Mostrar mensagens com a etiqueta social media. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta social media. Mostrar todas as mensagens

dezembro 14, 2020

O esplendor das Redes Sociais

Estudos atrás de estudos [1,2] têm demonstrado a necessidade básica de vivermos em grupo, de partilharmos a vida com outros, de dar conta dos nossos amores, derrotas, dores, ganhos, sofrimentos e vontades. Muitos dos recentes estudos da Psicologia Positiva falam disso como condição essencial para a felicidade, para o bem-estar, mas vêm de trás, vêm dos primeiros estudos da psicologia social e da aferição das motivações humanas [3], levando em conta processos de comparação humana [4, 5] e de aprendizagem social [6] que vêm inscritos em nós à nascença. Mas o modo como vamos vivendo, em que o trabalho assume cada vez mais o lugar central da nossa vida, torna tudo isso complicado. O gráfico abaixo ilustra um conjunto de ideias sobre as quais vale a pena determo-nos.

"Who do we spend time with across our lifetime?", Esteban Ortiz-Ospina, dezembro, 2020

Por um lado podemos dizer que a ideia de que a vida são os amigos é muito sobrevalorizada, que tudo se resume ao parceiro, e em última análise, estamos mesmo sozinhos, nada a fazer. 

Por outro lado, julgo que aquilo que este gráfico nos diz, comparando-o com aquilo que a psicologia nos diz que precisamos, é que as Redes Sociais se tornaram na tábua de salvação deste século XXI. Este processo de individualização, destruição das comunidades alargadas, iniciado no século XX com a industrialização e desenvolvimento acelerados, foi conseguido sem uma destruição de todos nós graças ao suporte dos Mass Media que garantiam um fio de relação humana constante, produzindo a necessária estabilidade emocional. No século XXI fomos mais longe, individualizámos ainda mais, mas ao mesmo tempo criámos as redes sociais que nos permitiram abandonar os media de massas, para voltar à relação direta com pessoas, relação comunitária efetiva, ainda que por via de redes digitais.

É um gráfico riquíssimo para reflexão sobre o que somos realmente, que põe a nu muitas falácias sobre aquilo que acreditamos ser.



setembro 10, 2020

O problema das redes sociais

Saiu ontem o documentário "O Dilema das Redes Sociais" (2020), na Netflix, que procura dar conta de vários dos problemas que têm sido atribuídos às redes sociais: viciação, invasão de privacidade, propaganda, manipulação, fragmentação de identidade, etc. O protagonista do filme é Tristan Harris que começou por ser responsável pelo design ético da Google, tendo-se demitido para criar a fundação Center for Humane Technology. O filme é relevante, aconselhável a todos os que usam as redes sociais, dos adolescentes aos mais velhos, mas com algum espírito crítico para evitar entrar em estado de alarme.

Para quem trabalha na área nada é dito aqui de novo, mas o que é dito é importante que chegue a todos, e não apenas a quem trabalha no domínio. As pessoas que falam fizeram todas parte destas empresas — Facebook, Google, Twitter, Instagram, Snapchat,... — mas nem tudo o que dizem é tal como nos querem dar a entender, existe algum excesso, alguma falta de enquadramento principalmente de teoria dos media e análise histórica da psicologia humana. Mas no cômputo geral, o filme funciona bem no acendimento de algumas campainhas, podendo ser relevante para uma grande faixa da sociedade que passou a usar estas ferramentas sem compreender como funcionam, sem qualquer noção do que está por detrás daquelas imagens, menus e comentários que a toda a hora solicitam a nossa atenção. 

O discurso alarmista tende ao exageramento das capacidades e potencial, mas aceito-o como discurso que procura gerar uma preocupação societal. Sem essa preocupação dificilmente poderemos levar os políticos a tomar as decisões que são necessárias. Não se compreende como andamos há uma década a pedir regulamentação para estas ferramentas, e tudo continua na mesma. Na Europa criou-se o RGPD, lançaram-se algumas multas, mas pouco mais foi feito. Se temos todo um conjunto de estruturas que regulam os media tradicionais, da rádio à televisão, porque é que ainda não criámos regulação para estas redes sociais? Simplesmente porque não há pressão. 

Repare-se no que aconteceu com a Uber, a pressão dos taxistas tem obrigado os políticos a agir. No caso das redes sociais, a pressão surge apenas pelo lado de algumas das pessoas que trabalham na área, e depois quando se fala de roubo de dados ou do muito dinheiro gerado pelas companhias. Por outro lado, sabemos que não é algo simples ou fácil. A regulação das redes sociais, ao contrário dos media tradicionais, tende a chocar com as liberdades e garantias individuais, que é no fundo o mesmo problema da Uber, por isso é tão complicado legislar. Mas se pensarmos no modo como funcionam os regulamentos dos media tradicionais, esses também chocam com os mesmos direitos, a diferença é que a proibição atua de modo indireto e por isso parece menos intrusivo.

A questão dos sistemas informáticos e os algoritmos desenhados para o engajamento é em si menos relevante, porque não difere daquilo que fazemos quando criamos qualquer obra de arte, quando criamos uma peça musical, filme, livro ou uma peça de teatro, ou um espetáculo de televisão, circo ou ilusionismo. Recorrem-se às técnicas mais eficazes na captação da atenção. Claro que ter pessoas a passar dias inteiros fixados nos sistemas não é bom para qualquer pessoa, menos ainda crianças ou adolescentes, mas aí cabe aos pais atuar. Como tenho defendido no caso dos videojogos, as rede sociais devem seguir o mesmo regime, não proibir mas regrar o tempo. Um adolescente tem de ter tempo para ler, ver cinema, correr, brincar, ouvir música, pintar, etc. etc. não pode estar todo o dia no café virtual do Instagram ou na discoteca virtual do Tik Tok. Por isso o que mais desperta a minha preocupação é a relação com o discurso social, a construção de comunidade sócio-política sobre a qual as redes sociais intervêm cada vez mais.

No passado recente o discurso comunitário era construído quase em exclusivo pelos media e os políticos. As redes sociais vieram dar voz, não a todas as pessoas, mas a todas as ideias, e é aí que surge aquele que considero ser o principal problema. Quando empresas estão dispostas a promover qualquer ideia em função de ganhos financeiros. Onde fica a chamada responsabilidade social das empresas? Como é que podemos aceitar que estas empresas promovam textos e vídeos que debitam informação falsa, errada, que busca manipular a percepção de realidade de outras pessoas? O problema não são os algoritmos, os seus truques de engajamento. Porque esses são bons para mim quando procuro informação relevante, como quando quero comprar um livro e os sistemas me apresentam os livros próximos. Agora quando tenho o Facebook a apresentar-me mais e mais informação sobre a Terra Plana apenas porque vi uma qualquer imagem relacionada, não faz sentido. 

Repare-se que o problema não é alguém publicar um texto dizendo que a Terra é plana, mas é o facto das redes sociais, para ganharem dinheiro, aumentarem a distribuição desse texto. Isto está errado, porque quando os algoritmos apresentam esse conteúdo não o fazem porque foi pedido conscientemente por alguém, mas antes porque a empresa quer apresentá-lo para manter a pessoa agarrada ao sistema, por forma a conseguir enviar-lhe mais e mais publicidade. Ou seja, não se trata de proibir ou censurar, mas trata-se de impedir a manipulação empresarial de informação que se sabe ser falsa e nefasta para a sociedade que queremos.

Todos nós experienciamos o poder do algoritmo quando publicamos duas coisas distintas e verificamos que uma tem o dobro de likes da outra. Sabemos que não é por nossa vontade, mas também não é por acaso, é antes porque o algoritmo do Facebook considera um conteúdo melhor do que outro e por isso apresenta-o a muitas mais pessoas, aumentando a sua visibilidade e inevitavelmente o número de likes. Agora não podemos aceitar que o algoritmo considere mais uma notícia falsa, que por ser chocante tem enorme potencial de captar atenção, e a apresente a mais pessoas do que uma notícia verdadeira que é menos chocante. Mas isto só vai mudar quando for regulado, é de uma ingenuidade tremenda andar a fazer pressão sobre as redes sociais para que elas se auto-regulem quando elas são empresas cotadas em bolsa.

A mensagem no final do documentário é, do meu ponto de vista, para ser levada à letra. Desliguem as notificações. Sempre que comprarem um novo telemóvel ou computador, comecem por desativar todas as notificações de todas as Apps, mantenham apenas as das chamadas e SMS. Se não o fizerem, abrem a porta a que o vosso tempo seja regulado pelo telemóvel e não por vocês.

setembro 10, 2018

Facebook é a nova Televisão e modela comportamentos na Academia

Em 1992 os The Disposable Heroes of Hiphoprisy lançavam um álbum de rap intitulado "Hypocrisy Is the Greatest Luxury" no qual atacavam as hipocrisias da sociedade desse tempo. A banda punha o dedo na arte, na política, no emprego, no consumismo, no racismo, no sistema financeiro e na recessão, no bullying e no suicídio. A música homónima do álbum abria com os versos abaixo, que poderiam ter sido facilmente escritos em 2018, mas foi a faixa 3 que ficou desse álbum e porque deles me lembrei, e que se intitulava: "Television, the Drug of the Nation".

"Life these days can be so complex
We don't make the time to stop and reflect" (1992)


Repare-se que em 1992 a complexidade gerada pela sociedade de informação ainda vinha longe. A internet só existia nos departamentos de informática das Universidades, era a Televisão que regulava as nossas vidas, dizia-nos o que vestir, o que ouvir, ver, ou ler. Como se dizia nesta faixa 3:

“One nation 
Under God 
Has turned into 
One nation under the influence 
Of one drug [television](ouvir)

Vem tudo isto a propósito de um longo texto publicado no The Quillette, na semana passada por Theodore P. Hill, um matemático formado por Stanford e Berkeley e professor até se reformar no Georgia Tech, em que dava conta de uma saga com mais de ano e meio para a publicação de um artigo científico. Essa saga envolveu um artigo que foi Aceite para Publicação, depois de todo o processo de revisão por pares, na Mathematical Intelligencer, revista científica respeitada e publicada pela Springer desde 1979, mas que à última hora a editora-chefe da revista, Marjorie Senechal, decidiu retirar e não aceitar para publicação. Depois disso, os colegas de Hill retiraram-se de co-autores do artigo, e ele por ser reformado e não ter nada a perder partilhou o artigo na rede. Pouco depois o editor do New York Journal of Mathematics, uma revista aberta sem pressões editoriais nem de indexação, convidou Hill para submeter uma versão revista do artigo. Hill submeteu, o artigo foi revisto pelos pares, aceite e publicado. Mas não terminou a saga, porque três dias depois de publicado, o artigo simplesmente desaparecia da página da revista, e passados mais alguns dias, surgia outro no seu lugar, como se nunca tivesse existido tal artigo. Leiam o texto no Quillette para compreender toda a extensão e esferas envolvidas no silenciamento da ciência. Estamos a falar de forças subterrâneas com motivação muito forte para fazer dobrar tanta gente, nomeadamente gente que foi treinada para seguir a máxima da Liberdade de Pensamento Científico. Impedir a publicação tinha sido forte, mas retirar um artigo já publicado, e fazer de conta que nunca aconteceu, implica viver numa realidade de poder indiscriminado e desgovernado, um simulacro.

A Mathematical Intelligencer depois de aceitar o artigo, deu a aceitação como recusa. O NYJM depois de publicar o artigo, apagou-o sem qualquer explicação ou justificação, e substitui-o por outro artigo, fazendo com que  a publicação anterior nunca tivesse existido.

O apagamento de um artigo de uma revista científica, sem qualquer explicação, é em termos de simulacra comparável aos apagamentos políticos protagonizados pelo aparelho de Estaline.

Mas o que defendia o artigo de Hill? É um estudo na área da Matemática que demonstra a existência de maior variabilidade no género masculino — de forma simples, tendem a existir mais mentes brilhantes (ex. podem dar mais prémios Nobel), mas também tendem a existir mais mentes broncas (ex. existem mais homens presos). Esta variabilidade, mais acentuada no machos que nas fêmeas, parece existir de forma quase universal nas várias espécies. Aquilo que Hill faz é trabalhar dados probabilísticos, a sua área de expertise, e demonstrar o que está a acontecer. Steven Pinker foi um dos cientistas que veio defender o artigo no Twitter ontem, dizendo:
"Egregious: A math paper that tries to explain a fascinating fact (greater male variability) is censored. Again the academic left loses its mind: Ties equality to sameness, erodes credibility of academia, & vindicates right-wing paranoia." [@sapinker]
Falamos de puro tráfico de influência, de batalhas ideológicas de submissão do outro. Tudo isto esquecendo a Ciência, esquecendo que por mais benéfica que uma ideia nos possa parecer, ela não se transforma em realidade por simplesmente o desejarmos. E que nem sempre aquilo que o colega nos diz que lhe parece ser, o é verdadeiramente. O Facebook vem sendo um palco cada vez maior para todo este tipo de comportamentos, em que vamos assistindo a colegas da academia que deveriam ser isentos, imparciais, defensores do pensamento científico aberto e livre, mas que se deixam embalar pelas inflamações do momento, que aceitam partilhar notícias falsas apenas para promover a guerrilha ideológica. Contudo, e ao contrário de Pinker, não vejo isto como um problema de um dos lados, isto é um problema de ambos — Esquerda e Direita — que se polarizaram tremendamente, não por causa direta do Facebook, mas não se pode dizer que este não tenha vindo a servir de catalisador emocional de toda essa polarização.

Não é de Esquerda nem de Direita porque ainda esta semana se passou outro caso, em território nacional, seguindo um modelo muito próximo de atuação. Falo da Conferência sobre as alterações climáticas decorrida na Universidade do Porto este fim-de-semana. Durante toda a semana anterior vimos os mais respeitados colegas nacionais a atacar por todos os meios os colegas que “ousaram” fazer tal conferência. Houve direito a abaixo-assinado com dezenas de reputados nomes, e milhares de ataques no Facebook e na imprensa nacional. Muitos dos que realizaram ataques, nem sequer sabiam do que tratava a conferência, não perderam um minuto a ler os textos dos colegas, afiaram as machetes e avançaram na defesa de um ideal.

Analisado o livro de abstracts da conferência o que temos ali verdadeiramente? Uma conferência sobre alterações climáticas que não contestam, em que os intervenientes pretendem apresentar potenciais outras visões sobre o que pode estar a motivar essas alterações, para além da ação humana. Na verdade, o que temos neste momento são dados de correlação, e dados de 200 anos num planeta com milhões de anos. Sim, os dados levam em conta todas as variáveis conhecidas que potencialmente poderiam gerar o efeito, atenuando o impacto de mera correlação, e deixam muito poucas dúvidas sobre o facto de sermos nós o agente que está a fazer a diferença (ver infografia explicativa dos dados que possuímos sobre as alterações).

A esmagadora maioria dos estudos demonstram que a variável que mais afectou o aquecimento foi a humana. Mas isso é razão para não se discutirem outras hipóteses? Para não mantermos a mente aberta? [fonte da imagem]

Não restam muitas dúvidas sobre a responsabilidade da nossa espécie sobre o clima, o que é diferente de dizer que não resta espaço para podermos exercer a dúvida. A constatação que temos não é verdade absoluta, em ciência a verdade só existe até provada a sua falsidade. Por isso ter pessoas a discutir análises de factos, a contestar posturas, pode parecer arrogante, mas não deixa de ser legítimo. Mais ainda porque estamos a falar de uma conferência no domínio das ciências sociais e humanas, lugar em que se fazem conferências sobre Post-it e as irmãs Kardashians, que não refiro como menosprezo pelo que se investiga mas refiro para defender que aquilo que está aqui em causa é distinto de uma conferência no domínio da Física. Não perceber isto é querer forçar uma visão monolítica do conhecimento e da ciência, sem qualquer benefício.


Estes dois casos não são isolados, e são claramente sintoma de muito do que se passa à nossa volta. mas aceitarmos o calar de cientistas com o argumento de perigo de contaminação da opinião pública com ideias erradas é algo extremamente preocupante. Isto equivaleria a dizer que os cientistas não devem agir enquanto investigadores da realidade, não devem pensar livremente, mas devem subjugar-se às necessidades de controlo e manipulação da opinião pública e defesa das grandes narrativas. Ou que a liberdade de pensamento científico é apenas uma utopia para oferecer credibilidade aparente à ciência. O que temos aqui não é mais do que o modelo social criado e imposto pelo Facebook a moldar o pensamento da sociedade, a toldar os parâmetros dos diferentes grupos, incluindo os próprios cientistas. Todos se sentem escrutinados, e por isso todos acreditam que precisam de trabalhar para a construção de uma realidade paralela na qual tudo é melhor do que na realidade em que vivemos. Nem que para isso tenhamos de transformar as nossas vidas naquilo em que durante tantos anos contestámos à televisão, que está expressa nestes versos dos Disposable Heroes:

“Television [Facebook], the drug of the Nation 
Breeding ignorance and feeding radiation”

O Facebook roubou as grandes audiências à televisão, nomeadamente a partir da introdução e massificação dos smartphones. Com este, os estudos começaram a mostrar padrões nos quais as pessoas parecem preferir ver informação que vá de encontro ao seu próprio modelo do mundo. Aquilo que não se enquadra nessa visão, Esquerda ou Direita, chega a ser doloroso, porque obriga a mudança de opinião, saída da zona de conforto. Por isso as pessoas desataram a eliminar, a barrar ou a deixar de seguir todos aqueles que não se exprimem no mesmo comprimento de onda. Criaram bolhas, câmaras de eco, confirmações de viés, enormes silos com grandes divisórias. Contudo em vez de ficarem felizes nos seus redutos, começarem a surgir de cada lado "guerreiros" na defesa de visões e ideias. A Primavera Árabe foi um prenúncio do que viria a seguir, depois disso tivemos o Obama, o Brexit, Trump, e a cada nova história, cada novo conflito, as hostes, fechadas em cada silo, agitam-se e lançam as suas farpas. Deixaram de existir terrenos neutros, espaços onde as diferenças se podiam debater. A Universidade que devia ter permanecido esse espaço, parece votada a deixar de o ser. No Facebook, se acedemos a conversar com uma ala, não podemos conversar com a outra. Chegámos a um ponto em que apenas conta: "Ou estás connosco, ou estás contra nós".


Se aceitarmos colocar a ciência em segundo plano, se aceitarmos partilhar o rumor, se aceitarmos exigir a censura, a imposição e a submissão da ciência e dos cientistas na defesa de ideologias, esqueçam o progresso, não haverá literacia que nos proteja de uma sociedade enclausurada num simulacro.

outubro 28, 2017

A Internet como Máquina de Propaganda

Há duas semanas apresentei uma comunicação na qual dava conta dos problemas de estarmos a criar uma sociedade baseada no digital, baseada na imensidão de dados que pululam na internet, uma sociedade que segundo Harari se está a virar da ciência e da religião para os dados, criando assim um novo movimento, o dataismo. Nessa altura apontei como alguns dos problemas na base do dataismo, as “Notícias Falsas” e os “Factos Alternativos”, mas optei por não desenvolver, crendo ser algo já amplamente reconhecido. Contudo a leitura recente de um texto da Wired sobre a condição da mulher na Rússia mostrou-me algo que me tinha passado um pouco ao lado, a génese das Fake News internacionais.


O Brexit e a eleição de Trump trouxeram para o centro da discussão internacional o impacto das Notícias Falsas nas sociedades, nomeadamente pelo facto da Rússia se ter transformado, de novo como que renascida das cinzas, em arqui-inimigo dos EUA e simultaneamente do bloco UE. Só que desta vez o problema não assenta em força bruta, armas ou nuclear, assenta em algo muito menos visível mas paradoxalmente muito mais próximo, que entra pelas nossas casas e vidas adentro, a internet. Sobre esta rede como um todo, mas com particular destaque para as redes sociais — Facebook e Twitter —, pode dizer-se hoje, sem grande exagero, que se transformou no Cavalo de Tróia perfeito para quem quer que deseje agir na arena geopolítica.

Mas como é que isto aconteceu? E como é que ninguém previu isto?

Existem vários pontos que sustentam o surgimento deste fenómeno. O primeiro é naturalmente a passagem de toda a informação e comunicação dos meios tradicionais para o meio digital. Ou seja, toda a comunicação social, todas as empresas, todas as pessoas a nível pessoal, e claro também todos os governos passaram a comunicar através de uma canal único, a internet. Neste quadro, não só todos têm acesso às mesmas ferramentas de produção de informação, como todos acedem ao mesmo canal para divulgar e promover as suas ideias. Isto forçou o aparecimento de técnicas de comunicação que se assemelham mais a propaganda e menos a comunicação. Se primeiramente vimos as empresas a fazer uso destas, rapidamente os governos começaram a pensar que essa era também a única via.

Recordemos a revolução da década anterior no seio das indústrias criativas, nomeadamente musical e cinematográfica, em que as empresas viram os seus lucros cair a pique porque os seus produtos eram partilhados na rede pelas pessoas, minimizando drasticamente a necessidade de compra de novas cópias. As soluções encontradas foram múltiplas, desde processos em tribunal e consequente capacidade para eliminar sites que partilham, às atuais plataformas de streaming, mas pelo meio e de forma muito menos visível e menos discutida, as empresas utilizaram tácticas, e continuam a utilizar, de contrainformação. Ou seja, se tentarem procurar hoje na rede algum filme, música ou livro para fazer download vão encontrar dezenas e dezenas de links e sites dedicados, mas falsos. Os sites possuem descrições das obras, possuem vários botões que apontam para o potencial local em que se pode descarregar a mesma, mas nunca se chega a aceder verdadeiramente a obra. Faz-se circular por labirintos de informação falsa, sem retorno, cansando assim o potencial “pirata” levando-o a desistir das suas intenções.

Ora foram exatamente estas mesmas tácticas que a empresa conhecida como Internet Research Agency baseada em St. Petersburg, mas às ordens do Kremlin, começou a utilizar para manipular a política interna. Putin está no comando da Rússia há quase duas décadas e isso num país com as assimetrias e dimensão que se conhecem não se consegue sem um controlo muito grande das populações. Não podemos esquecer que Putin foi agente do KGB, e depois diretor do mesmo, é alguém profundamente treinado no secretismo, nomeadamente na arte da manipulação humana. Deste modo quando Putin percebeu que apesar de controlar toda a Comunicação Social no seu país, a informação imparcial continuava a jorrar e entrava diretamente em casa da população por via da internet, foi obrigado a agir. Primeiramente tentando controlar a informação que circulava na rede, o acesso a meios internacionais, mas rapidamente percebeu, ao contrário da China (não que a China não esteja a acordar para o fenómeno e talvez de forma ainda mais brutal), que não podia controlar a internet e por isso subiu a parada. O passo seguinte foi inundar a internet com toneladas de informação falsa, impedindo os cidadãos russos de conhecer a verdade, ou pelo menos criarem uma base sólida sobre a realidade.


Falamos de uma técnica antiga de guerrilha, a contrainformação, utilizada em toda e qualquer disputa pela verdade, e já amplamente utilizada pela URSS no passado. Mas no passado o governo da URSS limitava-se a deter os meios de comunicação social para debitar a informação que lhe interessava, criando assim uma sensação, imensamente descrita pelos povos que viveram sob esse regime, de choque permanente entre realidade e ficção. Hoje numa Rússia aparentemente mais livre, dotada de internet, é mais difícil controlar a informação que se produz, desse modo a alternativa que sobrou foi a de produzir informação falsa e contrária misturando-a com a demais. Se antes o povo sentia que aquilo que os órgãos de comunicação social da URSS diziam não se ligava muito com a vida real que levavam, hoje o povo ao aceder à informação e contrainformação, acaba por ficar de tal forma baralhado, sendo conduzido ao mesmo ponto do “pirata” de música, o de desistência.

Esta questão torna muito mais claro e óbvio o que viria a acontecer no ano passado com o Brexit e Trump. Depois de criada a “Fábrica de trolls” na Rússia, e controlada a sua própria população, era preciso continuar a dar trabalho a todo um exército digital, e nada poderia ser mais apetecível do que a destruição dos seus rivais, no fundo os responsáveis pela entrada da tal “informação imparcial” no seu país por via da internet. O bloco europeu, mesmo ao lado, tem sido uma das maiores ameaças ao seu poder, muito provavelmente um dos maiores responsáveis pela queda da URSS, pelo exemplo democrático, de modo que tudo o que puder afundar esse bloco servirá a causa de Putin. Já no caso dos EUA não seria preciso grande motivação para além de todo o historial entre os dois países, mas é claro que a supremacia económica e cultural ainda detida pelos EUA continua a ser um alvo apetecível.

É claro que se o problema tivesse partido de Putin e tivesse ficado contido na sua figura, como o “elo do mal”, nada disto seria muito preocupante para os povos não governados pelo mesmo. Ou seja, se os restantes governantes e políticos tivessem recusado estas tácticas e se tivessem desviado das mesmas, o seu impacto teria sido muito atenuado. O problema é que tivemos políticos em todo o lado, dos EUA ao Reino Unido, passando pelos casos mais recentes da Alemanha e Áustria que resolveram enveredar pelo mesmo caminho. Alguns assumindo uma fachada de inocência, limitando-se a surfar a onda proporcionada pela contrainformação das fábricas russas, outros indo mais longe, iniciando as suas próprias estratégias, se não produzindo especificamente contrainformação, fazendo uso das mesmas tácticas de apelo emocional. Ou seja, fazendo política com base no nacionalismo como forma de luta contra a crise económica internacional, como pudemos ver na Hungria, em Inglaterra, na Holanda, em França, na Alemanha, na Áustria e agora mesmo iniciando-se a nível regional em Barcelona e no Norte de Itália.

Fica só a faltar o último “player” de toda esta equação, as redes sociais, porque se a internet é o canal que tudo proporciona, as redes sociais são as plataformas que verdadeiramente interligam todas as pessoas, predispondo-as a abrir-se à informação, mas acima de tudo à comunicação. Neste sentido as redes sociais tornaram-se muito mais poderosas que os órgãos de comunicação social, pois acreditamos mais num ato de comunicação do que num de mera informação. Ou seja, em conversas que possamos ter com outros, que vão reforçando as nossas crenças, porque são nossos amigos próximos, e nos habituámos a respeitar. E por isso se uma informação começa a circular sem fundamento, mas alguém próximo de mim a partilha, abre-se desde logo um precedente para que eu próprio inicie a crença nessa informação. E uma vez instalada, torna-se difícil de apagar, mesmo quando a informação surge desmontada, porque mais uma vez, acreditamos mais nas pessoas iguais a nós do que em órgãos de informação abstratos. Veja-se o caso decorrido esta semana em Portugal, que ficou conhecido por "Chemtrails".

Não admira então que dentro de poucos dias, a 1 de Novembro, o Twitter, o Facebook e a Google vão ser ouvidos nos EUA pelo Senate Select Committee on Intelligence, uma audição imensamente aguardada não apenas para tentar compreender melhor o que aconteceu com a eleição de Trump, mas para tentar compreender o papel que estas três empresas estão verdadeiramente a desempenhar na formação e manipulação da opinião pública. A quantidade de dados que existem já oferecem poucas dúvidas à intromissão da Rússia nas eleições americanas de 2016, seja pela produção de contrainformação, seja pela recente descoberta de compra de anúncios por esta. O cenário para um completo embuste foi montado, agora falta descobrir o quão efetivo verdadeiramente foi. E a verdade é que a imagem de Silicon Valley não sairá disto incólume.
“I think the time has come that we are going to see an end to Internet exceptionalism where platforms can continue to claim some sort of immunity because of their nature.
It's going to be an interesting moment of seeing where the rubber hits the road in terms of…their kind of market positions as bastions of liberal ideals, and their distaste and disdain for being regulated by anyone but themselves”.

Sarah T Roberts, professora de Estudos de Informação na UCLA
Posto tudo isto, encontramo-nos numa encruzilhada. Criámos as melhores tecnologias de informação e comunicação algumas vez existentes, mas em vez de servirem para nos unir, parecem estar a produzir o oposto. Pode parecer surpreendente, mas não é. Na verdade as tecnologias não mudam o ser-humano, apenas ampliam as suas qualidades, e claro os seus defeitos. Neste caso a internet e as redes sociais estão a fazer exatamente isso, a ampliar a nossa sede de comunidade, a nossa sede de grupo, e essa precisa de ser alimentada, precisa de "um outro". A criação de uma comunidade global completa não deixa de ser uma utopia, tal como a Torre de Babel o foi. Precisamos de cola para unir o grupo e a comunidade, e essa só pode ser fornecida pela existência de perigos a partir dos outros, iguais a nós mas em quem sempre encontraremos a diferença. Porque no fundo, aquilo que verdadeiramente nos une enquanto comunidades, não é a fraternidade, mas o medo.

outubro 22, 2017

Digital Sense (2017)

O livro “Digital Sense: The Common Sense Approach to Effectively Blending Social Business Strategy, Marketing Technology, and Customer Experience” de Travis Wright e Chris Snook procura dar uma ideia do ecossistema criado em redor das empresas e das marcas com o surgimento do digital e das tecnologias de comunicação, nomeadamente com todo o boom ocorrido com o surgimento das redes sociais. O livro está escrito numa forma bastante coloquial, quase como conversa de café, mais focado no relato de caso, como é apanágio de muitos destes livros de marketing, mas neste caso são casos desenvolvidos pela dupla o que lhes dá maior autoridade sobre tudo aquilo que que vão apresentando.


Do todo, apresento aqui a parte que realmente me interessou, por representar um esforço de coligir o conhecimento e oferecer valor aos leitores, por meio daquilo que os autores apelidaram de “Experience Marketing Framework” (EMF), ou seja, um modelo de trabalho para a rentabilização de experiências de marketing digital. Para este modelo os autores usaram como base de trabalho o Design Thinking, a partir do modelo proposto por Jesse Garrett para o Design de Interação, apresentando o que definem como o seu EMF. O objetivo passa por trabalhar para desenvolvimento de uma Experiência Digital de sucesso junto dos potenciais consumidores.

1 - Research - Insight Layer - User Needs / Objetives
2 - Strategy - Vision Layer - Content requirements / Functional Specs
3 - Execution - Success Layer - Design
O resto do livro não me interessou muito, ou por ser demasiado focado nas lógicas do marketing, distante do design e da experiência, mais preocupado com os números e retornos. Por outro lado nota-se alguma ligeireza no discurso dos autores, pecando por vezes por arrogância, outras vezes mesmo por impertinência. A título de exemplo, os três métodos para entrar na cabeça dos utilizadores, segundo eles, são o "choque, espanto e o estar de acordo". Já os perfis dos trabalhadores das empresas podem-se definir como: “Influencers, Amplifiers, Motivatables, and Zombies”. Os zombies seriam todos aqueles nas empresas que não estão dispostos a embarcar na inovação, ou que votam sempre contra novas ideias. Percebendo o que querem dizer, o modo como é trabalhado, é tudo menos profissional.