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abril 12, 2018

Eugénio Onéguin (1825)

Existe algo de brilhante neste texto a que não consigo aceder na plenitude. Tendo gostado bastante de ler e sentido por vezes que atingia um certo zénite, não consegui permanecer por lá todo o livro, apesar de o ter procurado já que o desejo por realizar esta leitura era bastante elevado. Pushkin é uma referência da história internacional da literatura, é o Camões, ou talvez melhor, o Dante do russo. Estranhamente no início do século XIX a elite russa usava mais o francês do que o russo, um pouco à semelhança da elite que só escrevia em latim quando Dante ousou escrever em italiano.

Mais uma belíssima capa da RA

Creio que a minha leitura sofreu por três razões pessoais, que espero um dia ultrapassar: o meu desgosto com o romantismo; a minha fraca inclinação para a poesia; e o meu limitado interesse por novelas curtas. Começando pelo último, os textos curtos fazem-me sempre sentir que tudo passa demasiado a correr, sem espaço/tempo para um verdadeiro desabrochar dos personagens. Já a poesia perco-a na forma, por se dedicar mais à sintaxe que à semântica, é um pouco como se a literatura almejasse a ser música, sendo artes dotadas de tão distintas valências. Por fim o romantismo, já muitas vezes me queixei do mesmo, julgo que não adianta apontar os seus problemas, não foi por mero caso que a corrente desapareceu no tempo.

Por outro lado, agora refletindo e comparando com outras obras de contornos épicos, não que este seja um épico declarado mas pode ser encarado como tal pelo que disse acima, considero que fui provavelmente exigente demais. Aqui atribuirei as culpas ao brilhantismo de Pushkin. O modo como escreve é assombrosamente acessível, dotado de um ritmo de tranquilidade que faz tudo parecer tão fácil, quase como se estivesse ali no papel por zelo natural. Pushkin consegue fazer-nos esquecer que estamos a ler em verso, consegue fazer-nos esquecer que continua a obedecer aos parâmetros do romantismo, os quais ele obsessivamente persegue na forma do seu grande ídolo, Byron. Em certa medida, e depois de passar os olhos por algumas peças escritas por Pushkin, fico com a ideia que esta sua abordagem de simplificação, de facilitar o acesso, dar a ver e não esconder, no fundo uma certa fuga ao romantismo, se deve a uma sua outra obsessão, Shakespeare.

Uma obra para reler.

janeiro 07, 2017

Do enfado do romantismo

Chegado a meio, acabei por ler o resto em diagonal, apesar de saber que surge em praticamente todas as listas dos melhores livros de ficção de língua portuguesa*. Passo a explicar.


Vitorino Nemésio doutorou-se com uma tese em Alexandre Herculano em 1934, tendo em 1936 editado um dos seus mais importantes contributos académicos, "Relações Francesas do Romantismo Português”. Serve isto para definir e delimitar o seu estilo literário ao romantismo, o que estaria na base e génese do seu, quase único romance (apenas mais duas pequenas obras 20 anos antes, e uma posterior, quase 30 anos depois), “Mau tempo no Canal”. Tendo o Romantismo iniciado-se com a Revolução Francesa, viria a sucumbir ao realismo na segunda metade do século XIX. Mesmo em Portugal, temos Alexandre Herculano e Almeida Garrett, seguidos por Camilo Castelo Branco, e já na reta final Júlio Dinis, a fechar o género por volta de 1870, altura em que surge Eça de Queirós e vira tudo do avesso no país, transformando por completo a face da literatura portuguesa, abrindo caminho ao realismo e a tudo o que isso implicaria não apenas em liberdade temática, mas discursiva.

Ora Nemésio, passados mais de 70 anos, volta atrás no tempo. Não o faz por acaso, estava-se em plena efervescência no que toca à discussão académica das delimitações cronológicas dos modelos literários do século anterior. Os seus escritos académicos disso são prova. Por isso surgir da sua pena um romance assente nestes modelos, faz todo o sentido para si, e para alguns académicos, mas não deixa de ser anacrónico.

Voltando ao início. Se fechei o texto na diagonal, não foi apenas por considerar a obra anacrónica, isso é apenas um efeito do tempo, embora mereça reflexão. Mas foi apenas por ter esgotado a minha quota de paciência para com o romantismo literário. Do ponto de vista teórico, deveria adorar o romantismo, pelos seus valores, motivos e objetos. Contudo quando aplicado, nomeadamente na literatura, satura-me. A tendência para o exageramento e subjetivismo que conduz ao obscurecimento do que se vai descrevendo, cansa-me. Mas o que mais me incomoda é que aquilo que seria de esperar do estilo, um aprofundamento do sentir (psicologia) dos personagens, dado o seu enfoque no amor e suas tragédias, é completamente fantasioso, diria mesmo inócuo. Comparando-se ao que o realismo fez com as descrições psicológicas, parece até que se inverteram papéis estéticos. Assim, se fiz o esforço com “Moby Dick”, acabei por já não sentir suficiente ímpeto para o fazer por Nemésio. Diga-se que a impressão causada em 1944 não é replicável hoje. Se na altura o romance era um género praticamente ausente no país, estando a literatura nacional quase refém da poesia, hoje não nos falta romance, prosa e ficção.

Não posso contudo deixar de dizer que Nemésio escreve de forma belíssima, tal como Melville. São vários os momentos em que nos quedamos a ler e reler, pelo prazer que nos dão certas descrições mais divagantes. Mas quantas são as vezes em que nos perdemos, não percebemos onde estamos, ou onde estão os personagens, nem o que dizem, ou porque dizem. Não é uma questão de vocabulário, que sendo rico é acessível. É mesmo de estrutura narrativa, de maneirismo na forma das descrições que se perdem no espaço e no tempo. É como se nada pudesse ser dito de forma clara, menos ainda direta, e fosse obrigatório emaranhar. Como se o criador em vez de descamar a realidade para nos a apresentar, a esboçasse com mais e mais camadas até que esta se tornasse irreconhecível, fora do alcance de quem não a viu a nu, dificultando a partilha entre quem conta e quem recebe, por ausência de imaginário comum.

Talvez noutra fase da minha vida, com mais tempo e calma, possa cá voltar para desfrutar o que agora não fui capaz.


*Listas de livros de língua portuguesa
12 Melhores Livros Portugueses dos Últimos 100 anos, 2016
As 50 Obras Essenciais da Literatura Portuguesa, 2016
Melhores Romances Escritos em Língua Portuguesa, Público, 2016
Melhores Romances Escritos em Língua Portuguesa, Restrito, 2016
Grandes Livros RTP, série documental, 2009

agosto 19, 2016

"A Letra Encarnada" (1850)

Considerada uma obra maior do romantismo americano (século XIX), a par com “Moby Dick” (1851), sendo por isso mesmo de leitura obrigatória nas escolas americanas, “A Letra Encarnada” relata uma história, passada dois séculos antes, centrada na moral de uma sociedade nascente, a dos EUA.

Uma tradução de Fernando Pessoa

Pelo facto do livro aparentemente se centrar sobre o adultério e a punição do mesmo pela sociedade, numa primeira leitura pode ficar a ideia de que o livro perdeu o seu valor para os dias atuais, algo que fica patente nas imensas discussões presentes no Goodreads, iniciadas por muitos dos que foram obrigados a ler o livro nas escolas americanas e se sentiram ultrajados, não apenas pela história mas também pela dificuldade de aceder à mesma já que o livro foi escrito seguindo os preceitos estéticos do romantismo, reconhecidamente menos acessíveis que os do realismo de hoje.

Mas esta obra de Hawthorne vai bastante mais longe do que o motivo que mantém o enredo vivo. Ao contrário de todos os indicadores, desde o título à sua constante menção no texto, o foco não é o Adultério, marcado pela letra A, mas antes a Redenção. O adultério serve aqui apenas como rampa de lançamento da narrativa, com o objetivo de aprofundar o sentir dos personagens para trazer à flor do texto a vergonha, a culpa, a vingança e o desespero. Repare-se como Hawthorne nunca dá conta, de modo explícito, do que verdadeiramente aconteceu, iniciando o relato in media res, com Hester já sobre o cadafalso de letra ao peito.

O que verdadeiramente interessa, e por isso o livro é tão relevante, é o modo como os diferentes atores se relacionam com o sucedido, desde a visada, à filha, ex-marido, companheiro, e claro sociedade. O adultério é apenas um móbil, em seu lugar poderíamos ter o suicídio ou a perda de um filho, claro que com impactos distintos, mas que serviriam do mesmo modo à desconstrução que Hawthorne procura fazer do ser humano e seus laços societais. Para uma obra do período romântico, não deixa de impressionar a capacidade de ir ao fundo da psicologia humana, de nos fazer entrar pelos personagens adentro e compreender como sentem.

Toda esta capacidade para perscrutar o sentir humano é no fundo a essência da arte literária, e cada época apresenta os seus melhores exemplos, que muitas vezes, sem sequer o procurarem, ultrapassam e precedem a ciência e filosofia, como fica evidente na obra de Lehrer, “Proust era um Neurocientista” (2007). Neste caso temos Hawthorne, em 1850, a preceder Nietzsche, que escreveu em “Crepúsculo dos Ídolos”, em 1888 a tão citada expressão “o que não me mata torna-me mais forte”, da seguinte forma:
“Faltava a esta — o que a muita gente falta toda a vida — uma dor que profundamente a ferisse, e assim a humanizasse e tomasse capaz de sentir profundamente.” (p.191)
“A letra encarnada era o seu passaporte para regiões onde outras mulheres não ousariam entrar. O Opróbrio, o Desespero, a Solidão! Tinham sido estes os seus mestres — mestres severos e desregrados — e tinham-na tornado forte, ainda que não fosse bom o que com eles tinha aprendido.” (p.210)
Hester Prynne é assim uma das primeiras grandes heroínas da literatura, e de certa forma uma clara homenagem de Hawthorne à perseverança e dureza das mulheres, comumente catalogadas como sexo fraco, frágeis e incapazes do uso da força, a demonstrar aqui que por debaixo da capa de fragilidade que se lhes atribui, existe muito mais, existe toda uma capacidade não apenas de suportar a dor mas de ir além, de fazer brotar e renascer, sempre mais forte. No fundo a obra reflete a vida de Hawthorne, pessoa tímida e frágil, imensamente dependente de sua esposa, Sophia Peabody Hawthorne, artista dedicada à pintura e ilustração, e o pilar psicológico do casamento, sem a qual muito provavelmente Hawthorne não teria deixado o legado que deixou.

"The Scarlet Letter" (1861) de Hugues Merle. Na frente temos Hester Prynne com a sua filha Pearl, em fundo e à esquerda surgem Arthur Dimmesdale e Roger Chillingworth.

Por fim, e voltando à questão estética, o texto é de difícil leitura, embora reconheça que o facto de ser uma tradução de Fernando Pessoa ajuda imenso. Hawthorne escreve muitíssimo bem, e quando traduzido por Pessoa eleva-se a um nível de beleza por vezes extático. (Interessante que não se saiba ainda hoje porque Pessoa traduziu esta obra, tendo sido encontrada no meio da sua documentação apenas anos depois de ter morrido.) Contudo, e apesar de belo, o texto dá trabalho a "mastigar", já que se oferece muito trabalhado, como que talhado pelo seu sentido estético e não narrativo. Ou seja, antes de garantir a compreensão, o romantismo procurava impactar sensorialmente pela forma, daí que os textos surjam extensos e labirínticos, carregados de simbolismos, obrigando o leitor a esforçar-se para extrair sentido do que vai lendo.