de tomar decisões sobre o futuro daqueles personagens.

“Possibilia” pega num tema gasto e nas fórmulas até aqui usadas pelos designers de interação narrativa, e como que joga tudo pela janela fora. O mundo de possibilidades que uma potencial separação pode conter, é aqui, e graças à multilinearidade permitida pela interatividade, apresentada como totalmente real. Na nossa frente, aos poucos, vão surgindo cada uma dessas possibilidades, até podermos seguir em simultâneo 16 fluxos, podendo saltar entre eles à nossa vontade. O mais interessante é que algo que à partida seria banal, uma mera possibilidade tecnológica, ganha enorme significado no contexto da história que se conta.

A fragmentação em fluxos filmícos é o reflexo da fragmentação daquele casal, das múltiplas realidades que atravessam as suas cabeças, e de um mundo que se desmorona. A história perde o foco porque aqueles personagens perderam o foco, tudo fica confuso, tal como confusos se sentem os personagens. Mas não se trata apenas de apresentar os diferentes fluxos possíveis, no detalhe podemos ver como esses vão incrementando o texto com os efeitos desses "mundos possíveis", e como depois tudo entra em regressão. Ou seja, a forma interativa fílmica reflete aqui de forma impressionante, mais ainda pela enorme dinâmica cinematográfica e da direção de atores conseguida, o que se quer exprimir, tornando a obra num objeto artístico integralmente coeso.

Como se não bastasse, o facto de o filme poder ser visto em ciclo infinito, ganha não só a história que parece de repente voltar a receber uma réstia de esperança, como reflete no seu sentido mais essencial a arte da interatividade, já que o ciclo ao não se findar, eterniza a necessária relação cíclica entre obra e interator.

"Possibilia" (2014) de Daniel Kwan e Daniel Scheinert

Os Daniels deram várias entrevistas desde então, dessas repesquei a dada à Dissolve, e extraí algumas das ideias mais relevantes explicitadas por Daniel Kwan:


Como convencer os outros da relevância da narrativa interativa?
“‘What if something like Game Of Thrones had an interactive element?’ Obviously, that’s the most marketable thing ever, but impossible to actually execute, because no one knows what that is.”
“Honestly, the pitching process for any of these things is impossible. No one understands it, no matter how we do it. You could do a traditional treatment written out with all the images, the producers won’t get it. You can send them a map of the storyline, they wont get it. Nothing gets to them until they actually play with it.

O mais interessante é que mesmo pessoas como George Lucas, que já estiveram na frente de companhias de videojogos, continuam a não aceitar o medium, tendo mesmo dito aos criadores deste filme: “What you guys do is a circus. What I do is poetry.”


O que se pretendia com "Possibilia”?
“Possibilia” (..) specifically, our goal was to make sure it was not videogame-y. Your actions don’t create a reaction or consequence."
“A lot of people got hung up on the lack of consequences with “Possibilia,” because it’s a clean, perfect loop that has no resolution. It’s more about exploration. The narrative, and its thematic elements, are tied into what’s happening with interactive, because of this idea that “Possibilia” is kind of this weird, fruitless cycle. We try so hard, we explore everything, we go down all these different paths, we’re constantly wondering if we’re watching the best version, we’re constantly wondering if we should be looking at everything else. Much like in any relationship, you’re constantly wondering, “Am I in the best relationship I could be? Could I go out and be somewhere else with someone else?”
“It’s not completely hopeless, obviously, because it starts all over again. There’s this little glimmer of hope, and a desire to explore more, as well. I think how the interactive is going to work, as far as how videogame-y it’s going to be, depends on the story, and what you’re trying to mirror thematically. The form should never be divorced from the theme.”
“I think interactive films are the worst when you have 10 different endings, because every time you tell a story, you’re just tricking your brain into believing you have something real to empathize with. The moment you give me more than one ending, you’re diluting that, you’re actually breaking the trick, ruining the illusion.”

setembro 06, 2016

“Firewatch" (2016), o anti-catártico

Firewatch” não é o jogo que tinha idealizado, mas talvez por isso mesmo me tenha surpreendido tão intensamente. “Firewatch” demonstra, como tem vindo a demonstrar uma boa parte dos videojogos narrativos recentes, que o meio dos videojogos tem ainda muito caminho a desbravar no campo do storytelling, e que vai bem, muito bem até.





Comecei por adorar o prelúdio em que se mistura ficção interativa com walking simulator, ou seja em que nos é dado a conhecer o personagem, nomeadamente a construção de uma relação, e sua vida no passado, por meio de diálogos textuais, intercalados com o presente e a nossa chegada à floresta. É algo simples, minimal, mas muito bem ritmado, com uma abordagem e perspectiva imensamente adultas, ao nível do melhor que se faz em literatura. Acredito que exatamente por ser tão conseguido, me tenha gerado tanta surpresa o que veio depois a ser o jogo em si, com uma mudança de tom tão distinta, mas que acaba justificando-se plenamente, e que espero conseguir explicar neste texto sem detalhar a história.

Assim, em face de uma perda dramática apresentada no prelúdio, somos apresentados a um ambiente de solidão, no meio de uma vasta floresta, mas dominado por um tom humorístico, por vezes negro, num sentido de clara fuga à realidade. Na verdade é a isso mesmo que o jogo almeja, ou melhor, é essa uma das razões que usa para explicar porque existem pessoas capazes de se desligarem das suas vidas por 3 meses, e isolarem-se no meio de uma floresta no alto de uma torre, sem cortinas, televisão, telemóveis, nem mesmo chuveiros.

Nós somos Henry, e passaremos 3 meses isolados numa torre de vigia de incêndios, apenas em contacto via rádio portátil, ou walkie-talkie, com Delilah, a colega da torre mais próxima. Ao longo desse tempo acabaremos por conhecer melhor ambos, e construir entre estes uma relação. Tal como no prelúdio, a gestão narrativa é muito conseguida, fazendo-nos acreditar na existência de ambos os personagens, desejando-lhes o melhor.

Neste sentido “Firewatch” acaba abrindo mais uma forma de explorar os walking simulators, ou seja, se “Gone Home” (2013) contava a sua história por meio do ambiente, “Firewatch” conta a sua história por meio de diálogos em off, que apesar de se aproximar do narrador em off, muito bem explorado em “The Stanley Parable” (2014), funciona diferentemente porque permite acesso a todo um manancial de técnicas da ficção interativa para nos induzir um sentido participatório mais intenso, e é aqui que acaba por residir a essência de todo jogo.

Ou seja, tendo em conta toda a história, percebemos que o objetivo de ir para o meio da floresta por tantos meses é a solidão, mas é também uma forma de lidar com um drama interno, acreditando que por meio da introspeção se realizará uma espécie de cura. Contudo sabemos bem que a cura não surge do isolamento, isso é uma ilusão que a depressão desenvolve em nós, já que o isolamento só afunda ainda mais, ainda que seja requerido em certos momentos para lidar connosco mesmos. Neste sentido, “Firewatch” praticamente obriga-nos a lidar com o outro, ainda que apenas por via rádio, mas obriga-nos a despertar para o real que nos circunda, impedindo a entrada no mundo da divagação e alheamento. E por isso o diálogo em off, e o tom menos sério do mesmo, e até mesmo a ação detetivesca e conspiratória, assumem tão grande relevância, sendo subtilmente tão nevrálgicos.

Admito que inicialmente não percebi isto. Inicialmente não gostei de me obrigarem ao diálogo, menos ainda da conspiração à lá "área 51", por estarem a brincar com os “meus” sentimentos, eu pretendia explorar toda aquela natureza bela, senti-la no isolamento do som da natureza, mas o jogo impediu-me, como quem impede o bêbedo de aceder a mais álcool. Poderia parecer uma ultra-interpretação esta leitura que faço, mas se olharmos ao twist narrativo final, para quem já jogou, se pensar no que se passou com Ned e porquê, verá como funciona em total contraponto com a aquilo que se permite a Henry, para evitar que Henry se transforme em Ned. Este twist, apresentado em muitas análises como anti-catártico, é-o porque a isso se objetiva em termos emocionais, ou seja, busca-se a construção de um conhecimento sobre o personagem que implica reflexão e não o mero murro emocional, aristotélico, diria mesmo que “Firewatch” consegue desta forma ser um dos jogos mais brechtianos que tivemos até agora em termos emocionais.

Em síntese, “Firewatch” apresenta uma das melhores histórias jogáveis dos últimos anos, não pelo fantástico que é a sua apresentação, mas antes o contrário, pela forma sublime com faz passar a essência da sua mensagem, fugindo totalmente ao in-your-face hollywoodiano, obrigando-nos a pensar não apenas no que é dito e mostrado, mas por tudo o que isso nos obriga a sentir e refletir, construindo à posteriori um sentido do todo.

junho 25, 2016

"Life is Strange" (2015)

“Life is Strange” é um videojogo, mas podia facilmente ter sido um filme, ou mesmo um livro, no que aos assuntos tratados concerne. Por outro lado, e apesar de tratar uma história de adolescentes, vai muito para além do que temos visto em muito daquilo que se passou a designar pelo género Young Adult, nomeadamente no tratamento psicológico dos seus personagens, mas também porque sendo uma história interativa, obriga a tomadas de decisão que obrigam a graus de reflexão que garantem enormes ganhos de consciência de si. Tudo isto ficou ainda ontem bem evidente com os prémios atribuídos pela organização Games for Change, nas categorias de Melhor Jogo e Maior Impacto.




“Life is Strange” pode ser visto como uma espécie de consagração final das aventuras gráficas dos anos 1990. Depois da Telltale ter iniciado a nova abordagem do género, nomeadamente com o brilhante guião interativo de “The Walking Dead” (2012), a DontNod elevou a fasquia de produção e apresenta não apenas uma história originalmente criada para o meio, mas todo um trabalho de elevada qualidade nomeadamente em duas grandes categorias: o storytelling interativo e a arte visual. Diga-se que não é fruto do acaso, já que a DontNod tinha-nos presenteado com o interessantíssimo "Remember Me" em 2013.

A essência da história de “Life is Strange” aborda os problemas de final de adolescência colocando os personagens em confronto, nomeadamente psicológico, com problemas que vão desde a amizade e identidade ao bullying, suicídio e gravidez jovem, acentuando-se sobre as nuances que separam o medo e a afirmação, expondo a transformação, o trânsito numa fase crítica da vida, que não só deixa marcas como também acaba por definir aquilo que se virá a ser. Sendo um jogo, uma história interativa, este confronto não é meramente exposto para que se testemunhe, mas antes utilizado para colocar o próprio jogador dentro do confronto, obrigando-o, ao contrário da literatura e do cinema, a confrontar-se consigo mesmo. Este design de storytelling interativo, dos confrontos narrativos com o jogador, é tão eficaz que o utilizei recentemente numa conferência para dar conta da diferença entre modalidades narrativas em diferentes media, usando em particular uma sequência do jogo no qual somos confrontados com a eutanásia.

“Life is Strange” colocou-me pela primeira vez face a um impacto real do modo como a agência narrativa, permitida pela interatividade, altera a nossa percepção da realidade. Acreditando, e defendendo, o direito à eutanásia, no sentido da garantia da liberdade individual, e mesmo no sentindo mais lato de impossibilitar o uso de meios de manutenção artificial de vida, quando confrontado com a questão pelo jogo, estaquei! Todo o envolvimento criado pelo jogo, a empatia com as diferentes personagens, a proximidade e relacionamento criado, colocou-me entre o racional e o emocional. Se por um lado acreditava na teoria que tinha desenvolvido ao longo dos anos, por outro lado, emocional, acabei por não conseguir proceder...

Dos slides da keynote "Videogames and Multimodal Literacy" (2016)

Este breve momento do jogo fez-me perceber que a linguagem dos videojogos se distancia do cinema por muito mais do que a interatividade, que o potencial de agência latente no meio, que o facto de passarmos a agir em vez de testemunhar a realidade, altera radicalmente a nossa experiência narrativa, com consequências para aquilo que somos, ou acreditamos ser. O cinema continua sendo poderoso, não posso deixar de mencionar aquilo que me parece uma referência cinematográfica deste jogo, "Blue is the Warmest Colour" (2013), contudo, tal como a literatura se distancia do cinema, os jogos distanciam-se também bastante do cinema, apesar de ainda assim podermos continuar a considerar ambos como comunicação audiovisual.

Sendo este um dos momentos altos, outros se aproximam, nomeadamente o trabalhar da possibilidade de viajar no tempo para nos colocar em confronto com a dura realidade, que nunca é fruto de uma variável única, mas de um conjunto infinito de possibilidades, impossíveis de controlar, colocando-nos face à inevitabilidade do real como acaso, assumindo a impossibilidade de predeterminar o futuro a partir da impossibilidade de compreender todas as variáveis do passado que realmente dão origem ao presente e futuro.



Claro que tudo isto acaba funcionando muito bem porque no seu conjunto “Life is Strange” é uma obra que integra altos níveis de execução técnica, não apenas na escrita como vimos, mas também em toda a sua arte visual. A atenção ao detalhe, o trabalho de iluminação e cor, são absolutamente deliciosos. Os autores conseguiram estabelecer um ponto bem definido entre formalismo e realismo, capaz de garantir um lado mais adolescente pelo toque de ilustração e banda desenhada, e ao mesmo tempo adulto pelo fotorealismo do seu 3d e luz. Tudo é depois magistralmente composto e garantido por enquadramentos verdadeiramente sumptuosos, dignos do melhor que a linguagem cinematográfica nos tem conseguido oferecer em termos audiovisuais.