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abril 24, 2021

Novelas de Ferrante, Roth e Mann

Trago 3 pequenos livros — "Tonio Kroger" (118p), "Um Estranho Amor" (176p), "Indignação" (176p) —, 3 novelas aparentemente desconexas, mas que fui lendo e colocando na pilha de lidos sem me dar ao trabalho de parar para refletir e escrever. Tendo resolvido colmatar essa falta, percebi que faria sentido juntar a conversa sobre os 3 num texto único, desafiando-me a mim próprio em busca de relações. Desde logo, podem estabelecer-se entre "Tonio Kroger" e "Um Estranho Amor", já que ambas são novelas debutantes dos autores. No caso de "Indignação", sendo o oposto, porque é a 29ª obra de Roth, o seu conteúdo trata um "coming of age", aproximando-o de "Tonio Kroger".

maio 19, 2018

Casei com um Comunista (1998)

Depois da "Pastoral Americana" (1997) era difícil voltar ao mesmo nível, e ainda assim considero que não só o conseguiu como o superou, não neste mas no terceiro volume desta trilogia — "A Mancha Humana" (2000). "Casei com um Comunista" (1998) fica assim com o último lugar do pódio, não deixa de ser um bom livro que nos consegue agarrar mas raramente nos consegue sacudir do lugar. O tema escolhido é profundo, o Macartismo, mas Roth parece mais interessado em circular ao seu redor, oferecendo pouca profundidade sobre os efeitos e impactos do mesmo.


O livro usa como personagem central Ira Ringold, um personagem másculo, enorme, com poucos estudos e comunista. É por meio dele que se fala dos ideias comunistas, e como expectável, as visões são superficiais e acima de tudo carregadas de fé. Do outro lado, está a mulher, estrela de cinema, pouco lhe interessa a política, mas com ela convivem alguns elementos de direita que acabarão a governar o país. Ambos os lados, direita e esquerda, saem representados superficialmente e inconsequentes. Roth está mais interessado nos sentires dos seus personagens do que nas políticas e ideologias que os circundam, o que faria todo o sentido para um escritor reconhecido pelas suas capacidades de dar a ver o interior dos seus personagens.

Ora o problema, para mim, está exatamente nos personagens, nos modelos escolhidos para criar a narrativa, nomeadamente o casal, Ira e Eve. Nenhum deles apresenta qualquer peculiaridade interessante, ou atrativa, o facto de se terem tornado estrelas dos media torna-os ainda mais distantes, pois as suas dificuldades já não são as nossas. São destemidos e arrogantes, ainda que pelo meio Roth vá dando conta das suas fragilidades, mas não o suficiente para criar uma ligação a qualquer um deles. Ou seja, nunca ao longo de todo o livro me interessou o passado nem o futuro de Ira, já não falo de Eve sobre quem praticamente nada acabamos a saber.

Aliás, pelo que entretanto li sobre o livro, parece que Eve Frame terá sido baseada na mulher de Roth, Claire Bloom de quem se separou, de forma nada amigável, em 1995. Depois em 1996 Bloom escreveu uma autobiografia na qual Roth surge de forma pouco abonatória, rotulando-o de misógino. Não sabia disto aquando da leitura, por isso senti que a personagem não estava completa, tivesse sabido disto, e teria retirado toda uma diferente leitura, já que teria podido contextualizar a mesma. Por outro lado, serve também para me dar conta do facto de Roth ter mais do que um objetivo para o tema do livro, e em parte justifica exatamente a razão porque tudo parece tão difuso e com pouca profundidade

Apesar disto, se Roth vai dando conta da essência do Macartismo, assente na traição e acusação, a verdade é que deixa de fora todos os seus efeitos. Terminado o livro poderia levantar-se a questão se teria sido assim tão mau, já que na verdade nenhum destes personagens parece, em momento algum, sentir medo, nem receia ou parece deixar de fazer algo por causa disso. Deste modo perde-se completamente a noção do alcance da traição, do modo como controla e subverte a vida das pessoas, as condiciona e pune psicologicamente.

Talvez se não nada soubesse sobre o Macartismo, tal como nada sabia sobre os atentados à bomba americanos relatados em "Pastoral Americana", talvez me tivesse impressionado mais esta leitura. Mas o Macartismo é algo bastante mais presente, nomeadamente para todos os que se interessam por Cinema, já que Hollywood foi um dos meios mais castigados pelo Macartismo.

julho 09, 2017

A Conspiração Contra a América (2004)

Uma certa desilusão, ainda que não totalmente surpreso. Depois da desilusão de “The Man in the High Castle” (1962) de Philip K. Dick, já não vinha expectante, ou melhor não vinha com gula. Não consigo explicar porque sempre me fascinou esta ideia de História alternativa, mais ainda do imaginar: “e se a Alemanha não tivesse perdido a 2ª Grande Guerra?’. Talvez por ser algo que ninguém quer ousar imaginar, uma espécie de pensamento proibido, faça dessa possibilidade objeto de imaginação mais apetecível. Mas a verdade é que ambos os livros são muito parcos em termos imaginativos, talvez porque a sê-lo teriam de embarcar pelo puro género de horror, o que acabaria por deitar a perder a componente dramática. Fica-me a faltar leitura de “Fatherland” (1993) de Robert Harris, mas a julgar por estes dois e algumas críticas que li, quer-me parecer que já não será para mim.


Tenho de dizer que a obra de Roth não se foca concretamente na história alternativa da Alemanha ganhar a Guerra, mas antes na alternativa dos EUA não participarem na Guerra. Mas logo aí acaba por ficar curta a digressão de Roth, já que o enredo acaba por avançar muito pouco. Em termos cronológicos somos encerrados num período de apenas 2 anos, entre 1940 e 1942. Roth foca-se assim mais sobre a possibilidade de um regime fascista poder tomar conta da “Terra da Liberdade”, transportando alguns dos eventos ocorridos na Europa para os EUA.

O livro tem a particularidade de fundir de forma muito rica o real e o ficcional alternativo, no sentido em que todos os intervenientes políticos são figuras reais da história americana, ao que se junta o facto da personagem principal, responsável por relatar o que está a acontecer, ser o próprio Philip Roth, na sua infância, dos 7 aos 9 anos. Ou seja, temos uma história alternativa impregnada de autenticidade vívida. Roth é judeu, nasceu em 1933 em New Jersey, e aí vivia no período relatado. Por isso a leitura ganha toda uma componente, apesar de paradoxal, autobiográfica, uma vez que Roth recorre às suas memórias reais para nos dar a ver o mundo dessa época pelos olhos de uma criança judia. Porque mesmo distante da Europa, seria inevitável para as crianças nos EUA que ouviam os pais comentar o que se passava na Europa, ver os jornais e as notícias nas salas de cinema, e não sentirem o peso dos eventos, da incerteza e nebulosa do que significavam.

Philip Roth com 9 anos, e a sua família: a mãe Bess, o pai Herman, e o irmão Sandy. New Jersey, 1942

O livro é de 2004 mas ganhou toda uma nova proeminência com a eleição de Trump em 2016. Muito sinceramente não vejo grande relação, ainda que o desenho da personagem e da eleição de Lindbergh se aproxime bastante do ocorrido com Trump, são tempos muito distintos, e na verdade são pessoas também muito distintas. É verdade que dá conta de alguma presciência por parte de Roth, mas mais relevante que isso, dá conta da sua enorme capacidade de observação e análise da sociedade Americana, da compreensão do que a move.

Como se não bastasse, a escrita de Roth é, como sempre, irrepreensível e puro deleite. Não sei como o consegue, nem como trespassa a barreira da tradução, mas ler, palavra atrás de palavra, atrás de frase, é um pouco como seguir o ritmo de um rio de água fresca em pleno verão escaldante, e de vez em quando pousar a mão sobre a frescura da água para sentir o interior de cada personagem.

maio 01, 2016

“Pastoral Americana” (1997)

Um retrato poderoso do que a sociedade etiqueta como normalidade, provocante e por vezes muito intenso, servido por um fluxo de informação que converge múltiplas dimensões e contextos que nos arrebatam e envolvem no mundo de Roth que é também o nosso.


A base para esta viagem, cheia de fricções, surge no seio de uma família americana dotada de uma moral consagrada pelos media, ele — desportista de liceu e muito popular — ela — miss estado federal e muito atrativa —, a viverem num enorme lote de terreno em Newark, tudo propício a uma vida em sociedade perfeita, cumprindo todos os seus rituais, conformando com o grupo, acreditando no bem como recompensa das boas ações. A filha do casal que nasce imbuída destes valores, ou não, é o seu “bem” mais valioso, até ao momento em que faz 16 anos e decide revoltar-se.

A entrada em “Pastoral Americana” (1997) pode ser mais ou menos intensa consoante a fase da vida em que nos encontremos. Roth escreveu este livro com 60 anos, mas acredito que falará de muito perto ao grande público acima dos 40, aquele que já se conformou, aquele que perdeu a ilusão de que podia mudar o mundo, que não apenas compreendeu a abstração da normalidade em que se encontra mas passou a aceitá-la. Por isso é provocante, porque partindo desta aceitação obriga-nos a reequacionar posições que já tínhamos dado por concluídas. Longe vão os tempos existenciais em que as abstrações societais eram motivo para a nossa fúria e angústia, como aqui podemos ver retratada na filha adolescente, Merry, compreendendo nós a infantilidade de toda essa revolta. Aprendemos a aproveitar a vida a partir do que ela nos permite, e não em função daquilo que cremos ser o ideal ou da utopia egocêntrica.

A partir daqui Roth trabalha um tema quente no final dos anos 1990, mas não novo, e por sinal ainda mais quente nos dias de hoje, os filhos que se revoltam e aderem a movimentos terroristas. O livro é de 1997, e o Atentado de Oklahoma City, responsável pelo maior número de mortes cometido nos EUA por um americano, tinha acabado de ocorrer em 1995. Roth disserta não sobre este, mas antes sobre a avalanche de atentados perpetrados à bomba nos anos 1960 nos EUA a propósito do conflito no Vietname. Neste sentido o livro ganha um interesse histórico, porque apresenta todo um enquadramento dos EUA que raramente vimos no cinema até aos dias de hoje, tanto que conhecendo muito dos EUA a partir do cinema tive de ir pesquisar a história do país, por ter dificuldade em acreditar nas descrições de Roth.

Com esta base a “Pastoral Americana” ganha toda uma força, raramente vista noutro trabalho sobre o tema. O fundo é o terrorismo, mas não a ação armada ou política, o cerne aqui é o social e o humano, a tentativa de compreender como a família se edifica, e buscando a normalidade acaba por se desviar da mesma sem intenção, mas ao mesmo tempo incapaz de regressar ao veio condutor dessa suposta normalidade. Roth não explica, não interpreta, apesar de criticar quase tudo e todos — política, religião, valores do sonho americano, etc. — mas sem nunca se servir dessa crítica para justificar as ações. Não há idealismo, mas também não se professa niilismo, somos levados pela mão ao ponto de não retorno e aí largados para reencontrar o nosso caminho. Não é um livro histórico, nem académico, menos ainda de auto-ajuda, é um livro que nos questiona e corrói as ideias de sociedade que detemos, que nos faz rever as normas que aceitámos, e nos obriga a questionar o nosso lugar.

Se tudo isto é bom, dependendo dos interesses de cada um, o melhor é ser servido numa forma escrita de altíssimo nível, dotada de um virtuosismo capaz de construir parágrafos servidos por múltiplas ideias que de tão bem escritas acabam por funcionar como tobogãs de informação que se infiltram na nossa cabeça e descem ao fundo do nosso não-consciente para repescar inferências, terminando em explosões de sentidos. Existem vários momentos destes ao longo do livro, uns mais intensos, outros menos, mas à medida que avançamos vão trabalhando mais e mais as histórias internas do próprio romance, contadas nas páginas anteriores, ou capítulos anteriores, intensificando e solidificando os detalhes de realidade e assim contribuindo para a construção de toda uma dimensão ficcional profundamente realista e próxima de nós.
"O facto das pessoas serem criaturas multifacetadas não constituiu um grande choque para o Sueco mesmo que fosse um bocado chocante percebê-lo mais uma vez quando alguém o desiludia. O espantoso era o modo como as pessoas pareciam esgotar o que elas eram, esgotar o que quer que fosse que as fazia ser como eram e, esvaziadas delas próprias, se transformavam no tipo de pessoas que outrora haviam desprezado. Era como se, enquanto as suas vidas eram ricas e cheias, se enjoassem secretamente consigo próprios e ansiassem por se libertarem de tudo o que era saudável, bom e com sentido das proporções para, finalmente, chegarem ao outro ser, o verdadeiro ser que era um imbecil iludido. Era como se o facto de nos sentirmos bem com a vida fosse um acaso que podia, por vezes, acontecer aos jovens afortunados mas que, por seu turno, era algo pelo qual o ser humano não sentia qualquer afinidade. Que estranho! E que estranho não lhe teria parecido o pensar que ele, que sempre se sentira abençoado por se contar entre os inúmeros normais protegidos, era, de facto, a anormalidade, um estranho em relação à vida real, exactamente por se sentir tão fortemente enraizado."
Este livro é considerado o primeiro volume de três, seguido de “Casei com um Comunista” (1998) e A Mancha Humana (2000), dos quais me falta agora apenas ler o segundo volume. Entre este primeiro e o terceiro sinto proximidades, nomeadamente na tragédia e a busca de relação com a paz através da natureza. “A Mancha…” consegue ser mais forte, mais trágica, mas “A Pastoral…” é mais abrangente e delineadora do mundo de Roth. Contudo, e em termos comparativos, pensei mais em Liberdade” (2010) de Jonathan Franzen, o estilo literário próximo ajuda, o facto de aprofundar a classe média americana também, mas é o modo como nos é dado a ver a partir do interior dos personagens e como somos levados a requestionar o nosso lugar no seio da sociedade, as normas que já deixámos para trás porque as tínhamos aceitado como naturais, que torna estes dois livros parte um todo ficcional imensamente intenso e significante.


Curiosidade cinematográfica: "A Mancha Humana" foi o primeiro livro a ser adaptado — como "The Human Stain" (2003) — seguido de “Casei com um Comunista” , — como "Elegy" (2008) — enquanto este primeiro volume só chegará as cinemas em outubro pelas mãos de Ewan McGregor.

agosto 21, 2015

"A Mancha Humana" (2000)

Em termos formais, a Mancha é pura tragédia, e por isso não adianta gritar contra Roth e a manipulação emocional, isso faz parte do género, está na essência do tecido de relações humanas recortado para nos ser contado. O que podemos analisar é como o faz, procurar perceber se se limita à exploração de sentimentos, ou se esses estão ali a serviço de algo maior e disso restam poucas dúvidas quando terminamos a leitura do último parágrafo. A "Mancha" é humana, a sua essência somos nós, e por meio da tragédia Roth leva-nos ao interior do nosso ser, desembaraça-nos dos despojos da vida em sociedade, dos seus medos, culpas e vergonhas e obriga-nos a refletir sobre aquilo que de nós resta.

A tradução de Fernanda Pinto Rodrigues para a Dom Quixote está soberba, ainda assim dos excertos que li em inglês, posso dizer que Roth é ainda mais entusiasmante no original.

Coleman Silk atingiu o pico da carreira, Reitor de uma universidade americana, a sua queda é o tema central da tragédia, focando-se Roth sobre aqueles que o vão acompanhar nessa descida, o amigo escritor Zuckerman (espécie de alter-ego de Roth), e o confronto entre o seu passado pré-universidade, o presente e o futuro. Este é o cenário de fundo que vai permitir a Roth explorar os mais intrincados comportamentos humanos, do poder ao racismo, da amizade à família, do amor ao ódio. Tudo isto pode ser visto no filme homónimo realizado por Robert Benton, que conta com nada menos do que Anthony Hopkins e Nicole Kidman, mas que apesar de nos poder dar a conhecer a história em toda a sua evidência, e sendo um bom filme, fica imensamente distante do livro.

Não se trata apenas do detalhe ou da diferença entre os diferentes média, a diferença aqui é evidenciada pela mestria de Roth no manejo da escrita. O modo como trabalhou o enredo, numa estrutura encapsulada e não-linear, para a qual criou personagens, não apenas soberbos e interessantes, mas que descreve de um modo profuso, intenso e extremamente íntimo. Com a não-linearidade a fazer brotar constantes descobertas, à medida que vamos lendo, e vamos compreendendo mais sobre cada um dos personagens. Roth não usa a deslinearização apenas como artifício para a participação do leitor, mas antes para enriquecer o que nos vai contando, de modo a levar-nos cada vez mais ao fundo de cada um dos envolvidos. A cada novo descamar do enredo, percebemos que não apenas saltamos no tempo, para frente ou para trás, mas que Roth como que abre um vortex por meio do qual nos leva a conhecer o interior do sentir de mais um daqueles personagens.
Durante quarenta anos fez o que era necessário fazer. Andou atarefado, e a natureza, que é a besta, mudou-se para uma caixa. Agora essa caixa está aberta. Ser reitor, ser pai, ser marido, ser intelectual, professor, ler livros, dar lições, corrigir textos, dar notas, tudo isso acabou. Evidentemente que já não é a vigorosa besta lúbrica que foi. Mas o que resta da besta, o que resta dessa coisa natural, é com isso que ele está agora em contacto, com o que resta. E sente-se feliz por isso, sente-se grato por estar em contacto com o que resta. Sente-se mais do que feliz: sente-se emocionado, e já está ligado, profundamente ligado a ela, por causa dessa emoção. Não é de família que se trata, a biologia já não lhe serve para nada. Não é família, não é responsabilidade, não é dever, não é dinheiro, não é uma filosofia partilhada ou o amor à literatura, não são grandes discussões de ideias. Não, o que o liga a ela é a emoção. Amanhã descobrem-lhe um cancro e acabou-se. Mas hoje, agora, tem essa emoção.” (excerto de "A Mancha Humana")
"(..) nós deixamos uma mancha, deixamos um rasto, deixamos a nossa marca. Impureza, crueldade, mau trato, erro, excremento, sémen. Não há outra maneira de estar aqui. Não tem nada a ver com desobediência. Nem com graça, ou salvação, ou redenção. Está em todos. Sopro interior. Inerente. Determinante. A mancha que existe antes da sua marca. Sem o sinal de que está lá. A mancha que é tão intrínseca que não precisa de uma marca. A mancha que precede a desobediência, que engloba a desobediência e confunde toda e qualquer explicação e compreensão. É por isso que toda a purificação é uma anedota. É uma anedota básica, ainda por cima. A fantasia da pureza é aterradora. É demencial." (excerto de "A Mancha Humana")
De algumas análises que li, nomeadamente na comparação da alegada “Trilogia Americana” de Roth, na qual a “Pastoral Americana” (1997) seria o primeiro volume, “Casei-me com um Comunista” (1998), o segundo, e “A Mancha Humana” (2000) o terceiro, parece ser consensual, apesar da “Pastoral” ter ganho o Pulitzer, que a “Mancha” é o pináculo, não apenas da trilogia, mas da obra de Roth. Provavelmente por ser aqui que vai mais longe na análise das pessoas, centrando-se nos efeitos das convenções sociais que as amarram e domesticam, e menos nas componentes políticas de cada um dos momentos representados.

Por outro lado, e ao contrário do que por vezes já disse aqui no blog, a quantidade de trabalho criado por Roth não lhe foi saindo como repetição, mais do mesmo, mas antes como aprimoramento da sua mestria, com esta a evoluir continuamente ao longo da sua carreira. Roth tinha 70 anos quando escreveu a “Mancha” e isso nota-se, muito do que aqui se diz, não era possível de ser pensado por alguém com 30 ou 40 anos, é preciso experiência de vida, viver, sofrer, acertar e errar. A sua escrita foi assim tornando-se mais intensa, entrosada, e íntima, sendo responsável por muito daquilo em que se transforma a experiência das suas tragédias narradas.

Para fechar, quero deixar um excerto de uma passagem, na qual Roth usa uma referência a um andamento de Mahler, que descreve de modo belíssimo, e aproveitando a particularidade multimédia do blog deixo a música, esperando assim proporcionar um momento especial a quem desejar realizar a leitura enquanto ouve:

Mahler, Symphony No 3, por Claudio Abbado
O percurso a pé para o cemitério, a três quarteirões de distância, foi em grande parte memorável pelo facto de, aparentemente, não ter acontecido. Num momento estávamos paralisados pela infinita vulnerabilidade do adágio de Mahler, por aquela simplicidade que não é artifício, que não é uma estratégia, que quase parece desenrolar-se com o ritmo acumulado da vida e com toda a relutância da vida em terminar… num momento estávamos paralisados por aquela rara justaposição de grandiosidade e intimidade que começa na serena, cantante e contida intensidade das cordas e depois sobe, em vagas, pelo pesado falso final que conduz ao verdadeiro, ao prolongado, ao magnífico final… num momento estávamos paralisados pelo crescendo, pela subida, pela culminância e pela acalmia de uma orgia elegíaca que se espraia, espraia, a um ritmo determinado que nunca muda, recuando para logo voltar como uma dor ou um anseio que não desaparecem… num momento estávamos, levados pela insistência crescente de Mahler…” excerto de "A Mancha Humana"