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dezembro 01, 2021

A manipulação de Gottschall

Não posso chamar livro a algo que não passa de um emaranhado de ideias e frases coladas juntas para manipular quem lê "The Story Paradox" (2021). Nem sequer posso dizer que Jonathan Gottschall conte uma história, porque contar uma história implica coesão e unidade discursiva, e aqui temos tudo menos isso. Gottschall agarra em tudo de todo o lado — diversas áreas científicas, tecnológicas e culturais — que possam de algum modo suportar as suas premissas, e monta um castelo de cartas para vender as sua ideias. Só esqueceu que a retórica para funcionar precisa de Ethos, não chega lógica e emoção. É quase doloroso ver Gottschall, alguém que ensina no ensino superior, usar trabalhos de múltiplos colegas, que estão relacionados com questões concretas, que ele cita distorcendo ou convocando os resultados para o que lhe interessa, apenas para oferecer prova de autoridade ao discurso que constrói. A isto chamamos discurso manipulativo, sem qualquer respeito pelos leitores. Se no seu livro anterior, "The Storytelling Animal" (análise VI), já se sentia muito disto, e que na altura considerei como "abordagem absolutista", neste novo livro além de não vir acrescentar nada, a abordagem resvala para a tentativa de inculcar o medo e o pânico esperando com isso atrair as luzes para a venda de mais livro.

setembro 29, 2019

Diálogo: A Arte da Ação Verbal

Robert McKee é uma das maiores autoridades do guionismo de Hollywood, sendo o seu livro “Story: Substance, Structure, Style and the Principles of Screenwriting” (1997) considerado uma espécie de bíblia para quem escreve para o meio audiovisual. “Dialogue: The Art of Verbal Action for Page, Stage, and Screen” (2016) é assim além da sua primeira publicação em 20 anos, um verdadeiro sucessor de “Story”, capaz de aprofundar toda a componente da escrita de diálogo. Entretanto McKee passou todos estes anos envolvido nos seus famosos workshops, aquilo que confessa mais gostar de fazer porque segundo ele“Life is absurd. But there is one meaningful thing, one inarguable thing, and that is that there is suffering. Fine writing helps alleviate that suffering – and anything that puts meaning and beauty into the world in the form of story, helps people to live with more peace and purpose and balance, is deeply worthwhile.” 



É interessante ver como as reações ao livro se dividem entre acusações de academismo e falta dele. McKee é um brilhante analista de histórias, nos mais variados meios, o que faz com que não raras vezes se exceda e entre em processos de sistematização de ideias, conceitos e argumentos que não são muito úteis a quem escreve. Contudo, para académicos como eu, são autênticas pepitas, porque provêm de um olhar único, que funciona como um microscópio de aumento das teias narrativas e sociais plasmadas nas obras. O facto de McKee ser mais artesão que académico, dá-lhe um acesso à arte do fazer absolutamente invejável. Neste segundo livro McKee dedica-se a desconstruir a arte do diálogo nas suas mais variadas estruturas, sistemas e lógicas, usando exemplos amplos e variados para expor as suas teorizações, que vão desde o teatro à televisão, passando pelo cinema. Os casos apresentados, e desmontados, são brilhantemente dissecados, como se despisse os filmes de toda a sua envolvência plástica e nos apresentasse os nós da narrativa completamente nus, dando conta daquilo que considera mais importante no diálogo — o subtexto — ou “the double dimension of dialogue—the outer aspect of what is said versus the inner truth of what is thought and felt.” .

Simultaneamente McKee não deixa de tecer comentários e justificativas sobre o efeito plástico do medium, nomeadamente sobre as diferenças nas capacidades de cada um dos media, o que torna o livro imensamente relevante para todos aqueles que trabalham o âmbito do transmedia.
O trabalho de McKee acaba sendo bastante académico, ainda que metodologicamente siga uma via pouco comum, já que como revela, o método seguido é o de apresentar ideias às suas audiências de criadores, com quem vai depurando e filtrando até que condigam com um sentir da maior parte dos criativos. Na verdade, e tendo em conta tratar-se de arte, o método é profundamente académico, e se serve quem procura fórmulas, ou modelos, para chegar ao maior número de pessoas, acaba afastando aqueles que andam à procura de autenticidade ou da subversão do status quo.
O livro apresenta-se em 4 partes, sendo a primeira de domínio mais académico, no qual é exposto toda a sua teorização sobre a arte do diálogo, e diga-se, a parte que mais me interessou. Depois temos três partes dedicadas a conselhos sobre problemas nos diálogos, sobre o tratamento do diálogo em função dos personagens, e por fim a desconstrução de várias cenas no seu design de diálogo. Vou deixar aqui uma síntese da primeira parte, e aconselho vivamente a leitura de uma entrevista para a Creative Screenwriting na qual ele dá conta de algumas das ideias aqui discutidas:


1 – DEFINIÇÃO do DIÁLOGO, por McKee

Este ponto começa por ser desde logo inovador, não porque McKee olha para todos os media narrativos, mas porque McKee resolve estender totalmente a relevância do Diálogo, e ao fazê-lo eu não podia estar mais de acordo, uma vez que segue completamente o sentido da Pragmática da Comunicação.
“Tradition defines dialogue as talk between characters. I believe, however, that an all-encompassing, in-depth study of dialogue begins by stepping back to the widest possible view of storytelling. From that angle, the first thing I notice is that character talk runs along three distinctly different tracks: said to others, said to oneself, and said to the reader or audience.
“I place these three modes of talk under the term “dialogue” for two reasons: First, no matter when, where, and to whom a character speaks, the writer must personalize the role with a unique, character-specific voice worded in the text. Second, whether mental or vocal, whether thought inside the mind or said out into the world, all speech is an outward execution of an inner action. All talk responds to a need, engages a purpose, and performs an action. No matter how seemingly vague and airy a speech may be, no character ever talks to anyone, even to himself, for no reason, to do nothing. Therefore, beneath every line of character talk, the writer must create a desire, intent, and action. That action then becomes the verbal tactic we call dialogue.”
“To say something is to do something, and for that reason, I have expanded my redefinition of dialogue to name any and all words said by a character to herself, to others, or to the reader/audience as an action taken to satisfy a need or desire. In all three cases, when a character speaks, she acts verbally as opposed to physically”
Para explanar melhor esta definição, McKee apresenta uma diferença entre Dramatização e Narrativização de diálogo, entre o diálogo realizado dentro da cena (dramatizado) e aquele exterior à cena — o monologo ou a fala para o leitor/espectador — (narrativizado). Para se compreender esta distinção, McKee faz o que sabe melhor fazer, pega num pequeno diálogo, e dá-o a ler nas 3 formas: "said to oneself", "said to others", "said to the reader". Deixo apenas primeiros parágrafos do exercício.
1) “Dreams run like streams.” Hoary proverbial wisdom, I know you well. And in reality most of what one dreams is not worth a second thought—loose fragments of experience, often the silliest and most indifferent fragments of those things consciousness has judged unworthy of preservation but which, even so, go on living a shadow life of their own in the attics and box-rooms of the mind. But there are other dreams.”
2) “Dreams run like streams.” A proverb I know you’ve heard. Don’t believe it. Most of what we dream isn’t worth a second thought. These fragments of experience are the silly, indifferent things our consciousness judges unworthy. Even so, in the attic of your mind they go on living a shadow life. That’s unhealthy. But some dreams are useful. ”
3) “Glas and Markel sit in a café. As dusk turns to night, they sip after-dinner brandies.
GLAS: Do you know the proverb “Dreams run like streams”?
MARKEL: Yes, my grandmother always said that, but in reality, most dreams are just fragments of the day, not worth keeping.
GLAS: Worthless as they are, they live shadow lives in the attic of the mind.
MARKEL: In your mind, Doctor, not mine.
GLAS: But don’t you think dreams give us insights?”

O Dialogo e o Medium
Ainda na definição, McKee dedica uma boa parte à discussão do efeito do media no uso do tipo de diálogo,
“All dialogue, dramatized and narratized, performs in the grand symphony of story, but from stage to screen to page, its instruments and arrangements vary considerably. For that reason, a writer’s choice of medium greatly influences the composition of dialogue—its quantities and qualities. The theatre, for example, is primarily an auditory medium. It prompts audience members to listen more intently than they watch. As a result, the stage favors voice over image” [assim, cabe ao som transportar a maior parte do diálogo, ou informação, 80/20]. Cinema reverses that. Film is primarily a visual medium. It prompts the audience to watch more intently than it listens. For that reason, screenplays favor image over voice. [Cabe a imagem a maior parte do diálogo: 80/20]. The aesthetics of television float between the theatre and cinema. Teleplays tend to balance voice and image, inviting us to look and listen more or less equally. [Imagem/som: 50/50]. Prose is a mental medium. Whereas stories performed onstage and onscreen strike the audience’s ears and eyes directly, literature takes an indirect path through the reader’s mind.” [Por isso não existe regra, tanto pode ser dramatizado como narrativizado.]

2 – AS 3 FUNÇÕES DO DIÁLOGO

“Dialogue, dramatized and narratized, performs three essential functions: exposition, characterization, action.” 

2.1. Exposition 
“Is a term of art that names the fictional facts of setting, history, and character that readers and audiences need to absorb at some point so they can follow the story and involve themselves in its outcome. A writer can embed exposition in the telling in only one of two ways: description or dialogue.”
“Onstage and onscreen, directors and their designers interpret the writer’s descriptions into every expressive element that isn’t dialogue: settings, costumes, lighting, props, sound effects, and the like. Comic book artists and graphic novelists illustrate their stories as they tell them. Prose authors compose literary descriptions that project word-images into the reader’s imagination.”
A exposição é ainda responsável por vários parâmetros da construção narrativa, vitais para a construção de cenas que garantam o total envolvimento do espectador/leitor: “pacing and timing”; “showing versus telling”; “narrative drive”; “exposition as ammunition”; “revelations”; “direct telling”; “forced exposition”. Destes todos, deixo uma das mais relevantes para compreender o que está a acontecer no processo de contar uma história:
“Narrative drive is a side effect of the mind’s engagement with story. Change and revelations incite the story-goer to wonder, “What’s going to happen next? What’s going to happen after that? How will this turn out?” As pieces of exposition slip out of dialogue and into the background awareness of the reader or audience member, her curiosity reaches ahead with both hands to grab fistfuls of the future to pull her through the telling. She learns what she needs to know when she needs to know it, but she’s never consciously aware of being told anything, because what she learns compels her to look ahead.”
2.2. Characterization
“The second function of dialogue is the creation and expression of a distinctive characterization for each character in the cast. Human nature can be usefully divided into two grand aspects: appearance (who the person seems to be) versus reality (who the person actually is).”

Deste modo o desenvolvimento de personagens obriga-nos a criar duas facetas: o verdadeiro personagem, e a sua caracterização. A primeira diz respeito aos momentos de tensão e escolha, momentos no qual percebemos que tipo de pessoa é, os valores que se levantam e falam por si, a sua dignidade ou ausência dela. Já para a caracterização McKee apresenta três parâmetros:
“1) To intrigue. The reader/audience knows that a character’s appearance is not her reality, that her characterization is a persona, a mask of personality suspended between the world and the true character behind it (..) Having hooked the reader/audience’s curiosity, the story becomes a series of surprising revelations that answer these questions.”
“2) To convince. A well-imagined, well-designed characterization assembles capacities (mental, physical) and behaviors (emotional, verbal) that encourage the reader/audience to believe in a fictional character as if she were factual.”
“3) To individualize. A well-imagined, well-researched characterization creates a unique combination of biology, upbringing, physicality, mentality, emotionality, education, experience, attitudes, values, tastes, and every possible nuance of cultural influence that has given the character her individuality (..) And the most important trait of all: talk. She speaks like no one we have ever met before.”
2.3. Action 
“Dialogue’s third essential function is to equip characters with the means for action. Stories contain three kinds of action: mental, physical, and verbal. (..) Mental Action: Words and images compose thoughts, but a thought does not become a mental action until it causes change within a character. (..)Physical Action: Physical action comes in two fundamental kinds: gestures and tasks. (..)Verbal Action: As novelist Elizabeth Bowen put it, “Dialogue is what characters do to each other.” (..) Therefore, before writing a line, ask these questions: What does my character want out of this situation? At this precise moment, what action would he take in an effort to reach that desire? What exact words would he use to carry out that action?”


3 – EXPRESSIVIDADE

O terceiro ponto do método de McKee apresenta-se na desconstrução da expressividade, que McKee faz em três frentes diferentes: conteúdo, forma e técnica.

3.1 Conteúdo
“As you compose dialogue, I think it’s useful to imagine character design as three concentric spheres, one inside the other—a self within a self within a self. This three-tiered complex fills dialogue with content of thought and feeling while shaping expression in gesture and word. The innermost sphere churns with the unsayable; the middle sphere restrains the unsaid; the outer sphere releases the said.”
Aqui entramos pelos reinos da interpretação narrativa adentro, com McKee a levar consigo todas as ferramentas da pragmática e semiótica para ajudar no suporte à construção por via da desconstrução e interpretação que cada leitor faz do que vai enfrentando e construindo mentalmente.

The Said: “The surface level of things said supports the more or less solid meanings that words, spoken or written, directly express with both denotations and connotations.
The Unsaid: “A second sphere, the unsaid, revolves within a character. From this inner space the self gazes out at the world. As thoughts and feelings form at this level, the self deliberately withholds them.”
The Unsayable: “Deepest yet, concealed beneath the unsaid, the sphere of the unsayable roils with subconscious drives and needs that incite a character’s choices and actions.”

Isto permite McKee chegar à essência do que tem para dizer e definer:

Text and Subtext
“Text means the surface of a work of art and its execution in its medium: paint on canvas, chords from a piano, steps by a dancer. In the art of story, text names the words on the page of a novel, or the outer life of character behavior in performance—what the reader imagines, what an audience sees and hears. In the creation of dialogue, text becomes the said, the words the characters actually speak.
Subtext names the inner substance of a work of art—the meanings and feelings that flow below the surface. In life, people “speak” to each other, as it were, from beneath their words. A silent language flows below conscious awareness. In story, subtextual levels enclose the hidden life of characters’ thoughts and feelings, desires and actions, both conscious and subconscious—the unsaid and unsayable.”
3.2 Forma
“The qualities and quantities of dialogue vary with the levels of conflict used in the storytelling (..) Conflict disrupts our lives from any one of four levels: the physical (time, space, and everything in it), the social (institutions and the individuals in them), the personal (relationships of intimacy—friends, family, lovers), and the private (conscious and subconscious thoughts and feelings). The difference between a complicated story and a complex story, between a story with minimum dialogue versus maximum dialogue, hinges on the layers of conflict the writer chooses to dramatize.”

3.2 Technique
“Figurative devices range from metaphor, simile, synecdoche, and metonymy to alliteration, assonance, oxymoron, personification, and beyond. In fact, the list of all linguistic tropes and ploys numbers in the hundreds. These turns of phrase not only enrich what’s said, but also send connotations of meaning resonating into the subtexts of the unsaid and unsayable as well.”
Neste ponto McKee aprofunda questões de paralinguagem, de design de informação — suspense, cumulativo, balanceado — economia (dizer o máximo com o mínimo), pausa e a necessidade do silencio

O livro continua com todo um trabalho de desconstrução e depuração de técnicas — com cenas de "The Sopranos", "The Great Gatsby", "Lost in Translation" ou ainda "O Museu da Inocência" de Pamuk—, através do que McKee partilha uma imensidade de conhecimento sobre a arte do diálogo mas também sobre a arte da narrativa e sua relevância para o ser humano. Para muitos o livro soará formulaico, para mim soa metódico, imensamente sistematizado algo que não é comum nas artes. Diria que McKee, ao usar esta abordagem também já no "Story" foi um dos grandes percursores daquilo que hoje qualificamos como Narrative Design.

Fica uma nota final, a versão audiobook é narrada pelo próprio McKee, o que adiciona toda uma outra camada de interesse à leitura via audio.

outubro 29, 2017

O Cérebro Narrativo

Damásio não se cansa de tentar fazer avançar o conhecimento no domínio da consciência, do conhecimento de si, em particular do modo como compreendemos o mundo e a nós mesmos. No estudo “Decoding the Neural Representation of Story Meanings across Languages” (2017), agora publicado na revista Human Brain Mapping, a sua equipa apresenta pela primeira vez, evidências empíricas da existência de estruturas narrativas no nosso cérebro, que se podem encontrar de modo universal nos seres humanos, operando indistintamente em múltiplas línguas, sendo ativadas tanto por meio de histórias orais como escritas, e à partida também audiovisuais.



Não é de agora que se suspeita que existe em nós uma predisposição para estruturar a informação em blocos narrativos, ou seja, criar pedaços de histórias para dar sentido à realidade e mais facilmente memorizar a mesma. Joseph Campbell (1949) apesar de trabalhar em Antropologia e se ter socorrido da Mitologia e da Psicanálise, chegou a afirmar algo como: as histórias estão interligadas com aquilo que somos e desejamos ser. No início dos anos 1980 Walter Fischer defendia a existência de um "paradigma narrativo" que estava na base de toda a comunicação humana, sem o qual não nos entenderíamos uns aos outros. Desde o aparecimento das neurociências que muitos estudos têm sido dedicados a estudar o modo como compreendemos a realidade, e a tentativa por entender o modo como contamos histórias tem sido um dos vetores dessas abordagens.

São múltiplos os estudos que têm sido realizados para compreender o poder do ato de contar histórias e que tem invadido o discurso em quase todas as áreas. [Infografia da OneSpot a partir de dados coligidos por Widrich (2016)].

Ora a estrutura que parece operar as histórias no nosso cérebro é designada como “default mode network” (DMN) tendo sido inicialmente identificada como “"resting state" network that shows high baseline activity when people are asked to rest without engaging in any specific externally-focused task [Raichle and Snyder, 2007; Raichle, 2015].”. Esta estrutura crê-se estar na base de “such cognitive processes as mind-wandering [Smallwood and Schooler, 2015], thinking about one’s self [Qin and Northoff, 2011], remembering the past and imagining the future [Østby et al., 2012], and in general to support stimulus-independent thought [Smallwood et al., 2013].” Por outro lado “the activity in the DMN is consistent when a story is presented in different modalities (spoken vs. written), or in different languages (Russian vs. English to native speakers of these languages), indicating highly abstracted representations of the stimuli in this network [Chen et al., 2017; Honey et al., 2012; Regev et al., 2013; Zadbood et al., 2016].” Num outro estudo realizado por Chen et al. (2017) foi possível encontrar também “evidence that there are shared patterns of activity in the DMN across participants when describing scenes from an audiovisual story”.

Ou seja, os vários trabalhos vêm demonstrando que vamos para além da mera operação sintática — forma das letras e palavras — assim como da mera análise semântica —  sentido das frases, sendo capazes de operar a um nível narrativo, ou “alto-nível semântico”. Isto é, “abstracted beyond the level of independent concepts and language units, the brain seems to systematically encode high-level narrative elements”. Ou seja, trabalhamos por meio do DMN as palavras e os seus sentidos para simular histórias mentais, para assim compreendermos o que nos está a chegar por via dos sentidos. Mas como se diz acima, isto não trabalha apenas com os sentidos, isto trabalha de modo quase-contínuo em nós, alternando com o modo cognitivo de foco (em que exigimos toda a nossa capacidade cognitiva para realizar uma tarefa) operando como uma espécie de máquina de “sonhar acordado”, que nos vai oferecendo pontos de vista sobre o mundo, e sobre nós próprios pela interação com o mundo externo, assim como pela interação entre pedaços de informações provindas de experiências do passado, memorizadas em nós.

Neste sentido quando acedemos a histórias exteriores a nós, pelo facto de usarem a mesma estrutura organizativa que o cérebro utiliza para as simular, recorremos a toda uma “cognitive architecture” que realiza um “stitch together individual words, link events with their causes, and remember what came before to build a holistic understanding”. Isto explica porque é tão fácil conectarmo-nos com o que vai sendo contado, e em certa medida, porque ouvir ou ler uma história, não se diferencia muito de sonhar acordado, o que acaba por dar suporte ao sentimento de “imersão” ou de “perder-se numa história”, o sentimento de esquecimento do mundo real à nossa volta.

No final, a equipa de Damásio veio dar razão a muito daquilo que sempre soubemos: que gostamos de histórias porque o nosso cérebro passa a vida a contar histórias a si próprio; ou ainda que as histórias servem para enquadrar a realidade e compreendê-la, não apenas os seus acontecimentos e os seus mundos, mas mais ainda em particular, as suas personagens, que usamos como modelos para nos colocar no lugar de, para simular e empatizar, para no fim de tudo, aprender.


Nota: Tendo o trabalho sido desenvolvido por uma equipa considerável, é muito interessante ver como no final surge apresentada a divisão de trabalho efetivo realizado por cada um dos membros da equipa. Talvez seja prática em certos domínios, mas julgo que seria algo a implementar em todas as publicações científicas.

Todos os excertos inglês retirados do artigo:
Dehghani, M., Boghrati, R., Man, K., Hoover, J., Gimbel, S. I., Vaswani, A., Zevin, J. D., Immordino-Yang, M. H., Gordon, A. S., Damasio, A. and Kaplan, J. T. (2017), Decoding the neural representation of story meanings across languages. Hum. Brain Mapp.. doi:10.1002/hbm.23814

fevereiro 17, 2016

Criar histórias originais

Não faltam definições sobre o conceito de história, sobre o que a constitui, o seu design, a sua forma, como criar mundos, sobre a sua escrita, sobre a aplicação nos jogos, ou ainda sobre o seu futuro, nos últimos anos o interesse da sociedade em geral pelas histórias explodiu, tornando a discussão em seu redor uma constante. Nesse sentido o pequeno filme que aqui trago hoje é mais um desses trabalhos, mas não é apenas mais um, é um trabalho feito com muita paixão pela arte que conta com o contributo de um apaixonado pela criação de histórias, George Saunders.




Saunders é um escritor americano de pequenas histórias que publica o seu trabalho normalmente em revistas como a New Yorker, Harper’s Magazine ou a Esquire, tendo ganho já o National Magazine Award por quatro vezes. Por ser escritor de pequenas histórias, passa mais vezes pelo processo de iniciar uma nova história que os escritores de romances, sendo através dessa sua experiência que nos conta como decorre o processo para chegar à história.
"the better state in my experience is to have some idea what the story is, and sometimes it’s just the tiniest kernel of something that you enjoyed writing. Then once you put it down on the page and write it and rewrite it, it’s actually your own discontent with it that in some slow mysterious way urges it to that higher ground. And often it’ll do so in ways that surprise you." George Saunders
O processo aqui descrito por Saunders é tão simples que pode a alguns servir de desencanto, mas é no fundo o processo base da generalidade das construções criativas. Agitar o pensamento, começar num ponto e ir seguindo o mesmo por forma a deixar o nosso não-consciente contribuir também para a elaboração. Saunders é peremptório neste processo, “a bad story is one where you know what the story is and you're sure of it”, ou seja, o modo de chegar ao original, à essência da criação, é pela libertação e audição do “sentir” interno.
"I think that a good story is one that says, at many different levels, we’re both human beings, we’re in this crazy situation called life that we don’t really understand, can we put our heads together and confer about it a little bit at a very high non-bullshitty level? Then all kinds of magic can happen." George Saunders
O documentário foi criado pela Redglass Pictures e produzido por Ken Burns, o documentarista que sintetizou o storytelling como "1+1=3". O filme estreou no final do ano passado no The Atlantic.

"George Saunders: On Story" (2015) de Tom Mason e Sarah Klein