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outubro 12, 2019

Como Ler um Livro

How to Read a Book: The Classic Guide to Intelligent Reading é um livro de 1940, pertence a um mundo no qual não existia internet e em que a partilha deste tipo de informação funcionava melhor no formato de livro. O conteúdo do livro acaba tratando muito daquilo que ensinamos aos nossos alunos de mestrado e doutoramento, algo que hoje fazemos melhor por via de aulas e artigos curtos. Ou seja, ensina a ler profissionalmente e não por prazer, deste modo a generalidade do que aqui é dito destina-se à leitura de não-ficção, e apenas a Literatura no caso de quem a trabalha de modo analítico, e não por mero prazer. Assim, resenho aqui o livro no sentido de divulgar e servir aqueles que usam os livros e seus conteúdos com caráter académico e/ou profissional.


Mortimer Adler foi um professor universitário de filosofia e passou grande parte da sua vida a discutir a relevância do ensino e educação na formação da sociedade, por isso não admira este trabalho didático, no ensino do manejamento do livro, já que ele contribui para a elevação da literacia das comunidades, ao mesmo tempo que baixa algumas barreiras que alguns jovens encontram quando entram nos corredores da Academia. A ideia de que para se fazer uma tese é necessário ler de fio a pavio 200, 300 ou mais livros, no espaço de um a dois anos, assusta qualquer um e pode antecipadamente criar resistências internas que tarde ou cedo predisporão à desistência. Por isso, este livro continua sendo relevante, não que seja obrigatório. Não faltam na internet dezenas e dezenas de artigos explicando muito do que Adler aqui explica, de forma sintetizada, diagramática e bastante mais direta. Ainda assim a proposta é bem estruturada, e para quem sinta a perplexidade com as necessárias leituras, pode ser um excelente ponto de partida. Com o bónus de ir além, já que no caso em que os livros são fundamentais e se sugere seguir para uma leitura aprofundada — analítica e sinóptica —,  Adler propõe um conjunto de ferramentas de análise que se podem tornar muito relevantes para quem trabalha a produção de conhecimento escrito.

O método de Adler e Van Doren divide a Leitura em quatro fases — Elementar, Inspetiva, Analítica e Sinóptica —sendo a primeira a mais simples e rápida, e a última a mais complexa e elaborada.


1 – Leitura Elementar
Corresponde à leitura normal de qualquer livro — análise da capa, sinopse e sumário nas badanas ou contracapa, passar os olhos por algumas páginas, lendo um ou outro parágrafo, e depois início no capítulo 1, seguindo até ao final. Esta abordagem é aquela que seguimos com os livros tradicionais de histórias, mas não é o método aconselhável ao estudo académico, esse deve saltar o passo 1 e iniciar-se pelo passo 2.


2 – Leitura Inspetiva
Adler e Van Doren sugerem um trabalho em seis passos:
  1. Leia o Título e o Prefácio,
  2. Estude o Índice,
  3. Analise o Índex de palavras,
  4. Leia a Sinopse
  5. Veja os Capítulos Principais
  6. Folheie o livro, lendo partes que saltam à vista
Depois disto, deve realizar-se uma leitura na diagonal (muito rápida de todo o livro), nunca parando em partes mais complexas. Se as partes complexas forem relevantes, voltaremos a elas mais tarde. A ideia é ganhar uma compreensão do todo que está dentro do livro apenas para tomar uma decisão importante: devemos ou não proceder para a fase seguinte?


3 – Leitura Analítica
Nesta fase, entramos na discussão com o livro, e é uma fase que demorará tanto quanto exigir a complexidade do livro na relação com o grau de conhecimento detido pelo leitor. Ou seja, pode demorar bastante mais do que a simples leitura do primeiro ao último capítulo. O objetivo não é ler para conhecer, mas sim trabalhar o conteúdo do livro para o dominar. Por isso, não é o tipo de leitura que se faça com qualquer livro, mas apenas com aqueles que vão ao centro do tema, problema ou abordagem que são relevantes para nós.

Já temos uma noção do que o autor pretende tratar e do modo geral como escreveu sobre o assunto, mas agora vamos concretizar esses elementos para depois os poder questionar:

3.1. Qual é o Problema?
O principal depois de uma análise inspetiva passa pela classificação do livro, o que requer definir, o mais concretamente possível, que problema ou questão está a tentar ser respondida. Isto é o cerne para compreender a razão de tudo aquilo que o livro é, e permite-nos sustentar todas as ideias do livro, porque elas se ligam a esse foco, esse objeto.

3.2. Como é trabalhado e respondido?
Depois interessa então aprofundar. Compreender como é que o autor abordou o problema, e que soluções propõe para o mesmo. Aqui temos de elencar as proposições, e tentar compreender o sistema de ideias desenhado pelo autor para suportar o que pretende dizer. É complexo porque implica uma entrada dentro do modo de pensar do autor, uma espécie de engenharia reversa do que levou à escrita do livro.

3.3. É sustentado, lógico e completo?
Neste ponto, entramos então na análise crítica. Olhando ao problema e soluções propostas, estas fazem sentido? estão sustentadas em argumentos? ou existem dados empíricos que corroborem o que é dito? A análise crítica não pode ser vazia, ou seja, se discordamos é porque temos argumentos para o fazer, e não apenas porque “nos parece”. Para o efeito precisamos não apenas de apontar os problemas do autor, as suas falta de informação, ou racionalizações sem sentido, e dar conta do que falta. Isto é um trabalho moroso, mas ele é que nos vai permitir chegar à total compreensão do livro.

3.4. O que é o livro?
Aqui chegamos ao momento final, ao momento em que podemos emitir a nossa opinião pessoal, sobre o que é o livro, sobre o que pretende apresentar, como o faz, mas sobretudo lançar a nossa perspetiva sobre o conteúdo do que é discutido, concordando ou discordando do autor.

Este ponto seria o último, mas Adler e Van Doren propõe um último, que minha opinião já não tem que ver com a leitura de um livro em particular, mas com o estudo de um assunto, tema ou problema.


4 – Leitura Sinóptica
Aqui, o objetivo dos autores vai para além do livro concreto que se está a ler, e pretende criar lastro para que o leitor possa ter uma noção mais concreta do problema discutido pelo livro, do conhecimento existente em seu redor, no fundo realizar aquilo que na academia hoje em dia definimos como: revisão de literatura. Na verdade, não é possível realizar o último ponto da leitura analítica sem fazer este trabalho. Mas como é que isto se faz? A ideia principal a reter, assenta nas referências dos livros ou textos. Ou seja, precisamos de procurar sobre o tema, e à medida que formos lendo sobre ele, verificar quais são os autores que se repetem, ir atrás desses, até que consigamos ter uma noção do leque de autores principais que trabalhou o tema, e as ideias principais defendidas.

Claro que nos dias de hoje muito deste trabalho está feito na Wikipedia, mas o que é aí apresentado não deve ser visto como trabalho fechado, antes pelo contrário. Para quem trabalha profissionalmente o conhecimento, a Wikipedia é apenas um acelerador da definição do grupo de pessoas que devemos pesquisar. Ou seja, por meio da entrada na Wikipedia, podemos aceder logo a um conjunto de nomes, que podemos então começar a estudar, aprofundar, e assim chegar a construir a nossa visão sobre o problema. Repare-se que a Wikipedia não apresenta opiniões, limita-se a listar factos, e aquilo que se espera de alguém que faz um estudo, é que domine os factos a ponto de poder emitir uma opinião sustentada.

A razão pela qual a opinião pessoal, sustentada, continua a ser relevante para além do que vem na Wikipedia, é que ela é provida de experiência e conhecimento do mundo que cada um de nós, seres humanos complexos e distintos, detemos em conjunto com as leituras que tivermos decidido realizar, o que conduz a perspetivas particulares que garantem uma constante diferenciação no estudo de problemas que podem ser os mesmos, mas consequentemente conduz a soluções próprias que podem ser inovadoras. A solução inovadora é no fundo o objetivo último da leitura, chegar a ter uma perspectiva crítica a ponto de conseguir produzir uma solução própria, nova.


julho 13, 2019

O Quarto de Marte (2018)

Foi o Segundo livro de Kushner, o primeiro tinha sido “Os Lança-Chamas” (análise), do qual tinha adorado a forma mas não me tinha ligado com o conteúdo, agora aconteceu em parte o contrário, já que a forma sendo boa não me impressionou, mas sendo fluída acabou gerando uma excelente plataforma para as histórias contadas e o universo criado. O tema de fundo é a prisão perpétua, como se chega a ela e como se lida com ela, quem são as pessoas (nos EUA) sujeitas a ela. Kushner faz um bom trabalho, não se liga à defesa nem à provocação, plana antes sobre os diferentes lados da questão, dá-a ver e a sentir, mas deixa na consciência do leitor o labor crítico de formação de opinião.


O mais evidente desta abstenção de exercício da sua posição e propaganda é desde logo o modo como Kushner evita as emoções que seriam fáceis tendo como pano de fundo condenadas à vida, e mesmo à morte. Seria fácil fazer chorar o leitor, ou logo a seguir enraivecer o mesmo. Temos momentos em que Kushner quase roça a defesa, em que dá conta dos problemas que vivem e atravessam as condenadas, mas é tudo suficientemente balançado para não nos levar pelo coração. As descrições do dia-a-dia, das relações entre prisioneiras, suas conquistas e escapes, vão preenchendo o espaço-tempo de algum normalidade que nos retira dos pensamentos de fins ou injustiças do sistema.

Ainda assim, mais perto do final, torna-se praticamente inevitável questionar a razão, o objetivo, o fundamento, e as evidências que suportam tais penas. Não é apenas pela gravidade, ou pela idade em que se cometem, ou pelo efeito de estupefacientes, ou desespero social ou humano, mas é mesmo pela desproporção da pena que não deveria nunca ser vista como vingança mas antes como reabilitadora. É isso que aqui se levanta, ainda que Kushner não o discuta, apenas aflore, ainda que Kusnher nem sequer dê exemplos ou comparações com outros estados americanos, ou com a Europa. Por exemplo em Portugal a pena máxima é de 25 anos, e essa raramente é cumprida na totalidade se a pessoa demonstrar arrependimento e tiver bom comportamento. Que buscamos demonstrar à sociedade quando penalizamos alguém com uma pena, ou no caso, duas penas perpétuas seguidas? Não é isto completamente desprovido de senso? Sim, eu sei que qualquer ser humano quando agredido, ou agredido um dos seus, reage vingativamente, existe uma necessidade interior de expiar a dor, de sentir que o universo se regula por uma justiça com pesos iguais. Mas se inventámos um edifício social de Justiça foi para findar com essa vingança, para pôr cobro a um sentimento que de nada serve, e que se seguido pelo sistema penal dá como exemplo a toda a sociedade a lógica dessa vingança, em nada então se diferenciado do animalesco desse sentir. Veja-se a história da condenada a três perpétuas que Obama indultou, compare-se os seus crimes com as aberrações dos casos OJ Simpson ou o mais recente caso de Jeffrey Epstein, em que o dinheiro e acesso ao sistema fazem toda a diferença.

Neste livro Kushner está completamente focada nas penas e nas prisões, nos seus personagens, e nunca abandona o tema, teve claramente muito trabalho para conseguir chegar a algumas das descrições apresentadas, ainda assim senti-o menos elaborado do que “Os Lança-Chamas”, menos rico em detalhe, talvez menos ornamentado, mas como disse, mais instigante em termos de mensagem.

abril 26, 2019

Sobre o Mito: “desde que se leia”

Um dos grandes mitos que surgiu nas últimas décadas com a elevação do discurso pós-moderno a discurso popular e consequente queda de reconhecimento dos especialistas, foi o da colocação ao mesmo nível de qualquer texto, independentemente da sua forma ou conteúdo. Diz-se e lê-se um pouco por todo o lado: “o que é preciso é ler, desde que se leia, não importa o quê”. Nada podia ser mais erróneo. Vamos usar um modelo simples de análise textual para perceber porque importa e faz diferença aquilo que se escolhe para ler.


A desconstrução, simples, de texto pode ser feita nas suas três unidades básicas que funcionam como camadas: sintaxe, semântica e pragmática. Assim, temos:
1º nível – Sintaxe: conjunto de regras e princípios que governam a estrutura das frases (Ex. explica como se conjugam verbos, ou plural e singular, etc.); 
2º nível – Semântica: é onde se atribui sentido às palavras e frases (Ex. “bola”, quer dizer pedaço de borracha esférica; mas “bola de futebol americano” quer dizer pedaço de borracha oval).
3º nível – Pragmática: aqui elevamos a complexidade, é onde se atribui sentido às palavras e frases em função da relação que temos com os significados ou com a pessoa que as emite. (Ex. “cruz”, um católico pensará em Cristo, mas um matemático tenderá a pensar em sinal de multiplicação; se um professor e um médico nos dizem “que não estamos a ir bem”, apesar da mesma sintaxe e mesma semântica, não querem dizer o mesmo).
Quando iniciamos os nossos passos como leitores, perto dos 6 anos, começamos pela sintaxe. Aprender as letras, depois palavras, depois regras que nos permitem juntar palavras e formar frases. Quanto mais lermos, mais exemplos vamos conhecer sobre como juntar letras e palavras para criar frases. Depois disso, começamos a perceber que existem muito mais palavras do que aquelas que usamos no dia-a-dia e que exigem durante o processo de leitura o uso do dicionário, o que nos vai fazendo ampliar o vocabulário, assim como acrescentando novos significados a frases compostas que antes desconhecíamos. Depois disso, começamos a perceber que apesar de poderem ser as mesmas palavras ou frases, elas variam em função de quem está a falar, do contexto, do local ou momento em que estão a ser ditas, e por isso vamos ampliando a nossa bagagem das múltiplas interpretações possíveis da linguagem.

Tendo em conta estes processos, podemos dizer que ler sempre o mesmo, ou um conjunto restrito de estilos textuais, é suficiente para o domínio sintático. Ou seja, para uma criança pequena, a dar os primeiros passos, não interessa muito o que vai lendo, desde que leia. O que se pretende é que memorize as letras, palavras, frases as suas posições, organizações e usos. Mas a determinada altura, temos de começar a guiar as leituras, temos de lhes oferecer textos que eles compreendam para que se mantenham a ler, mas que ao mesmo tempo vão exigindo mais e mais conhecimento de significados, de forma a garantir que eles vão ampliando o vocabulário, os diferentes usos frásicos, assim como as noções de composição diferentes dessas mesmas frases. Chegados à terceira fase, temos de começar a ler aquilo que numa primeira leitura não nos atrai, por ser diferente do que estamos habituados, ou seja, "sair da zona de conforto". Porque já não chega ampliar o vocabulário, precisamos de ler diferentes versões da realidade para podermos começar a comparar, a confrontar e a contrastar, e assim começar a compreender porque as mesmas palavras, e as mesmas frases, e as mesmas ideias podem conter outros significados até aí desconhecidos.

É por isso que ler qualquer coisa não é indiferente. Se lermos todos os dias, mas a leitura for colocada sempre ao mesmo nível de desafio, ou seja, não forem apresentados significados novos de palavras, frases, ou dos seus diferentes usos, é como se não estivéssemos a ler nada. O texto está a servir apenas de condutor, de envelope, ao qual nem sequer prestamos atenção. É como passar todos os dias na mesma estrada, não aprendemos mais sobre ela depois de passar por ela 100 vezes, não é por acaso que na maior parte dos dias não nos lembramos sequer de ter feito a estrada para o trabalho, nada de novo chamou a nossa atenção, foi mera repetição, por isso nada ficou dessa passagem.

Ou seja, ler Dan Brown ou José Rodrigues Santos pode até saber-me bem pela intriga e aventura, pode funcionar como umas horas bem passadas de entretenimento, mas por mais horas que os passe a ler, as minhas competências tanto de compreensão textual como de escrita não vão melhorar em nada (a não ser que seja um adolescente, ou seja alguém que leu muito pouco, e ainda não tenha atingido um nível médio). Lê-los, será como passar pela mesma estrada para o trabalho todos os dias, com a vantagem de poder ser divertido.

Do mesmo modo, se for um livro de não-ficção — sobre Astronomia, Vinhos ou Cinema — aprendo sobre o assunto em questão, mas não devo esperar que essa leitura altere ou contribua para melhorar as minhas competências de leitura e escrita. Por outro lado, se não incrementar o nível de detalhe, aprofundamento e erudição dos tópicos sobre esses temas, pela ausência de variação continuarei apenas a solidificar o que já sei, não passando disso. É por isso que as novelas de amor e traição se revelam tão pouco relevantes para além do mero divertimento, não só são limitadas no uso das funções textuais, como não vão além do baralhar e voltar a dar das tramas amorosas, descurando toda a restante complexidade humana.

Nunca se leu tanto no planeta como hoje, porque nunca as pessoas viram a sua realidade tão mediada por ferramentas que operam com imagens e texto, sendo o texto o principal meio de que as pessoas dispõem para se fazer ouvir. Desde os jornais e suas caixas de comentários ao Facebook, Twitter ou WhatsApp, nunca nos vários milhares de anos que levamos como espécie, houve tanta pessoa alfabetizada e obrigada a ler todos os dias para poder levar a sua vida por diante, no entanto essa prática diária não alterou propriamente as competências de leitura e escrita das pessoas. Basta perder um pouco a ler essas mesmas caixas de comentários e deter-se sobre o uso dado ao texto, a sua sintaxe, semântica e pragmática.


Podia terminar com o último parágrafo, mas não estaria a dar um contributo completo, por isso deixo duas recomendações: The Greatest Books e PNL2027.

março 31, 2018

"O Que Fazer?" por Tchernichevski

Tenho aqui feito muitas resenhas de livros e algumas têm conseguido atingir níveis de profundidade com que não contava à partida. A literatura é um meio rico para compreender o mundo e a realidade, ainda assim nem sempre os temas se aproximam dos nossos interesses o suficiente para justificar um investimento grande no estudo e interpretação da mesma. Neste caso senti alguma ambivalência: por um lado queria compreender melhor a Rússia, nomeadamente a sua evolução política; por outro, não esperava retirar daqui conhecimento particularmente novo, uma vez que o sistema político ali implantado teve tempo para demonstrar a sua ineficácia, não querendo debater algo que empiricamente já foi demonstrado como utópico. Contudo, não deixava de me intrigar o como, ou seja, a História conducente à Revolução Russa, à criação da primeira nação governada segundo um regime comunista. Embora talvez o mais importante para mim tenha sido mesmo o tentar compreender como é que um simples livro, a simples literatura, contribuiu para tal. O problema é que ao tentar compreender apenas isto, vi-me enredado num mar de leituras sem fim, já que para compreender o impacto deste livro, tive de aprender mais sobre a realidade em que ele surgiu. Assim, tentarei nas próximas linhas dar conta do que li, compreendi e interpretei.


Diga-se que um livro apresentado com o seguinte epíteto — “O romance que inspirou o ímpeto revolucionário de Lenine. Fascinado, Marx aprendeu russo para o ler.” — impacta, tornando-se quase numa leitura obrigatória, exatamente pelo que disse no primeiro parágrafo. Daí que as expectativas fossem altas, a ponto de esperar de algum modo encontrar aqui a chave decifradora da governação comunista. Contudo esta frase é acompanhada de uma outra que deve servir para refrear o nosso anseio — “Editado pela primeira vez em Portugal, traduzido do russo, 155 anos depois”. Para uma obra, supostamente tão relevante, nunca antes ter sido traduzida deveria querer dizer-nos algo. Já para o grande historiador da Revolução Russa de 1917, Orlando Figes, este livro foi a bíblia da revolução, tendo conseguido muito mais do que os escritos de Marx ou Engels.

O Autor
Começando pelo autor, Nikolai Tchernichevski. Filho de padre, estudou num seminário onde aprendeu várias línguas e iniciou o seu interesse pela literatura. Ingressou na Universidade de São Petersburgo onde se licenciou com a tese sobre “As Relações Estéticas entre a Arte e a Realidade” (1853), o que apontava já um sentido muito claro do que pretendia fazer com o único romance que viria a escrever, e de que aqui falamos. Começou por dar aulas no ensino secundário, mas foi o seu trabalho enquanto editor da revista social e literária “O Contemporâneo” que o traria para a ribalta, e simultaneamente o conduziria à prisão, na Fortaleza de Pedro e Paulo, por crime político, ou seja por veicular ideias contrárias ao regime monárquico. Foi nos dois anos em que aí esteve preso que escreveu “O Que Fazer?” (1863). O que se sucedeu na sua vida é verdadeiramente rocambolesco, desde o modo como conseguiu publicar o livro furando a censura, ao facto de ter sido condenado a “execução civil” — uma execução pública mas como farsa! — tendo sido depois enviado para a Sibéria por mais 20 anos. Para saber mais, aconselho o capítulo quatro de “O Dom” de Nabokov (1938), no qual é apresentada uma biografia de Tchernichevski, embora num tom completamente satírico.

Nikolai Tchernichevski (1828-1889)


A Literatura e o Contar de Histórias
E porque já falei de Nabokov, começo a análise do livro enquanto literatura. Apesar da tese realizada como projeto de fim de curso, acima identificada, apesar do seu enorme interesse pela literatura, apesar de ter escrito, ao longo de anos, resenhas sobre literatura para a sua revista O Contemporâneo, nada disso parece ter servido de muito. A escrita de Tchernichevski é atroz, e por isso não admira o capítulo satírico que Nabokov lhe dedicou. Fica o aviso, a leitura é penosa porque o autor é incapaz de criar ritmo, incapaz de criar a teia do contar de histórias que nos mantém focados, já que tudo em “O que Fazer?” vai surgindo mais como descrição do que narração. Ou seja, Tchernichevski vai descrevendo o que acontece, onde, como e quando, mas é incapaz de estabelecer os porquês, as causas e os efeitos de modo a mover a nossa atenção, de modo a criar expressividade no texto escrito. No fundo, tudo na sua escrita é igualmente relevante, porque tudo assenta numa tentativa objetiva de descrição da realidade, faltando-lhe a essência da arte, que é o olhar pessoal, a perspectiva humana, sobre essa realidade.

Por outro lado, e dado o imenso conhecimento que Tchernichevski detinha sobre literatura, o livro acaba por apresentar uma estrutura coesa e progressiva. Ou seja, temos uma estrutura bastante concreta que se desenvolve em três atos, com personagens ainda que sem vida, perfeitamente identificados, e temos também muitos pequenos artifícios de escrita, que Tchernichevski aprendeu a usar de tanto desconstruir os textos dos outros, e que vão servindo para nos manter na leitura. Ainda assim não fosse o valor histórico e não seria suportável tal leitura. Apesar de as metáforas literárias serem muito básicas, e estarem bastante ausentes no livro, dada a sua tendência meramente descritiva, a meio do livro e para qualificar um outro livro, Tchernichevski apresenta o que devemos saber sobre a experiência da leitura deste livro — “qualquer outra pessoa consideraria esse livro tão saboroso quanto comer areia ou serragem” (p.255). Metaforizando bem o que sentimos lendo Tchernichevski, ainda assim não podemos desprezar a inteligência de ter optado por escrever um romance para fazer passar as suas ideias de dentro da prisão para a sociedade.

Não foi o primeiro, o que é a Bíblia se não o uso de histórias para condicionar e promover ideias. Temos muita dificuldade em lidar com números, estatísticas, conceitos e descrições e não deixamos de ter mesmo quando solidamente suportados por provas, factos e evidências. O nosso cérebro não racionaliza bem elementos soltos, o nosso cérebro exige histórias que agreguem todos esses elementos, oferecendo-lhes um sentido que una as partes num todo. Isto tem sido amplamente estudado e demonstrado através das mais recentes tecnologias promovidas pelas neurociências. Um artigo do mês passado, de Ella Saltmarshe para o Stanford Social Innovation Review, traz um excelente resumo das capacidades das histórias para transformar o social, apresentando os seus três grandes atributos: as histórias como luz; as histórias como cola, e as histórias como teia. Aconselho vivamente a sua leitura.

Disto isto, fica uma das principais lições de “O Que Fazer?”, que por mais fraca que seja a escrita, o simples uso da estrutura narrativa pode contribuir para catapultar as ideias presentes no texto, já que a narrativa é, tal como definido por Walter Fischer (1985), o meio de comunicação, por excelência, entre humanos. Se dúvidas houver, pense-se num trabalho realizado um século depois, “A Revolta de Atlas” (1957) de Ayn Rand, que baseada em ideias próximas de Tchernichevski daria origem ao movimento, aparentemente contrário, ao comunismo moderno, ou seja o neoliberalismo. Aliás, sobre a fraca qualidade de ambos os textos, as origens comuns das ideias, e a sua capacidade de ativação social vale a pena o livro “How Bad Writing Destroyed the World” (2016) de Adam Weiner, ou o seu texto-sumário “The Most Politically Dangerous Book You’ve Never Heard Of” (2016) que o próprio Weiner escreveu para o Politico.

How Bad Writing Destroyed the World” (2016) de Adam Weiner


Génese e Teias Literárias
Para compreendermos o livro de Tchernichevski, temos de compreender a Rússia do século XIX e como se chega a uma revolução. A melhor forma de o fazer passa pela leitura dos seus clássicos, que se tornaram clássicos globais, nomeadamente “Guerra e Paz” (1867) e “Anna Karenina” (1877) de Lev Tolstói, assim como “Almas Mortas” (1842) de Nikolai Gógol e “Pais e Filhos” (1862) de Ivan Turgueniev, ou mais recentemente “Doutor Jivago” (1957) de Boris Pasternak para dar um pano de fundo aos efeitos da Revolução. A elevação de Tolstói a herói nacional não surge por acaso, os seus romances, ainda que anteriores à sua grande crise moral, dão bem conta da sociedade russa dividida em castas, em cidadãos de primeira, segunda, terceira, e até sem direito a qualquer classe. O chamado tempo dos Czares, um tempo no qual o pensar politicamente diferente já dava direito a estadias prolongadas na Sibéria, como viria acontecer com Dostoiévski, e com o próprio Tchernichevski. As condições criadas e que marcavam a diferença de vida entre a monarquia e o povo não eram muito diferentes daquelas que tinham despoletado cem anos antes a Revolução Francesa, com episódios como o de Marie Antoinette, que à afirmação de faltar pão ao povo terá dito: “Qu'ils mangent de la brioche”.

E debate existia na Rússia, não faltavam exemplos, desde logo os escritos da Revolução Francesa, como Rousseau, entre outros. Mas é muito mais fácil falar e escrever do que fazer, e a fazer “o que fazer”? Tchernichevski lança-se neste senda quase como resposta direta a Turgueniev e ao niilismo apresentado em “Pais e Filhos”, que tinha procurado tudo relativizar esvaziando o sentido de qualquer ação. Daí que o título não pudesse ser outro, objetiva claramente a responder à pergunta que todos faziam, sabendo que tudo estava mal, “o que fazer?”. O autor não inventará nada neste livro, tudo já tido sido escrito por ele anos antes em vários textos, nomeadamente em “The Anthropological Principle in Philosophy” (1860), com base em pensadores do campo da economia, como Charles Fourier e Adam Smith, e pelo lado da religião, Hegel e Ludwig Feuerbach.

O livro teve enorme impacto junto de Marx, precedendo a sua escrita do “O Capital” (1867), que dizia "de todos os economistas contemporâneos Tchernichévski é a única mente original; os outros são apenas compiladores comuns" (Lopatin, 1922). No caso de Lenine, quase meio-século depois iria dedicar-lhe um livro-panfleto, com uma designação próxima, “What Is To Be Done? Burning Questions of Our Movement” (1902). Mas nem por isso faltaram alertas à saída do livro, tendo Dostoiévski escrito a resposta mais direta com “Memórias do Subterrâneo” logo em 1864, e Tolstói, depois de ter assumido mais seriamente o seu ativismo, dedicado também um livro, mas de não-ficção, tal como Lenine — “What Then Must We Do?” (1886), e por fim a já mencionada biografia satírica de Nabokov em 1938. Assim, e se Marx tinha já escrito antes o seu "Manifesto Comunista" (1848), fazendo sentido o seu interesse académico pelo trabalho de Tchernichevski, o caso de Lenine é um pouco mais estranho, porque muito pouco académico, motivado mais por sede de vingança, repare-se o que leva Lenine a ler Tchernichevski:
O romance de Tchernichévski é demasiado complicado, muito cheio de ideias para ser entendido e avaliado numa idade precoce... Mas depois da execução do meu irmão, sabendo que o romance de Tchernichévski era um de seus livros favoritos, comecei a lê-lo de outra forma e fiquei a refletir sobre ele não apenas alguns dias, mas semanas inteiras. Foi só então que entendi a sua profundidade. É uma coisa que pode fazer disparar as energias duma pessoa para toda a vida. Vladimir Lenine, in The Russian Revolutionary Novel, (1985, p.24) 
Vladimir Lenine (1870-1924)

As Ideias
Para Tchernichevski fazer passar as suas ideias, através da natural censura que existia à saída de qualquer escrito da prisão, não bastou usar a forma do romance, teve de recorrer a vários artifícios, alguns bastante evidentes para nós hoje, outros apenas entendíveis à luz dos múltiplos estudos académicos que foram sendo produzidos ao longo dos anos. Assim, o artifício mais evidente usado por Tchernichevski joga-se na história que aparentemente parece fundear-se na emancipação da mulher, fazendo jus a alguns movimentos pré-feministas do século XIX. Ou seja, trabalhando a libertação da mulher, trabalhando a igualdade entre sexos, Tchernichevski estava no fundo a trabalhar a libertação das classes, e acima de tudo a promover um discurso de total igualdade de direitos entre todos. Visto a partir das concepções morais e científicas da altura, era facilmente categorizado como tonto, e logo inócuo.

Tendo então o problema das classes resolvido, faltava resolver o problema do como motivar as pessoas para a ação e ao mesmo tempo como convence-las de que o pós-revolução serita sustentável. Assim o discurso de Tchernichevski vai seguir uma abordagem paralela, por um lado explicando o que deveria ser feito à saída do estado atual, como se deveria organizar a sociedade e funcionar para subsistir economicamente, por outro lado lançando uma abordagem filosófica capaz de substituir a crença moral, e a chamada melancolia russa que promovia a apatia, para assim dar força e motivação suficientes às pessoas para se demoverem.

Assim, temos a componente de ciência económica, fundamental no discurso comunista moderno, e em que Tchernichevski constrói a base com dois grandes autores do século anterior — Fourier e Smith —, o primeiro para lançar estruturas económicas cooperativas — no livro, as empresas de costura de Vera — em que todos trabalham juntos para um mesmo fim, sendo recompensados igualmente pelos lucros obtidos enquanto partes vitais de um todo. Já seguindo Smith, e a ideia de um mercado auto-regulado, Tchernichevski apresenta a ideia de cooperativas a funcionar em autogestão, sem necessidade patrões ou chefes, em que todos são igualmente responsáveis, relevantes e merecedores. Sem a costureira, ou a contabilista, ou a gestora, não se venderiam o mesmo número de vestidos, cada uma na sua função foi vital para o sucesso, por isso todas deviam receber a mesma parte dos lucros.

Se isto parecia tudo fazer sentido, a verdade é que nunca tinha sido tentado antes na prática. Deste modo Tchernichevski apresenta no livro casos aplicados de como tudo funcionaria. Ainda assim, o livro sai em 1862, baseado em ideias do século XVIII, mas só em 1917 é que iríamos ver a Rússia a aplicar estas ideias, tornando-se assim na primeira nação a fazê-lo. Na verdade, e como já se disse acima, muito mais fácil era falar e escrever, do que fazer. Levar a prática algo deste calibre requeria não apenas a vontade de governos, grupos ou um povo, mas mais importante que isso, requeria aquilo que Tchernichevski define na edição russa em subtítulo — “Histórias sobre o Povo Novo” —, um “Povo Novo”. E é a esse povo novo que Tchernichevski dedica o livro, oferecendo-lhes uma nova moral, um conjunto de princípios capazes de sustentar a nova vida livre e igual. Essa nova moral, segundo Tchernichevski, que abandonava a religião e abraçava Feuerbach, revestia-se por um conjunto de princípios básicos mas fundamentais na sustentação desse novo mundo. Assim, Tchernichevski vai defender, por meio das ações e diálogos dos seus personagens, uma abordagem materialista e utilitarista do mundo. Para Tchernichevski, tudo o que é útil é bom, tudo que nos magoa é mau, logo as pessoas boas definem-se pela capacidade de fazer algo que lhes dê prazer mas ao mesmo tempo sejam úteis aos outros.

Para elucidar esta abordagem Tchernichevski cria um herói — Rakhmétov, uma espécie de santo excêntrico, herdeiro de fortuna que nunca revela, mantendo fachada humilde, capaz de tudo fazer pelos outros sem que estes o descubram, desprezador de luxos, preferindo dormir no chão a uma cama —, que tem uma participação fugaz mas de tal forma impactante que se torna no personagem que Lenine praticamente procura emular na sua vida, e muitos dos seguidores do romance. Mas Tchernichevski não se fica por esse personagem, cria uma situação concreta conhecida de todos os leitores para dar conta da conduta a seguir, uma triangulação amorosa, fazendo dessa o cerne da ação do livro, com os personagens a servir de prova, obrigando-os a ponderar o que é bom para si e mau para os outros, e como poderiam sair da situação tornando-se úteis aos outros, sentindo com essa ação ainda mais prazer. Podemos dizer, e não aferindo da qualidade da filosofia nem do romance, que isto é talvez o mais bem conseguido de todo o livro. O triângulo amoroso funciona como uma metáfora literária perfeita, sendo mesmo habilmente usada por Tchernichevski para abrir o livro in media res, com um suspense que agarra o leitor.

Esta abordagem filosófica ficaria conhecida como “Egoísmo Racional”, e esteve na base do que moveu Lenine para a Revolução de 1917, transformando assim a Rússia num país inteiramente Comunista. Tchernichevski vende bem a ideia, nomeadamente com um outro conceito que ficaria conhecido como o “Palácio de Cristal”, apresentado como sonho futurista de Vera, o qual parece conseguir dar a sociedade uma nova forma de estar na vida, em que todos sentem prazer com o trabalho que fazem, trabalhando apenas o necessário mas retirando imenso prazer dessa vida com todos os outros, numa nova comunidade movida por padrões ocidentais (a ideia do edifício em vidro e alumínio provinha dos edifícios arrojados construídos para as exposições de Londres).
“Diga a todos: eis o futuro e ele é radioso e lindo. Ame-o. Esforce-se por alcançá-lo. Trabalhe para ele. Faça-o ficar mais próximo. Transforme-o em presente tanto quanto possa. A sua vida será tão radiosa e boa, rica de alegrias e deleite, quanto você conseguir trazer-lhe o futuro." in "O Que Fazer" (p.363)
Se a Rússia se transformaria numa ditadura pesada, gerida por um dos mais vis chefes-de-estado de sempre — Estaline — a abordagem acabaria por saltar fronteiras e entrar, como um cavalo de Tróia, no ocidente por meio de Ayn Rand, nascida em São Petersburgo. Um século depois, esta apresentava o seu objetivismo — o indivíduo como o fim em si mesmo —,  que sustentaria a criação da grande ideologia económica — o Neoliberalismo —profundamente promovida pelo seu discípulo, Alan Greenspan, o arquiteto da recente crise financeira mundial de 2008. É impressionante descobrir que Alan Greenspan, o potenciador do capitalismo selvagem internacional, levou para a sua cerimónia de juramento na sala oval apenas duas pessoas, a sua mãe e Ayn Rand. Não admira que se designasse o séquito de Rand como seita.

Ayn Rand (1905-1982)

Existe ainda um detalhe em todo esta abordagem que muito me tocou, e que tem que ver com o facto de todas estas ideologias serem professadas de um modo distinto daquilo a que nos acostumámos a ver nestes grupos, ou seitas, já que não se trabalha baseado na lavagem cerebral. Tchernichevski coloca todos os seus personagens como licenciados, ou prontos a estudar para poderem elevar o pensamento crítico. E se olharmos aos regimes comunistas, não raros são os que promoveram sociedades com bastantes estudos. Ou seja, existe aqui uma espécie de crença no fator conhecimento como salvador de todos os problemas da humanidade, que é algo em que tendemos todos a crer, daí que todos estejamos de acordo com o enorme investimento que os estados fazem em Educação. Quanto mais sabemos sobre aquilo que somos, quanto mais sabemos sobre o mundo que nos rodeia, maior será a nossa consciência de nós e do outro, consequentemente maior seria a nossa capacidade para agir egoisticamente pela razão. Mais uma vez tudo parece fazer sentido, mas como a realidade insiste em demonstrar, não chega, porque o ser-humano não é mera plasticina moldável.

Fiódor Dostoiévski (1821-1881)

Ou seja, é bastante doloroso viajar no tempo e ler alertas como os de Dostoiévski, de que as ideias de Tchernichevski eram demasiado simplistas no que toca à caracterização do ser humano. E se havia algo em que Dostoiévski era mestre, era exatamente na psicologia humana, sendo que algo que fica bem claro no livro de Tchernichevski é a sua limitação, e desconhecimento, na caracterização psicológica. A sua base objetiva era uma filosofia capaz de sustentar o bem da espécie humana, mas não percebeu que entre o ideal e a prática existia todo um mundo real, e esse não se regula apenas por morais escritas ou convencionadas, regula-se também por experiências e emoções. Mas diga-se, em abono da sua causa, que não estava sozinho, passados mais de 150 anos continuamos a sentir os efeitos destas visões, com crises financeiras capazes de ceifar tudo o que apanham.

Apesar da enorme quantidade de estudos no campo da psicologia e neurociências a demonstrar que a emoção é tão responsável pelo que fazemos como a razão. Apesar de se ter criado uma nova ciência — Economia Comportamental — que já nos deu vários prémios Nobel — Daniel Kahneman em 2002, e ainda no ano passado, um seu colaborador, Richard Thaler — os economistas continuam a acreditar que os seres humanos são apenas movidos pela razão, pela maximização do seu proveito, esquecendo que somos uma espécie mamífera, incapazes de viver sozinhos, sem a companhia, presença e entre-ajuda do outro, e que como tal detemos vários mecanismos cognitivos que alteram a nossa percepção racional da realidade. Por mais educados que sejamos, por mais níveis elevados de razão que possamos atingir, nunca seremos Vulcanos, um Spock, e ainda bem.


Sobre a edição portuguesa pela Guerra & Paz, trata-se de uma tradução original do russo para português do Brasil pelo professor de História da Universidade de São Paulo, Angelo Segrillo, e adaptado para o português europeu por Ana Salgado. Não sendo uma edição perfeita, tendo em conta a qualidade da escrita original, e tendo eu lido também uma parte da tradução inglesa por Michael B. Katz, parece-me ainda assim bastante capaz.


Referências

Weiner, Adam, (2016), The Most Politically Dangerous Book You’ve Never Heard Of, in Politico, December 11, 2016
Turta, E. (2014). Socialist paradise or tower of total surveillance? Metamorphoses of the Crystal Palace in Chernyshevsky and Dostoevsky (Doctoral dissertation, The University of North Carolina at Chapel Hill)
Saltmarshe, Ella, (2018), Using Story to Change Systems, in Stanford Social Innovation Review, Feb. 20, 2018
Chernyshevsky, NG, (1853) “The Aesthetic Relations of Art to Reality”, Tese de Licenciatura na Universidade de São Petersburgo
Freeborn, R. (1985). The Russian Revolutionary Novel: Turgenev to Pasternak. Cambridge University Press.
Andrew, J. (1988). Women in Russian Literature 1780-1863. Springer.
Murr, (2010), 'What Is To Be Done?' Nikolai Chernyshevsky, in The Lectern,
Kahneman, D., (2011), Thinking, Fast And Slow, Penguin Books
Nabokov, (1938) O Dom, Relógio d'Água
Lev Tolstói, (1867), Guerra e Paz, Ed. Presença
Lev Tolstói, (1867), Anna Karenina, Ed. Presença
Nikolai Gógol (1842), Almas Mortas, Circulo de Leitores
Ivan Turgueniev (1862), Pais e Filhos, Relógio d'Água
Boris Pasternak (1957), Doutor Jivago, Público
Chernyshevsky, NG, (1863). What is to be Done?. Cornell University Press. (1989)
Chernyshevsky, NG, (1860). “The Anthropological Principle in Philosophy”, Sovrernennik, no. 4; in: Selected Philosophical Essays (pgs. 49-135), Moscow, 1953.
Lopatin, GA, (1922), Avtobiografia, Petrograd (1845-1918)
Rand, A. (1957). Atlas shrugged. Penguin.

março 10, 2018

Conhecimento: abstraído, individualizado e emocionalizado

A Danah Boyd esteve no 2018 SXSW Edu para fazer mais uma keynote brilhante, "You Think You Want Media Literacy… Do You?" (2018). Boyd tem sido incansável na defesa de perspetivas mais abertas para com os usos que os adolescentes fazem dos media, propondo reflexões mais incisivas sobre aquilo que conduz as pessoas a fazerem o que fazem, evitando os julgamentos rápidos, muitas vezes meramente assentes no preconceito. Nesta palestra, Boyd discute o estado atual da sociedade na sua relação com as Fake News, com os Media e com a Produção de Conhecimento.


Boyd vem colocar o dedo na ferida e relembrar que as visões do mundo que cada um de nós carrega consigo não são produzidas por um governo, uma escola, ou um conjunto de autoridades, servem-se também das próprias experiências de cada um, que por sua vez ganharam agora novos canais distribuídos de amplificação oferecidos pela internet.
“For better and worse, by connecting the world through social media and allowing anyone to be amplified, information can spread at record speed. There is no true curation or editorial control. The onus is on the public to interpret what they see. To self-investigate. Since we live in a neoliberal society that prioritizes individual agency, we double down on media literacy as the “solution” to misinformation. It’s up to each of us as individuals to decide for ourselves whether or not what we’re getting is true.”
“I get that many progressive communities are panicked about conservative media, but we live in a polarized society and I worry about how people judge those they don’t understand or respect. It also seems to me that the narrow version of media literacy that I hear as the “solution” is supposed to magically solve our political divide. It won’t. More importantly, as I’m watching social media and news media get weaponized, I’m deeply concerned that the well-intended interventions I hear people propose will backfire, because I’m fairly certain that the crass versions of critical thinking already have.” 
Não existem soluções simples, menos ainda os chavões do passado nos poderão indicar o caminho, já que ele se tornou bastante mais complexo. A Literacia dos Media pode ajudar, o Pensamento Crítico também, mas não chega, temos de admitir que não passa de uma gota no oceano da produção de imaginário que cada ser individualmente desenvolve e que tenta inculcar nos que o rodeiam.
“In some online communities, taking the red pill refers to the idea of waking up to how education and media are designed to deceive you into progressive propaganda. In these environments, visitors are asked to question more. They’re invited to rid themselves of their politically correct shackles. There’s an entire online university designed to undo accepted ideas about diversity, climate, and history. Some communities are even more extreme in their agenda. These are all meant to fill in the gaps for those who are opening to questioning what they’ve been taught.”
“Trained on critically interrogating biblical texts, evangelical conservative communities were not taking Trump’s messages as literal text. They were interpreting their meanings using the same epistemological framework as they approached the bible. Metaphors and constructs matter more than the precision of words.” 
“If you don’t start from a place where you’re confident that climate change is real, this sounds quite reasonable. Why wouldn’t you want more information? Why shouldn’t you be engaged in critical thinking? Isn’t this what you’re encouraged to do at school? So why is asking this so taboo?”

Quero acreditar que maior conhecimento da História e do Método Científico nos pode ajudar, mas temos de ser humildes para perceber que não chegará a todos do mesmo modo. Temos de aceitar que quanto mais distribuída for a capacidade humana para produzir abstração mental, mais individualizada esta se irá tornar, polarizando muito daquilo que tendemos a ver como não polarizável. Mais ainda, porque a nossa capacidade para racionalizar a realidade é reduzida, dependemos fortemente da emoção para compreender essa realidade, precisamos de âncoras seguras, sei as quais vamos ao fundo. Repare-se neste comentário de Boyd sobre a empatia:
“Empathy is a powerful emotion, one that most educators want to encourage. But when you start to empathize with worldviews that are toxic, it’s very hard to stay grounded. It requires deep cognitive strength. Scholars who spend a lot of time trying to understand dangerous worldviews work hard to keep their emotional distance.“
Na verdade esta foi a grande justificação para a existência de uma Comunicação Social, do desenvolvimento do Jornalismo enquanto 4º poder: conseguir criar um espaço comum no qual todos se reviam, para o qual todos nós podíamos contribuir com a educação que íamos construindo nas escolas comuns. Contudo, a partir do momento em que o espaço comum deixa de existir, em que as fontes são individuais, e com cada um a acreditar apenas em si próprio, os problemas emergem. Sem um fio de conhecimento comum, a realidade do conhecimento e informação, que é abstrata torna-se ainda mais abstracta, deixando-nos à mercê da teoria que mais força emocional tiver.


A realidade física é complexa, mas bastante mais acessível que a "realidade" que todos os dias cada um de nós cria nas suas próprias cabeças. E as mensagens que cada um de nós produz, estão longe de ser inócuas, por mais força mental que se detenha. Para fechar, e recomendando a leitura do texto completo, ou o visionamento da palestra, deixo algo porque me bati nas redes sociais, contra muitas pessoas, que não faziam parte de qualquer seita, informadas e algumas até com créditos científicos, mas simplesmente acreditavam nos seus próprios ideais de sociedade, descurando a realidade de muitos que vivem mais fragilizados ou na ausência das tais âncoras:
“In 2017, Netflix released a show called “13 Reasons Why” (…) But I’m on the board of Crisis Text Line, an amazing service where people around this country talk with trained counselors via text message when they’re in a crisis. Before the news media even began talking about the show, we started to see the impact. (..) At Crisis Text Line, we do active rescues every night. This means that we send emergency personnel to the homes of someone who is in the middle of a suicide attempt in an effort to save their lives. Sometimes, we succeed. Sometimes, we don’t. It’s heartbreaking work. As word of “13 Reasons Why” got out and people started watching the show, our numbers went through the roof. We were drowning in young people referencing the show, signaling how it had given them a framework for ending their lives. We panicked. All hands on deck. As we got things under control, I got angry. What the hell was Netflix thinking?”

maio 12, 2016

“A Quinta dos Animais” (1945)

No fim desta leitura atravessam-me sentires muito diversos, nomeadamente porque tendo passado os últimos 30 anos a evitar regressar a este universo que tinha conhecido por via do filme homónimo de John Halas no início dos anos 1980, confronto as ideias desses tempos de inocência e ingenuidade com a análise das metáforas e camadas de real que hoje consigo de modo diferente descortinar. Se no passado o título traduzido para português — "O Triunfo dos Porcos" — fez muito sentido, hoje percebo a sua total inadequação, mais ainda tendo em conta a real intenção de Orwell expressa no prefácio original, e por isso louvo a audácia do tradutor, Paulo Faria, em descontinuar essa intitulação.



Ver um filme, ainda que de animação, decalcado da metáfora base representada nesta obra de Orwell, com 8/9 anos, pode parecer violento, e foi-o, tanto que a impressão deixada me afastou para sempre do filme, assim como do livro. Nessa altura, recordo-o agora e bem ainda, o que vi e senti teve pouco que ver com política, no seu sentido estrito de luta de classes sociais, mas antes sobre a clivagem entre humanos e animais. Não só o facto de ser ainda muito jovem, mas também de viver numa aldeia rodeado de animais — cães, gatos, porcos, vacas, galinhas, etc. — foram determinantes para esta enfabulação da minha parte, para o que viria ainda a contribuir a visualização de obras como “O Planeta dos Macacos” que consolidariam muitos dos temores que me assolariam durante alguns anos dessa fase da minha vida.

Questiono-me contudo, porque apesar de ter sentido temores similares no visionamento de “O Planeta dos Macacos”, não me afastei, e fui revendo, assim como vi e revi toda a saga, várias vezes neste período de tempo. Acredito que isso se deve ao tom, ou género, que envolveu diferentemente ambos os discursos. “O Planeta dos Macacos” claramente versado no género de ficção-científica, com base em princípios clássicos da jornada do herói, prometendo o reencontro de nós mesmos. Já “A Quinta dos Animais” apesar de se apresentar em animação, assim como obviamente ficcional, era dotado de uma caracterização profundamente realista, capaz de oferecer à metáfora dos animais uma imensa credibilidade, assim como baseado num género muito mais dramático, o da tragédia. Ou seja, apesar das questões de clivagem entre animais e homem serem mais claramente abordadas em “O Planeta dos Macacos”, o tratamento dado ao tema era não só pouco trabalhado socialmente, como era ainda adocicado com bastante otimismo na sua resolução.

Depois deste regresso ao passado, resta-me falar sobre a leitura realizada agora, naturalmente aquela que se aproxima das intenções do escritor por força da maturidade. Orwell tendo combatido na Guerra Civil Espanhola dos anos 1930, e vendo como o socialismo emanado da URSS era ali perpetrado, resolveu no seu regresso a Inglaterra escrever sobre a sua experiência, tendo assim resultado em “A Quinta dos Animais”. Ou seja, temos aqui um texto profundamente político, para o qual a metáfora dos animais serve mais de veículo à mensagem, do que operador de ideias.


Apesar desse objetivo político — das tensões entre o comunismo e o capitalismo — o texto acaba indo mais longe, nomeadamente por via da circularidade narrativa que consegue transportar as ideias para um nível acima da constatação e discussão dos comportamentos humanos e suas leis de regulação, colocando o leitor num lugar privilegiado para compreender que aquilo que está em causa não é meramente uma questão de escolha entre regimes.

No fundo Orwell acaba por nos conduzir à constatação de que a regulação social de grupos humanos tende para a manutenção do autoritarismo e que a única forma de nos libertarmos desse é por via da construção de uma literacia democrática que alavanque a racionalidade dos cidadãos na desmontagem do real à sua volta. No fundo, estamos a falar de Comunicação Humana, da capacidade que todos precisam de deter para operar discursos, para desmontar a manipulação e a propaganda.

Aliás isto torna-se ainda mais evidente na história da publicação do próprio livro em 1945 em Inglaterra, quando foi recusado por várias editores, com a elite inglesa a defender que o livro apesar de bem escrito, não deveria ser publicado por poder ferir suscetibilidades junto do aliado URSS. Assim, apesar da Inglaterra viver num aparente regime democrático, sem leis de imposição de censura, essa era mantida no terreno pelos próprios cidadãos, zelosos de supostos interesses. O que está aqui em causa não é o mero ato de censura, mas antes o seu mais pernicioso efeito, que como vemos nesta fábula, facilmente pode escalar em direcção ao suporte do autoritarismo.
"de momento, fora necessário proceder a um reajustamento das rações (Tagarela usava sempre a palavra ‘reajustamento’, nunca ‘redução’), mas, por comparação com o tempo do Reis, o progresso era enorme." (p.108)
Um pequeno livro tão atual como quando saiu, continuando obrigatório.

janeiro 06, 2016

“Jogo de Influências”, um jogo sério e dramático

Jeu d'influences” é um serious game muito interessante pela forma como consegue traduzir os recursos dramáticos em proveito do jogo e do assunto que pretende tratar. Sendo um jogo sobre processos de gestão de comunicação de crise, consegue colocar o jogador no centro da crise e fazer com que este seja levado a agir e decidir em função dos vários interesses — financeiros, políticos e morais.




Em síntese, somos colocados no lugar de um diretor de uma empresa de sucesso, acarinhada por políticos e banca devido à criação de um novo tipo de betão ecológico, contudo uma noite o nosso sócio mais próximo, o investigador por detrás desse novo betão, comete suicídio. É aí que a crise começa, como gerir a comunicação das razões dessa morte? Motivos profissionais ou familiares? Em que estava ele a trabalhar nessa altura? Como é que os média estão a lidar com o assunto? Como é que lidamos com os média? E os bloggers, como lidamos com eles? E a verdade deve prevalecer, ou a mentira faz parte? E o rumor alimenta-se ou cria-se?

Tudo questões que veremos surgir na nossa frente, muito bem dissimuladas como parte da narrativa, e que nos farão questionar sobre tudo aquilo que fundamenta a gestão da comunicação de crise. Diga-se que com a evolução para o modelo atual de Sociedade de Informação em que vivemos, os assessores e estrategas de comunicação tornaram-se tão ou mais importantes que os jornalistas. Se até aqui a comunicação era toda controlada pelas redações, existia aquilo que chamávamos de gatekeeping, controlo do que se publica e não publica, hoje tudo isso se democratizou, não apenas porque o número de órgãos de comunicação social explodiu via web — blogs, facebook, twitter, etc — mas também porque quem está do outro lado deixou de ser ingénuo, ganhou uma nova literacia e passou a saber gerir aquilo que quer comunicar. No fundo o espaço mediático deixou de ser aquele domínio de aparente transparência, de aparente acesso direto à pura verdade, para se transformar numa arena de luta entre as múltiplas verdades. Isto porque como diz Christophe Reille, gestor de comunicação: "A verdade é aquilo em que a maioria das pessoas acredita."

Durante seis capítulos somos conduzidos por uma narrativa bem desenhada, bem ilustrada e com excelente performance de vozes, tudo sendo complementado por pequenos documentários vídeo que servem para ilustrar os conceitos mais complexos, que podemos decidir ver ou não em função do conhecimento que já detemos sobre o tema. As questões vão surgindo e à medida que vamos agindo e decidindo, três medidores vão contabilizando o nosso desempenho: UBM (unidade de medida de ruído média), isto é, a importância que o caso está a assumir nos média; a Confiança do nosso gestor de comunicação; e o nosso Stress. Se deixarmos o UBM chegar aos 100, o jogo termina; se o nosso gestor de comunicação deixar de confiar em nós (chegar a 0), o jogo termina; e por fim, se ficarmos demasiado stressados durante o processo (chegar a 100) o jogo é terminado também. No fundo temos de fazer um gestão interna das nossas ações, tendo em conta estas três variáveis. A experiência vai levar-nos a situações de dilema moral, criando pressão para a realização de atos potencialmente reprováveis, cabendo-nos decidir ir atrás do nosso gestor ou seguir os nossos modelos mentais do real.

O interessante — e a aprendizagem acontece nestes momentos — surge quando os nossos modelos mentais do que achamos que seria melhor colide com aquilo que o jogo nos apresenta, e faz com que percamos. Aí começamos a perceber que o mundo que pintamos interiormente pode diferir daquele que uma boa gestão de comunicação requer, e é aí que começamos a ganhar noção do que está em jogo nesta literacia dos media.

Jeu d'influences” (2014) foi criado pela francesa The Pixel Hunt para a cadeia de televisão France 5, com um orçamento incrivelmente magro de apenas 90 mil euros, mais ainda para os níveis franceses, mas que resulta num trabalho surpreendente, nomeadamente no design de jogo, a sua sintonia com o tema retratado, assim como no detalhe artístico e extensão do jogo. O jogo está online e é gratuito, mas está em francês, podem experienciar em “Jeu d'influences”.

março 04, 2015

Modelo para a Multiliteracia

Assisti hoje à keynote "Creative Disruption at the Intersection of Arts and Technology Education" da Kathleen Tyner, da Universidade do Texas, proferida na conferência SITE2015 em Vegas, e gostei bastante, apesar de ela não se ter dedicado propriamente ao assunto que tinha elencado no abstract da keynote. Gostei particularmente do seu interesse em McLuhan e no design e produção dos media.

Diagrama "A Multiliteracy Mandala" de Kathleen Tyner

O mais interessante da apresentação foi o seu diagrama "A Multiliteracy Mandala", não apenas o esquema em si, mas a forma como o apresentou, e como lançou às pessoas. [Para saber mais sobre o modelo ler New Agendas for Media Literacy]. Tyner dizia que os colegas a abordavam questionando porque é que o Conteúdo estava no meio, em vez da Audiência, ou outro, e isso motivou-a a reflectir sobre o próprio conceito de modelo. Deste modo ela passou a sugerir às pessoas que a partir do seu modelo, elas re-organizassem os elementos em função dos seus focos de trabalho. Aliás, nas suas aulas, passou a apresentar o modelo em módulos individuais, cabendo aos alunos o trabalho de reflectir sobre a sua re-construção.

Ora isto pareceu-me muito relevante, vindo de uma académica, porque demonstra o encarar de frente da cultura participativa, colaborativa e co-creativa. Ouvir o que os outros têm a dizer, porque nenhum de nós detém todo o conhecimento, nem a razão completa, aprendemos constantemente. Deste modo ela oferece aqui à comunidade uma estrutura modelar, e os parâmetros que a constituem, sendo as pessoas depois responsáveis por desenhar o diagrama final em função das suas áreas de atuação.

Em relação ao modelo em si, concordo com a proposta, nomeadamente a sua frontalidade quanto a termos de encarar a literacia como mais do que mera análise crítica, adicionando-lhe como referiu, a "criação crítica", algo que defendi há alguns anos, num artigo sobre Literacia Mediática. Não me canso de dizer que um filme, ou jogo, é muito mais do que a história que conta, é toda a forma como conta, não interessa apenas o "quê", mas é tão ou mais relevante, o "como".

No final da conferência, deixou a audiência com um caramelo, pelo menos a mim a isso soube! Disse que estava disposta a trabalhar com os colegas para fazer avançar a área do uso destas tecnologias na aprendizagem, que podia trazer a sua equipa, especializada em artes e jogos educativos, mas colocou uma condução essencial para aceitar trabalhar com os colegas, estes têm de trazer paixão, de outra maneira não vale a pena. Acabou tocando na ferida, porque é aqui que surgem muitos dos problemas de projectos académicos que lidam com a criatividade - como os jogos sérios, a gamificação, etc. - quando as pessoas fazem o que fazem porque é uma tarefa, ou porque apenas tem de ser feito, e não porque o desejam fazer.

junho 23, 2012

curtas de animação para a escola

O Bristish Film Institute (BFI) é reconhecido, entre outras coisas, pelo seu trabalho em prol da literacia audiovisual. Ao longo dos últimos anos tem criado inúmeros materiais de suporte ao uso do cinema como objecto de aprendizagem. Nesse sentido são bem conhecidas as colectâneas de curtas metragens que têm saído em DVD do BFI: Ciné-minis, Story Shorts, Story Shorts 2, Starting Stories e Starting Stories 2.

La Queue de la Souris (2008) de Benjamin Renner 

A colectânea Ciné-minis: Short French Films for Language Learning and Literacy (2010) é a mais recente, e está particularmente dirigida para a aprendizagem de língua estrangeira, neste caso o francês, mas os filmes têm muito mais para dar às crianças que os virem. O dvd vem acompanhado com guias para uso dos filmes em sala de aula para cada filme.


Interessante porque tive o prazer de conhecer o mentor deste projecto Mark Reid em 2009 quando esteve em Itália no Second Congress on Media Literacy, aonde esteve para receber o prémio Evens Prize for Media Education 2009, em ex-aequo com a minha colega Sara Pereira. O projecto da Sara, trabalhava a ideia de booklets distribuídos com jornais e pode agora ser integralmente visto online. O projecto do Mark trabalhava o uso de curtas metragens na escola, acabando por se concluir neste Ciné-minisDesta colectânea destaco os filmes de animação, que na sua generalidade são filmes adaptados de livros ilustrados, e deixo links para os restantes. Vejam todos, mas particularmente La Queue de la Souris e Le Loup Blanc.

La Queue de la Souris (2008) Benjamin Renner


Le Loup Blanc (2006) Pierre Luc Granjon [filme integral]


Le génie de la boîte de raviolis (2006) Claude Barras


Bouts en Train (2006) Emilie Sengelin


Le Bon Numéro (2005) Aurélie Charbonnier

Os restantes filmes, são em imagem real e podem ser encontrados online à excepção de Tarif Unique (2004) de Alexandre Coffre. StrictEternum (2005), Didier Fontan; Un bisou pour le monde (2007), Cyril Paris; Les Crayons (2005), Didier Barcelo; Regards libres (2005), Romain Delange; Le Baiser (2005), Stefan Le Lay, 00H17 (2005) Xavier De Choudens.

janeiro 08, 2011

"Outliers" de Malcolm Gladwell


Outliers (2008) é um livro interessante que deve ser lido enquanto um livro fruto de investigação jornalística, e não de investigação científica. Outliers como os dois livros anteriores, The Tipping Point (2000) e Blink (2005) de Glawell, está escrito numa prosa muito fluida, estruturalmente progressiva, que nos conduz momento a momento sem espaços vazios. O constante atirar de exemplos, números e estudos de professores universitários, credibiliza e mantém o leitor engajado.

Outliers pretende servir como explicação das pessoas fenómenos de sucesso como Bill Gates ou Mozart, dizendo aquilo que todos já sabemos, que o talento não chega mas que o trabalho duro, o timing e a sorte são essenciais.

O melhor e o pior do livro é a fundamentação que Gladwell cria para explicar o sucesso quase exclusivamente assente sobre a ideia de "trabalho duro". Se por um lado a teoria faz sentido e ajuda a perceber melhor quem eram as pessoas por detrás do fenómeno, por outro lado tenta passar uma ideia de um ideal "comunista". Todos podemos fazer o mesmo, todos podemos ser os melhores, desde que nos esforcemos, desde que trabalhemos muito poderemos fazer o que quisermos. Aliás em certa media, o discurso chega a raiar uma espécie de O Segredo (2006) mas agora com um tom, digamos, realista.

Do lado dos fenómenos, Gladwell vai encontrar várias evidências que parecem demonstrar que o sucesso de pessoas como – Bill Gates, Mozart, Bill Joy, entre outros – assentam na oportunidade que tiveram ao longo da vida para investir "10 mil horas" do seu tempo a realizar uma actividade. E depois usa mesmo vários estudos que suportam esta ideia do número de horas, sendo por vezes referenciado também como "10 anos" de experiência.
"In study after study, of composers, basketball players, fiction writers, ice skaters, concert pianists, chess players, mas­ ter criminals, and what have you, this number comes up again and again. Of course, this doesn't address why some people get more out of their practice sessions than others do. But no one has yet found a case in which true world-class expertise was accomplished in less time. It seems that it takes the brain this long to assimilate all that it needs to know to achieve true mastery." [1]
Contudo isto não explica tudo, existem muitíssimas outras variáveis que não estão a ser levadas em conta e que suportam a razão das 10 mil horas. É isso que eu vejo no gráfico retirado do artigo [2] que suporta as teorias de Gladwell
Aos 8 anos começa a divergência entre o grupo de amadores e profissionais de piano. E era sobre isso que precisávamos de nos interrogar. Perceber qualitativamente porquê. E não apenas olhar para o gráfico, somar as horas e atirar uma conclusão. O que eu aqui vejo é que aos 8 anos, os miúdos já perceberam, sentiram a sua queda, motivação ou se quisermos ser mais espirituais o seu chamamento.


A obsessão de Gladwell é de tal modo que vai ao ponto de levar o estudo à formação das sociedades e comparar os modelos de agricultura medieval da Ásia com a Europa. E referindo sempre como comparação entre os dois mundos, os testes internacionais de matemática, nos quais os alunos asiáticos possuem melhores desempenhos. Para Gladwell, isto está relacionado com o provérbio,
"No one who can rise before dawn three hundred sixty days a year fails to make his family rich"
Foto de samsayer88

Um provérbio de incentivo e motivação que claramente procura aliviar a dureza do trabalho nos campos de arroz, mas que está bem longe da realidade. E mesmo será que ser um bom matemático se restringe a ter bons desempenhos em testes internacionais durante o secundário. E depois desde quando é que ter uma nação de crianças com melhores notas a matemática, lhe confere o título de melhores seres humanos? Gladwell chega mesmo a comparar o número de dias que as crianças americanas (180) passam nas escolas versus as crianças Japoneses (244) e referindo estudos que suportam que as férias grandes não fazem mais que perturbar o regular ensino! Que as férias grandes aparecem, como imitação do descanso dado às terras em pastoreio na Europa, ao contrário dos Asiáticos em que o arroz é plantado em 2 ou 3 sementeiras anuais!

Ou seja, o ideal seria então trabalhar, mais, mais e mais. Mas afinal qual é a definição de pessoa e vida para Gladwell? Viver é trabalhar? Viver é sobreviver? E onde fica a felicidade, será que isso importa para Gladwell.

Por exemplo no caso dado sobre as Escolas americanas e do programa KIPP "Knowledge Is Power Program", dá o exemplo das crianças de 12 anos de Brooklyn, que se levantam às 5h da manhã e passam o dia a trabalhar na escola, deitando-se depois às 23h para acordar no dia seguinte. Tudo isto para poder chegar a obter o mesmo que obtém as crianças com um ambiente "chamado saudável". Isto faz sentido? Faz sentido que uma criança seja "escravizada" em função dos estudos. Para conseguir ir para o liceu, ou possivelmente para a Universidade. Será que aquela criança está talhada para isso. Não poderia aquela criança investir em qualquer outra coisa, que lhe desse tempo para brincar e existir?

Vejamos o caso de Ronaldo, foi para a Universidade? Quantos livros leu? Mas por outro lado investiu muito mais que todos os seus colegas, no número de horas a treinar a prática do futebol, aliás ainda hoje o faz, é visível em todos os documentários que têm sido feitos sobre ele.

Ou seja isto vem comprovar a teoria das 10,000 horas de Gladwell, em que é preciso investir esse tempo para se tornar o Melhor Jogador de Futebol do Mundo de 2009. Mas será que isto nos diz, que se qualquer garoto da Madeira, ou dos Açores, ou e porque não do mundo, treinasse tantas horas como ele conseguiria chegar a ser como ele? Não sei.

Mas talvez se percebermos porque é que o Ronaldo continuava a treinar depois de todos os outros já terem ido para casa jantar, talvez possamos perceber, porque é que todos os outros miúdos não poderiam ser o Melhor Jogador do Mundo. Vejamos então porque é que o Ronaldo treinava mais.

Para percebermos a lógicas da motivação humana, nada melhor que utilizarmos os principios do Game Design, que utilizamos para desenhar um jogo de modo a torná-lo interessante para os jogadores. O que procuramos quando desenhamos um jogo, é criar uma Mecânica de jogo tal, que o jogador não se consiga desligar da mesma. Envolver e persuadir mentalmente o jogador. E todos conhecem essa sensação, de que mesmo quando paramos de jogar, o jogo é de tal modo forte, que continuamos a jogar mentalmente. Assalta-nos o pensamento como uma urgência quase vital, voltar ao jogo, e terminar, acabar com ele.

Jesse Schell, numa conferência sobre os Jogos Sociais e a Gameficiation, vem dizer-nos que os jogos providenciam determinados elementos de interesse para o jogador. Ora esses elementos, não são mais, da minha análise, que os Factores de Motivação do ser Humano.

. Feedback claro
. Sensação de Progresso

. Possibilidade de Sucesso

. Exercitar Fisica e Mentalmente

. Satisfação de Curiosidade

. Hipotese de Resolver um Problema

. Sentimento de Liberdade

Podemos pensar então agora nos treinos de Ronaldo ou nos treinos dos pianistas e pensar: O "feedback" é a condição base de toda e qualquer acção humana sobre o meio, porque é a reacção à nossa acção. Mas o mais interessante, é a "Sensação de Progresso". As pessoas continuam a jogar, apenas e só se sentirem que estão a progredir no jogo. Ora é exactamente isto que acontece com os pianistas e com o Ronaldo. Estes aumentam o investimento de tempo, porque sentem que a sua performance está a progredir. Mais, sentem que existe “Possibilidade Sucesso”, tanto nos objectivos que se autopropõem como nos objectivos impostos pela sociedade (ser eleito pela FIFA).

As actividades que nos permitem "exercitar física ou mentalmente", funcionam como desafios às nossas capacidades, e como tal servem por si de motivadores. Por sua vez o atingir dos objectivos, a resolução dos exercícios mentais ou físicos contribuem com resolução, ou seja "satisfazem a curiosidade" e ao mesmo tempo podem "permitir resolver problemas" que até aí tenham sido dificieis para o jogador, ou mais, que se saiba que são muito difíceis em geral. Saber se consigo marcar um golo de 40 metros de distância com barreira, ou saber se consigo tocar o Rach 3.

Finalmente a satisfação de todas as condições anteriores confere um claro "sentimento de liberdade", porque o domínio, da arte, estas ou outras, permite que a pessoa sinta que tudo pode fazer naquele campo, que é livre, que não está aprisionada nas limitações das suas capacidades mentais ou físicas.

Ou seja, não é apenas trabalhar mais, mas ter uma Vontade maior. Mas como é que se cria essa Vontade? A explicação está para mim em Ken Robinson que ao contrário de Gladwell acredita mais no indivíduo e menos na igualdade das massas. Acredita que todos nós podemos e devemos encontrar a arte em que podemos ser os melhores. Se o que faço quando toco um piano não me motiva, começo a desistir, e deixo de investir horas. Isto não tem nada que ver com ser preguiçoso. Isto tem que ver com capacidades, talentos e modelações dos nossos cérebros. E por isso acredito mais em Ken Robinson do que em Gladwell. Como nos vem dizer Steven Pinker, um dos maiores defensores da teoria de que não nascemos como tábuas rasas para a vida [4], o problema de Gladwell é que
“when a writer’s education on a topic consists in interviewing an expert, he is apt to offer generalizations that are banal, obtuse or flat wrong (...) the problem with Gladwell’s generalizations about prediction is that he never zeroes in on the essence of a statistical problem and instead overinterprets some of its trappings.” [3]


[1] Daniel J. Levitin, This Is Your Brain on Music: The Science of a Human Obsession, NewYork, Dutton, 2006, p.197.
[2] K. Anders Ericsson, Ralf Th. Krampe, and Clemens Tesch-Rômer,
The Role of Deliberate Practice in the Acquisition of Expert Performance, Psychological Review 1 0 0 , no. 3 (1993): 363-406.
[3] Steven Pinker, (2009),
Eclectic Detective, in New York Times, November 7, 2009 http://www.nytimes.com/2009/11/15/books/review/Pinker-t.html
[4] Steven Pinker, (2002),
The Blank Slate: The Modern Denial of Human Nature, Penguin