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junho 04, 2023

Fukushima dramatizada

"The Days" (2023) é a mais recente série da Netflix. Conta a história do acidente da central nuclear de Fukushima, Japão, provocado por um terramoto seguido de tsunami, ocorridos em 2011. Em termos técnicos não está, de todo, ao nível de "Chernobyl" (2019), no entanto enquanto drama documental faz muitíssimo bem o seu trabalho, usando uma estética marcadamente japonesa, que a partir do 3º episódio se torna impossível parar de ver.

fevereiro 05, 2023

"Kaleidoscope" (2023)

"Kaleidoscope" (2023) usa uma abordagem distinta, definida como "Non-Linear Streaming Experience", em que cada espectador vê os primeiros 7 episódios numa ordem diferente, sendo o último episódio igual para todos, o do assalto ao banco. 


Enquanto série, é mediana. Interessante, mas com personagens poucos estruturados e ações pouco credíveis.

Como experiência, a aleatoriedade não oferece nada aos espectadores. Ver na ordem sugerida pela Netflix, acaba sendo a ordem para nós normal. Talvez vendo uma segunda vez, pudesse produzir um impacto distinto. Mas isso a acontecer só daqui a alguns anos. Na partilha com outras pessoas, também não vejo ganhos, já que além do final ser o mesmo para todos, os episódios são todos vistos, apenas muda a ordem.
 
Fica a admiração pelo virtuosismo no design da narrativa dos 8 episódios, e pouco mais.

julho 18, 2022

Na Minha Pele, uma série TV

Como se cresce e vai à escola com uma mãe que sofre de desordem bipolar tipo 1 (a mais grave) e um pai alcoólico que não trabalha, em Inglaterra, quando se tem 16 anos? É esta a premissa da série "In My Skin" que cruza comédia-negra com tragédia, e nos obriga a mudar de humor múltiplas vezes ao longo de cada episódio de 30 minutos dos 5 que constituem a série, sem contudo nos darmos conta disso. Esta abordagem narrativa cria um espelho da doença mental e aproxima-nos do interior da personagem principal, que é baseada na vida da criadora da série, Kayleigh Llewellyn.


janeiro 05, 2020

“The Leftovers” (2014)

Ao acabar a primeira temporada de “The Leftovers” estava estupefacto com a escrita. Puro malabarismo thriller, só conseguia pensar em "S.", "Annihilation" ou “Lost”, e em todas as séries que se baseiam em grandes eventos inexplicáveis — como “Flashforward” ou “Under the Dome” — e nos agarram, e nos prendem, mesmo sabendo nós que não existem respostas. Entretanto percebi que o cocriador de “The Leftovers” tinha sido também o cocriador de “Lost”, Damon Lindelof, e que a série vinha recomendada pelo próprio Stephen King.  Como é que se consegue criar assim? A partir de tão pouco parecer dizer tanto, como se o dissesse diretamente a cada um dos espetadores, premindo os seus botões emocionais, mantendo-os ali presos ao fio narrativo, sabendo estes que nada há ali? Ajuda imenso a partitura de Max Richter que parece tudo fazer levitar e conduzir para um desejar acreditar, para entrar no mundo da série para sentir, sentir, sentir...
A principal técnica de escrita aqui usada é o mistério, tal como JJ Abrams revelou na sua TED, nada mais importa ao leitor/espectador. O virtuosismo assenta no conseguir apresentar o mistério de forma credível e levá-lo até ao limite, obrigando o recetor a imaginar tudo aquilo que é o seu próprio mundo, dentro do espaço que o autor lhe oferece. É isso que torna a abordagem tão emocionalmente poderosa, a dotação de carga pessoal.

Por outro lado, quando colamos o mistério ao sentido da vida humana tudo ganha outra dimensão, e é isso que tão brilhantemente foi feito aqui. Não existem respostas, porque não podem existir, tudo é um jogo, tudo é um questionamento contínuo, sem fim, aconteçam as coisas mais bizarras, ad hoc, aleatórias que aconteçam é a vida a ser apenas a vida... poderia escrever sem fim, e andaria sempre a volta disto, porque daqui não conseguimos sair, e por isso o melhor será deixar-vos com um conjunto de palavras que acabo de ler na Esquire, a propósito da temporada 3, mas que dão conta do que senti no final desta primeira temporada:
“Part of our human experience on this planet is finding peace in an existence defined by the unknown. Although we may seek calm in religion, in science, we'll never know the answers to those existential questions which have driven humanity since they crawled out of caves. Yes, we've unlocked a deeper understanding of physics and chemistry and comfort in Christianity or Buddhism, but that greater question—"why?"—will always be there.
The Leftovers never set out to answer these bigger questions. It's a TV show—that would be ridiculous. Instead, The Leftovers was about the journey that we all experience in contemplating mortality, confusion, religion, loss, grief, and our own mind.” Matt Miller, in Esquire, (2017)

setembro 29, 2019

Diálogo: A Arte da Ação Verbal

Robert McKee é uma das maiores autoridades do guionismo de Hollywood, sendo o seu livro “Story: Substance, Structure, Style and the Principles of Screenwriting” (1997) considerado uma espécie de bíblia para quem escreve para o meio audiovisual. “Dialogue: The Art of Verbal Action for Page, Stage, and Screen” (2016) é assim além da sua primeira publicação em 20 anos, um verdadeiro sucessor de “Story”, capaz de aprofundar toda a componente da escrita de diálogo. Entretanto McKee passou todos estes anos envolvido nos seus famosos workshops, aquilo que confessa mais gostar de fazer porque segundo ele“Life is absurd. But there is one meaningful thing, one inarguable thing, and that is that there is suffering. Fine writing helps alleviate that suffering – and anything that puts meaning and beauty into the world in the form of story, helps people to live with more peace and purpose and balance, is deeply worthwhile.” 



É interessante ver como as reações ao livro se dividem entre acusações de academismo e falta dele. McKee é um brilhante analista de histórias, nos mais variados meios, o que faz com que não raras vezes se exceda e entre em processos de sistematização de ideias, conceitos e argumentos que não são muito úteis a quem escreve. Contudo, para académicos como eu, são autênticas pepitas, porque provêm de um olhar único, que funciona como um microscópio de aumento das teias narrativas e sociais plasmadas nas obras. O facto de McKee ser mais artesão que académico, dá-lhe um acesso à arte do fazer absolutamente invejável. Neste segundo livro McKee dedica-se a desconstruir a arte do diálogo nas suas mais variadas estruturas, sistemas e lógicas, usando exemplos amplos e variados para expor as suas teorizações, que vão desde o teatro à televisão, passando pelo cinema. Os casos apresentados, e desmontados, são brilhantemente dissecados, como se despisse os filmes de toda a sua envolvência plástica e nos apresentasse os nós da narrativa completamente nus, dando conta daquilo que considera mais importante no diálogo — o subtexto — ou “the double dimension of dialogue—the outer aspect of what is said versus the inner truth of what is thought and felt.” .

Simultaneamente McKee não deixa de tecer comentários e justificativas sobre o efeito plástico do medium, nomeadamente sobre as diferenças nas capacidades de cada um dos media, o que torna o livro imensamente relevante para todos aqueles que trabalham o âmbito do transmedia.
O trabalho de McKee acaba sendo bastante académico, ainda que metodologicamente siga uma via pouco comum, já que como revela, o método seguido é o de apresentar ideias às suas audiências de criadores, com quem vai depurando e filtrando até que condigam com um sentir da maior parte dos criativos. Na verdade, e tendo em conta tratar-se de arte, o método é profundamente académico, e se serve quem procura fórmulas, ou modelos, para chegar ao maior número de pessoas, acaba afastando aqueles que andam à procura de autenticidade ou da subversão do status quo.
O livro apresenta-se em 4 partes, sendo a primeira de domínio mais académico, no qual é exposto toda a sua teorização sobre a arte do diálogo, e diga-se, a parte que mais me interessou. Depois temos três partes dedicadas a conselhos sobre problemas nos diálogos, sobre o tratamento do diálogo em função dos personagens, e por fim a desconstrução de várias cenas no seu design de diálogo. Vou deixar aqui uma síntese da primeira parte, e aconselho vivamente a leitura de uma entrevista para a Creative Screenwriting na qual ele dá conta de algumas das ideias aqui discutidas:


1 – DEFINIÇÃO do DIÁLOGO, por McKee

Este ponto começa por ser desde logo inovador, não porque McKee olha para todos os media narrativos, mas porque McKee resolve estender totalmente a relevância do Diálogo, e ao fazê-lo eu não podia estar mais de acordo, uma vez que segue completamente o sentido da Pragmática da Comunicação.
“Tradition defines dialogue as talk between characters. I believe, however, that an all-encompassing, in-depth study of dialogue begins by stepping back to the widest possible view of storytelling. From that angle, the first thing I notice is that character talk runs along three distinctly different tracks: said to others, said to oneself, and said to the reader or audience.
“I place these three modes of talk under the term “dialogue” for two reasons: First, no matter when, where, and to whom a character speaks, the writer must personalize the role with a unique, character-specific voice worded in the text. Second, whether mental or vocal, whether thought inside the mind or said out into the world, all speech is an outward execution of an inner action. All talk responds to a need, engages a purpose, and performs an action. No matter how seemingly vague and airy a speech may be, no character ever talks to anyone, even to himself, for no reason, to do nothing. Therefore, beneath every line of character talk, the writer must create a desire, intent, and action. That action then becomes the verbal tactic we call dialogue.”
“To say something is to do something, and for that reason, I have expanded my redefinition of dialogue to name any and all words said by a character to herself, to others, or to the reader/audience as an action taken to satisfy a need or desire. In all three cases, when a character speaks, she acts verbally as opposed to physically”
Para explanar melhor esta definição, McKee apresenta uma diferença entre Dramatização e Narrativização de diálogo, entre o diálogo realizado dentro da cena (dramatizado) e aquele exterior à cena — o monologo ou a fala para o leitor/espectador — (narrativizado). Para se compreender esta distinção, McKee faz o que sabe melhor fazer, pega num pequeno diálogo, e dá-o a ler nas 3 formas: "said to oneself", "said to others", "said to the reader". Deixo apenas primeiros parágrafos do exercício.
1) “Dreams run like streams.” Hoary proverbial wisdom, I know you well. And in reality most of what one dreams is not worth a second thought—loose fragments of experience, often the silliest and most indifferent fragments of those things consciousness has judged unworthy of preservation but which, even so, go on living a shadow life of their own in the attics and box-rooms of the mind. But there are other dreams.”
2) “Dreams run like streams.” A proverb I know you’ve heard. Don’t believe it. Most of what we dream isn’t worth a second thought. These fragments of experience are the silly, indifferent things our consciousness judges unworthy. Even so, in the attic of your mind they go on living a shadow life. That’s unhealthy. But some dreams are useful. ”
3) “Glas and Markel sit in a café. As dusk turns to night, they sip after-dinner brandies.
GLAS: Do you know the proverb “Dreams run like streams”?
MARKEL: Yes, my grandmother always said that, but in reality, most dreams are just fragments of the day, not worth keeping.
GLAS: Worthless as they are, they live shadow lives in the attic of the mind.
MARKEL: In your mind, Doctor, not mine.
GLAS: But don’t you think dreams give us insights?”

O Dialogo e o Medium
Ainda na definição, McKee dedica uma boa parte à discussão do efeito do media no uso do tipo de diálogo,
“All dialogue, dramatized and narratized, performs in the grand symphony of story, but from stage to screen to page, its instruments and arrangements vary considerably. For that reason, a writer’s choice of medium greatly influences the composition of dialogue—its quantities and qualities. The theatre, for example, is primarily an auditory medium. It prompts audience members to listen more intently than they watch. As a result, the stage favors voice over image” [assim, cabe ao som transportar a maior parte do diálogo, ou informação, 80/20]. Cinema reverses that. Film is primarily a visual medium. It prompts the audience to watch more intently than it listens. For that reason, screenplays favor image over voice. [Cabe a imagem a maior parte do diálogo: 80/20]. The aesthetics of television float between the theatre and cinema. Teleplays tend to balance voice and image, inviting us to look and listen more or less equally. [Imagem/som: 50/50]. Prose is a mental medium. Whereas stories performed onstage and onscreen strike the audience’s ears and eyes directly, literature takes an indirect path through the reader’s mind.” [Por isso não existe regra, tanto pode ser dramatizado como narrativizado.]

2 – AS 3 FUNÇÕES DO DIÁLOGO

“Dialogue, dramatized and narratized, performs three essential functions: exposition, characterization, action.” 

2.1. Exposition 
“Is a term of art that names the fictional facts of setting, history, and character that readers and audiences need to absorb at some point so they can follow the story and involve themselves in its outcome. A writer can embed exposition in the telling in only one of two ways: description or dialogue.”
“Onstage and onscreen, directors and their designers interpret the writer’s descriptions into every expressive element that isn’t dialogue: settings, costumes, lighting, props, sound effects, and the like. Comic book artists and graphic novelists illustrate their stories as they tell them. Prose authors compose literary descriptions that project word-images into the reader’s imagination.”
A exposição é ainda responsável por vários parâmetros da construção narrativa, vitais para a construção de cenas que garantam o total envolvimento do espectador/leitor: “pacing and timing”; “showing versus telling”; “narrative drive”; “exposition as ammunition”; “revelations”; “direct telling”; “forced exposition”. Destes todos, deixo uma das mais relevantes para compreender o que está a acontecer no processo de contar uma história:
“Narrative drive is a side effect of the mind’s engagement with story. Change and revelations incite the story-goer to wonder, “What’s going to happen next? What’s going to happen after that? How will this turn out?” As pieces of exposition slip out of dialogue and into the background awareness of the reader or audience member, her curiosity reaches ahead with both hands to grab fistfuls of the future to pull her through the telling. She learns what she needs to know when she needs to know it, but she’s never consciously aware of being told anything, because what she learns compels her to look ahead.”
2.2. Characterization
“The second function of dialogue is the creation and expression of a distinctive characterization for each character in the cast. Human nature can be usefully divided into two grand aspects: appearance (who the person seems to be) versus reality (who the person actually is).”

Deste modo o desenvolvimento de personagens obriga-nos a criar duas facetas: o verdadeiro personagem, e a sua caracterização. A primeira diz respeito aos momentos de tensão e escolha, momentos no qual percebemos que tipo de pessoa é, os valores que se levantam e falam por si, a sua dignidade ou ausência dela. Já para a caracterização McKee apresenta três parâmetros:
“1) To intrigue. The reader/audience knows that a character’s appearance is not her reality, that her characterization is a persona, a mask of personality suspended between the world and the true character behind it (..) Having hooked the reader/audience’s curiosity, the story becomes a series of surprising revelations that answer these questions.”
“2) To convince. A well-imagined, well-designed characterization assembles capacities (mental, physical) and behaviors (emotional, verbal) that encourage the reader/audience to believe in a fictional character as if she were factual.”
“3) To individualize. A well-imagined, well-researched characterization creates a unique combination of biology, upbringing, physicality, mentality, emotionality, education, experience, attitudes, values, tastes, and every possible nuance of cultural influence that has given the character her individuality (..) And the most important trait of all: talk. She speaks like no one we have ever met before.”
2.3. Action 
“Dialogue’s third essential function is to equip characters with the means for action. Stories contain three kinds of action: mental, physical, and verbal. (..) Mental Action: Words and images compose thoughts, but a thought does not become a mental action until it causes change within a character. (..)Physical Action: Physical action comes in two fundamental kinds: gestures and tasks. (..)Verbal Action: As novelist Elizabeth Bowen put it, “Dialogue is what characters do to each other.” (..) Therefore, before writing a line, ask these questions: What does my character want out of this situation? At this precise moment, what action would he take in an effort to reach that desire? What exact words would he use to carry out that action?”


3 – EXPRESSIVIDADE

O terceiro ponto do método de McKee apresenta-se na desconstrução da expressividade, que McKee faz em três frentes diferentes: conteúdo, forma e técnica.

3.1 Conteúdo
“As you compose dialogue, I think it’s useful to imagine character design as three concentric spheres, one inside the other—a self within a self within a self. This three-tiered complex fills dialogue with content of thought and feeling while shaping expression in gesture and word. The innermost sphere churns with the unsayable; the middle sphere restrains the unsaid; the outer sphere releases the said.”
Aqui entramos pelos reinos da interpretação narrativa adentro, com McKee a levar consigo todas as ferramentas da pragmática e semiótica para ajudar no suporte à construção por via da desconstrução e interpretação que cada leitor faz do que vai enfrentando e construindo mentalmente.

The Said: “The surface level of things said supports the more or less solid meanings that words, spoken or written, directly express with both denotations and connotations.
The Unsaid: “A second sphere, the unsaid, revolves within a character. From this inner space the self gazes out at the world. As thoughts and feelings form at this level, the self deliberately withholds them.”
The Unsayable: “Deepest yet, concealed beneath the unsaid, the sphere of the unsayable roils with subconscious drives and needs that incite a character’s choices and actions.”

Isto permite McKee chegar à essência do que tem para dizer e definer:

Text and Subtext
“Text means the surface of a work of art and its execution in its medium: paint on canvas, chords from a piano, steps by a dancer. In the art of story, text names the words on the page of a novel, or the outer life of character behavior in performance—what the reader imagines, what an audience sees and hears. In the creation of dialogue, text becomes the said, the words the characters actually speak.
Subtext names the inner substance of a work of art—the meanings and feelings that flow below the surface. In life, people “speak” to each other, as it were, from beneath their words. A silent language flows below conscious awareness. In story, subtextual levels enclose the hidden life of characters’ thoughts and feelings, desires and actions, both conscious and subconscious—the unsaid and unsayable.”
3.2 Forma
“The qualities and quantities of dialogue vary with the levels of conflict used in the storytelling (..) Conflict disrupts our lives from any one of four levels: the physical (time, space, and everything in it), the social (institutions and the individuals in them), the personal (relationships of intimacy—friends, family, lovers), and the private (conscious and subconscious thoughts and feelings). The difference between a complicated story and a complex story, between a story with minimum dialogue versus maximum dialogue, hinges on the layers of conflict the writer chooses to dramatize.”

3.2 Technique
“Figurative devices range from metaphor, simile, synecdoche, and metonymy to alliteration, assonance, oxymoron, personification, and beyond. In fact, the list of all linguistic tropes and ploys numbers in the hundreds. These turns of phrase not only enrich what’s said, but also send connotations of meaning resonating into the subtexts of the unsaid and unsayable as well.”
Neste ponto McKee aprofunda questões de paralinguagem, de design de informação — suspense, cumulativo, balanceado — economia (dizer o máximo com o mínimo), pausa e a necessidade do silencio

O livro continua com todo um trabalho de desconstrução e depuração de técnicas — com cenas de "The Sopranos", "The Great Gatsby", "Lost in Translation" ou ainda "O Museu da Inocência" de Pamuk—, através do que McKee partilha uma imensidade de conhecimento sobre a arte do diálogo mas também sobre a arte da narrativa e sua relevância para o ser humano. Para muitos o livro soará formulaico, para mim soa metódico, imensamente sistematizado algo que não é comum nas artes. Diria que McKee, ao usar esta abordagem também já no "Story" foi um dos grandes percursores daquilo que hoje qualificamos como Narrative Design.

Fica uma nota final, a versão audiobook é narrada pelo próprio McKee, o que adiciona toda uma outra camada de interesse à leitura via audio.

dezembro 28, 2018

Black Mirror Interativo

A Netflix juntou-se aos criadores de Black Mirror para nos oferecer, neste final de ano, "Bandersnatch" (2018), um episódio suportado em narrativa interativa. Não é a primeira experiência interativa da Netflix, mas é sem dúvida a sua maior aposta até agora no género. O facto de ser desenvolvida no âmbito da série "Black Mirror" não é um fator menor, já que o lado tecno-estranho da série se encaixa perfeitamente na ideia da aplicação de um sistema tecnológico a um formato clássico, o das séries de televisão. Mas Charlie Brooker, o criador da série e escritor deste episódio, não se limitou a explorar essa conexão, recuou no tempo nas suas memórias e encheu o episódio de referências intertextuais.


Em traços gerais, podemos dizer que temos três grandes temas — Anos 80, ZX Spectrum e Philip K. Dick (PKD) —, que por sua vez servem na geração de centenas de pequenas referências, que por um lado vão alimentando o nosso instinto lógico-cognitivo, e por outro nos vão massajando a nostalgia. No final dos 60-75 minutos, nem queremos acreditar que já estamos no final, queríamos mais, muito mais. Na verdade, uma hora é a duração normal do preâmbulo de um videojogo, e foi isso que senti no final de "Bandersnatch". Estava eu já ambientado e pronto a iniciar a experiência quando terminou. Valeram os replays finais em forma de epílogos, não fosse Brooker um enorme fã de videojogos.


Mais analiticamente. Talvez possamos considerar uma jogada suja, o facto de Brooker se ter socorrido de uma figura já mítica, PKD, já que funciona neste guião como verdadeiro Deus Ex-Machina. Apesar disso, Brooker coseu imensamente bem as pontas, a relação temática e as referências são muito bem balanceadas, capazes de criar uma dimensão própria para o filme, que por sua vez e com a ajuda da componente interativa, nos transporta para a mesma, e assim justifica plenamente a liberação do autor da causalidade do realismo. Em síntese, temos Brooker a brincar com as bases teóricas que suportam as narrativas interativas, não a mera quebra da 4ª parede, mas a quebra de sentido e lógica narrativa, pela colocação em causa do livre-arbítrio e do determinismo. E se isto se justifica por estarmos no formato de narrativa interativa, ainda mais justifica a entrada de PKD.
“It was a moment where we went, ‘Oh great that’s exciting, it’s a story that would only work in this way.’ Five minutes later we thought, ‘Oh shit, now we’ve got to do that, and it’s probably going to be complicated.’” Charlie Brooker, Wired, 28.11.2018
A abordagem escolhida, funcionado muito bem, tem o problema de ser irrepetível. Ou seja, não se pode dizer que o filme tenha aberto avenidas para mais episódios interativos. Por outro lado, temos uma obra que vale para além do mero género em que se encaixa, temos uma obra que não recordaremos pelas escolhas, mas porque nos impactou, porque nos fez pensar e sentir. Sobre tudo isto, temos ainda o facto de o filme estar disponível para mais de 130 milhões de espetadores no mundo, o que pode vir a contribuir para uma maior aceitação do género e assim potencialmente lançar a sua produção e consumo.

No campo mais técnico. Foi com enorme satisfação que descobri que Charlie Brooker escreveu o guião no Twine. Uma aplicação open-source criada para facilitar a criação de ficção interativa, que de tão simples tem a maior longevidade na área. Um dos maiores problemas da criação interativa tem sido desde sempre a falta de ferramentas que suportem a sua criação. Claro que o Twine serviu apenas para o guião, já que a Netflix foi obrigada a desenvolver toda uma nova aplicação de suporte à gestão dos trechos de filme que seguem totalmente o guião escrito por Brooker no Twine. Mas diga-se, funciona impecavelmente, como diz Brooker: “Seeing it work and work really smoothly has been quite odd. I found it almost emotional – as emotional as I get about anything, it was going to be something geeky”. Mais info por detrás da criação, leiam o texto da Wired.co.uk.


Para fechar, se ficaram com vontade de experimentar mais cinema interativo, posso recomendar vivamente "Late Shift" (2016) que podem ver na App Store ou na Playstation Store. Entretanto, se quiserem jogar o jogo que aparece no episódio, podem descarregar o mesmo do pseudo-site da TuckerSoft.


Leituras adicionais
How the Surprise New Interactive Black Mirror Came Together, Wired, 28.12.2018
The inside story of Bandersnatch, the weirdest Black Mirror tale yet, Wired.co.uk, 28.12.2018


Atualização 30.12.2018
Fluxograma completo de "Bandersnatch" (2018)

junho 21, 2018

A brecha na democracia dos EUA

A Fox News tornou-se no maior braço armado da Propaganda Trump, muito mais relevante que Fake News russas nas redes sociais, mais relevante até do que o apoio do próprio Partido Republicano. Tudo graças à imensamente hábil abordagem criada por Rupert Murdoch, senhor do tabloidismo, que vindo de trás se consolidou enormemente neste último ano.


O que temos então é um canal de televisão que se dá à estampa como Noticioso, Fox News, mas que na verdade não notícia, apenas cria entretenimento noticioso. Ao fazê-lo liberta-se das obrigações de factualidade para poder ficcionar de modo criativo. O principal efeito desta abordagem é a criação de um mundo alternativo, no qual os seus espetadores são completamente enredados, atirados para um limbo factual.

Ao longo dos últimos dois anos a Fox News dispensou os menos imaginativos e contratou as estrelas das redes sociais que apoiaram Trump à presidência, deste modo intensificou o seu poder ficcional, aumentando simultaneamente a credibilidade da realidade alternativa por via da união de vozes num mesmo coro, criando coerência e sentimento de grupo. A etiqueta de Notícias que deveria garantir factualidade e contraditório de perspectivas, não o garante, mantendo assim uma identidade apenas aparentemente noticiosa. O problema é que este modo quando usado para fins políticos é tenebroso pois arrisca-se a confinar totalmente os cidadãos. Não é por acaso que se criou todo um código de ética e deontologia no jornalismo.

Acresce a tudo isto o sobrenome Fox. Estamos a falar de um império secular de imaginário americano. Quem nos EUA duvida de algo com que cresceu e aprendeu a amar de todas as vezes que entrou no cinema e ouviu o ribombar e as luzes incidirem sobre as letras 20th Century Fox? Por mais alertas que criemos, é difícil acreditar que quem tanto nos fez sonhar, queira o nosso mal, impossível. E aqui podemos apontar o dedo a Hollywood que hipocritamente tem continuado a viver por conta do império da Fox, sem nunca ousar mexer-se para exigir mais. É fácil falar mal contra Trump, mas colocar a dignidade acima do dinheiro é bastante mais exigente.

Tudo isto se exponenciou com o facto da Fox News ter no poder alguém igual a si. Ou seja, alguém que aceita o modelo e o defende. Ou seja, se tivéssemos apenas a Fox News sozinha, seria mau mas sustentável, mas ter a Fox News apoiada por quem governa, abriu uma brecha estrondosa na democracia americana. A ficção criada por uns é suportada pelos outros num ciclo contínuo de apoio mútuo que impede os cidadãos de ver a realidade por si mesmos. Não é possível ao cidadão médio americano aceitar que Trump mente quando um canal noticioso visto por milhões de pessoas que se unem por interesses comuns, defende e sustenta a mentira com argumentos, ainda que ficcionais, e ainda por cima aponta baterias contra os restantes meios noticiosos, apelidando esses sim de mentirosos. Não é um canal de televisão que aponta o dedo, nem é um governo que aponta o dedo, é a união entre dois elementos que deveriam avaliar-se e escrutinar-se continuamente que gera uma espécie de buraco negro no qual a realidade é regulada por regras próprias.


A Fox News não é o Breitbart, é muito mais perigoso, porque menos extremista, com muito maior cobertura nacional, acesso direto a toda elite económica, financeira e política. Isto deixou de ser um debate direita/esquerda, agora é apenas o "nós" contra "eles" que serviu para criar uma arena no qual se defenderão até às últimas consequências os territórios conquistados. Os EUA estão metidos numa camisa de forças e sair dela não vai ser nada fácil, pelo menos sem que algo de muito grave aconteça pelo meio.

março 19, 2017

“Breaking Bad - O Filme”

5 anos em exibição, de 2008 a 2013, resultaram em 5 temporadas, 62 episódios, 48 horas contínuas de filme. Em 2017 podemos finalmente ter acesso a toda a saga de “Breaking Bad” por meio de um filme que totaliza apenas duas horas e sete minutos. Se se pode dizer que a experiência é igual? Não, é totalmente impossível, mas permitiu-me conhecer a história completa depois de ter desistido no 3ª episódio.




Dois franceses, Gaylor Morestin (designer gráfico) e Lucas Stoll (realizador), resolveram dedicar grande parte do seu tempo livre, ao longo de dois anos, para criar um filme completo a partir das 48 horas de série, que conseguisse conter a nata da narrativa e da experiência de “Breaking Bad”. É um trabalho insano, pelas múltiplas linhas narrativas presentes na série e a multiplicidade de personagens, pelas temporadas filmadas com diferentes realizadores, pela variação de recursos de produção, do guarda-roupa e da maquilhagem. Mas também porque trata-se de recriar algo a partir do que existe apenas, sem hipótese de filmar o que quer que seja para dar conta de aspetos menos claros.

No final das duas horas posso dizer que compreendi a razão do sucesso da série, compreendi o que a tornou tão relevante, consegui gizar os traços gerais dos personagens e conflitos, mas tenho perfeita noção que passei ao lado de muito daquilo que gera a verdadeira experiência de “Breaking Bad”. O filme cria a sensação de estarmos a ver detrás de alguém, captando apenas partes do que vai acontecendo, dando sentindo ao todo, mas percebendo que nos falta contexto, que cada conflito aparece e desaparece sem chegarmos a compreender a essência do seu desenvolvimento.

“Breaking Bad - O Filme” é uma obra interessante para quem viu a série e quer agora rever os momentos altos, pode servir a quem como eu nunca viu, mas saiba que tem de se comprometer em aceitar que ver o filme não é o mesmo que ver a série. Que a experiência que vai viver, não é aquela que foi pensada por quem criou a série. A experiência está adulterada, funciona, mas não oferece o pleno. Serve para conhecer a história, para compreender o fenómeno e apaziguar as ânsias de quem não quer dedicar 48 horas a conhecer o universo da série.

Para ver o filme precisam de procurar no submundo da web, já que a Sony fez o favor de mandar retirar o trabalho do Vimeo e do YouTube, apesar de catalogado como Fair Use. Por antecipar isso mesmo, fiz download do mesmo no dia em que saiu, contudo deixo um link para quem não se importar de ver online.

dezembro 22, 2016

"The OA", manipulados pela Netflix

Acabei de ver o 8º episódio de "The OA", diga-se que já depois de muito me ter forçado para continuar a ver depois do 4º ou 5º episódios. Não quis falar sem ter terminado a série, quis dar o benefício da dúvida, acreditando de certa forma que poderia haver algum tipo de redenção. E a verdade é que isso foi a única coisa que a série conseguiu fazer bem, lançar na dúvida constante, todos os caminhos apontados foram continuamente revogados para logo a seguir voltar a ser reafirmados. No final, sente-se um vazio, um nada, uma total perda de tempo. Sinto-me totalmente defraudado pela Netflix.





The OA é uma série baseada na premissa básica do thriller, prolongar a revelação de informação crucial para a compreensão de um argumento até ao último minuto. O ser-humano não consegue viver sem fechamento, sem dar sentido aos padrões que o rodeiam, precisa de chaves para explicar o real que se lhe apresenta na frente. Neste sentido, e como na maioria das obras do género, os personagens são básicos, meras marionetas que empurram o enredo e guiam o caminho ao recetor. Poderíamos perguntar quem é Prairie? quem é Homer? quem é a Renata? quem é o Alfonso? quem é etc? Porque nenhum dos persongens verdadeiramente interessa. Existindo ou não, são irrelevantes, podiam facilmente ser substituídos por quaisquer outros.

Mas sobre estes, os personagens, diga-se que não eram apenas vazios, eram totalmente inconsistentes, desprovidos de forma e sentido moral. Se gostaria de louvar Brit Marling por um trabalho criativo fantástico, já que é não só atriz principal, mas também produtora executiva e guionista, não o consigo fazer pela escrita . Que pais adotivos são aqueles, que filha adotiva é aquela, que raptor é aquele, que cidade é aquela, que polícia é aquela. Nada, é tudo tão superficial, tão sem fundo, sem sabor, sem nada.

No fundo o que conta é apenas a premissa, para onde nos leva. Este tipo de obras têm um problema de base que é arrastar as pessoas e mantê-las enredadas sem lhes dar a conhecer se vale a pena o investimento que realizam em tal. O esquema utilizado é profundamente manipulativo, não tendo em si qualquer outro objetivo além de garantir a atenção cognitiva dos recetores. E é por isso que deve ser usado com alguma parcimónia, garantir o interesse sim, mas ir informando na sua progressão ao que vem, de outra forma resulta em manipulação pela manipulação.

E é isso que "The OA" é, um mero exercício de manipulação das audiências. Uma temporada inteira, 8 episódios, horas e horas, e nada acontece. Somos totalmente manipulados. As vezes em que a série parece indicar ao que vem — as experiências de quase morte e o new ageism, ou as experiências científicas, ou  ainda a imaginação baseada na ficção — logo a seguir destrona tudo, questiona tudo, deixando-nos de novo sem nada.

É certo que me arrepiei quando comecei a ver o ridículo das experiências de quase morte surgir, mas inteligentemente foram atirando tudo isso para debaixo do tapete, camuflando com outras possibilidades. Diga-se que já não se aguenta a moda recente de usar a Mecânica Quântica como nova força do esoterismo. Mas no final, nem uma coisa nem outra, nada.

Obrigado Netflix, mas foi a primeira e a última vez que me convenceram a ver uma série antes de ler sobre a mesma. Mantiveram a série em total segredo, lançando a mesma em simultâneo em todo os países, sem dar tempo para que se pudesse discutir a mesma, escrever sobre a mesma. Funcionou, mas só funciona uma vez.

outubro 23, 2016

A não-linearidade de género

“The Affair” é uma simples série de televisão, mas podia facilmente ser uma grande obra literária, tal é o trabalho de escalpelização psicológica dos personagens, assim como a estrutura não-linear que serve a apresentação. Sendo um produto audiovisual a escrita não chega e aqui podemos dizer que o conjunto de atores foi não só bem escolhido como consegue obter mais ainda de algo já imensamente bom. Estas palavras resumem a minha experiência do primeiro episódio, sendo que a série segue já para 3ª temporada.

Ilustração de Zohar Lazar

Cartaz para a segunda temporada

A história parece seguir o cliché do homem de meia-idade que se questiona sobre o pico da sua vida, o enfrentamento do declínio, enterrado numa relação de décadas com 4 filhos, e que vê novas oportunidades nas mulheres com que se cruza. Contudo, e apesar do cliché, é tudo desde logo escrito de forma tão detalhada, de modo tão íntimo-realista, que o nosso interesse se desperta, seduzido pelas personagens.

Se fosse só isto, a série seria interessante, mas quando na segunda parte passamos a rever alguns dos momentos já passados pelos olhos de uma potencial amante deste homem, tudo muda. Revemos, reavaliamos e reestimamos tudo o que foi dito, tudo o que por nós foi imaginado e projetado sobre aquele homem. A  escrita sobe a patamares novos, mostra e reamostra o real, dando conta das teias de complexidades, mas acima de tudo dando conta do quanto cada um de nós fabrica o seu próprio mundo, demonstrando que o real é muito mais do que aquilo que pretendemos que seja, que não se termina em algo que podemos simplesmente encerrar num igual para todos.

Esta abordagem não-linear, de reapresentação do real em função dos olhos de quem vê não é nova, é até considerada tipicamente borgeana, podendo também, pelo lado do cinema, ser apelidada de rashomoniana. É também uma abordagem muito cara ao mundo das histórias interativas, nomeadamente pelo modo como permite a personalização dos conteúdos em função das diferenças patentes em cada recetor. Contudo, e falo apenas deste primeiro episódio, o seu uso não é aqui meramente estilístico, e mesmo sentindo alguma rigidez pela estereotipagem, serve um desígnio específico da história, o posicionamento de género e sua intensificação dramática. Ou seja, o mundo que o homem em declínio e aberto a um novo mundo vê, é distinto do mundo que uma mulher à beira do precipício vê. Não temos caminhos diferentes, nem temos gostos ou interesses diferentes, mas temos pequenas ações que obrigam o recetor a trabalhar, nomeadamente no desmontar de preconceitos já estabelecidos, obrigando ao questionamento não apenas do que viu, mas mais importante, do que sentiu em cada perspectiva e que entrechoca agora dentro de si…

maio 10, 2016

“As Aventuras de Huckleberry Finn” (1884)

Li “As Aventuras de Huckleberry Finn” (1884) de Mark Twain numa tradução de Rosaura Eichenberg para a brasileira LPM, e ainda que, e ao contrário das traduções portuguesas, exista um enorme esforço por adaptar a particularidade formal da escrita inglesa de Twain ao português, só se consegue em parte. Huck e Jim funcionam imensamente bem, ao serem transportados para o linguajar do Brasil, para o caso de Jim vem mesmo do sertão, ficando contudo todos os restantes personagens a funcionar como adereços da língua standard. De qualquer modo, o trabalho original do autor merece todo o nosso interesse, dada a sua enorme capacidade para nos envolver, emocionar e fazer sonhar.



Huck e Tom Sawyer fazem parte do meu imaginário de criança como símbolos de liberdade, criatividade, audácia e muito otimismo. O contato foi realizado por via da série de animação “As Aventuras de Tom Sawyer” de 49 episódios da Nippon Animation de 1980, na qual se retrata apenas o primeiro livro de Twain. Desta forma “As Aventuras de Huckleberry Finn” começam onde terminam as “As Aventuras de Tom Sawyer” e leva-nos a novas aventuras, desta vez mais focadas em Huck, ainda que Tom Sawyer volte a aparecer para fazer das suas.

Posso agora dizer que a série refletia plenamente o sentimento de Twain, já que ler "As Aventuras de Huckleberry Finn" funcionou como verdadeira continuação da série, em nenhum momento me senti defraudado quanto ao universo ou personagens, cumprindo plenamente aquilo que ainda restava na minha imaginação, fazendo-me rir e despertando a alegria inocente. Por outro lado, vi de forma mais madura os problemas das relações entre raças no sul dos EUA, e consegui sentir a personagem de Huck como uma das mais bem elaboradas da literatura americana, por toda a enorme profundidade que nos consegue dar através de leves traços comportamentais e questionamentos ingénuos de aparente superficialidade.

“Jim falava alto o tempo todo, enquanto eu tava falando comigo mesmo. Ele tava dizendo que a primeira coisa que ia fazer, quando chegasse num estado livre, era poupar dinheiro sem gastar um centavo e, quando tivesse o bastante, ia comprar a mulher dele, que era propriedade de uma fazenda perto de onde a srta. Watson vivia. Aí os dois iam trabalhar pra comprar os dois filhos, e se o dono não quisesse vender eles iam falar com um abolicionista pra ir roubar as crianças.
Quase gelei quando ouvi essa declaração. Na sua vida de antes, ele nunca ia ter a ousadia de falar desse jeito. É pra ver a diferença que aconteceu nele no minuto que achou que tava quase livre. Tava de acordo com o velho ditado: “Dá a mão prum negro e ele vai pegar o braço”. Pensei, é isso o que dá eu não pensar. Aqui tava aquele negro que eu tinha de certa maneira ajudado a fugir, achegando-se com toda desenvoltura e dizendo que ia roubar os filhos dele – filhos que pertenciam a um homem que eu nem sequer conhecia, um homem que não tinha me feito mal nenhum.”
A primeira edição americana, lançada no ano seguinte à edição inglesa, apresentava ilustrações de E. W. Kemble, com todos os desenhos revistos e aprovados por Mark Twain.

Aliás, em certa medida o reconhecimento da obra de Twain advirá não só da construção formal, da obsessão pelo linguajar das comunidades americanas do Sul, mas também desta sua capacidade para construir na frente dos nossos olhos, personagens e eventos realistas, ao mesmo tempo que líricos e belos. Ler “As Aventuras de Huckleberry Finn” foi, em certa medida, um retornar à minha infância.

abril 18, 2014

Videojogos no "Sociedade Civil"

Ontem passei pelo Sociedade Civil para participar numa mesa de discussão sobre o "vício" em videojogos, com Jorge Loureiro, editor da Eurogamer.pt, Rogério Ribeiro, fundador do Game Studio 78 e produtor de Hush, Maria Carmo Carvalho, professora da Faculdade de Educação e Psicologia da Universidade Católica Porto, moderada pela Eduarda Maio. O debate foi interessante e produtivo, apesar do potencial de polémica que o assunto encerra. Julgo que de uma forma geral se conseguiu passar informação no sentido da desmistificação do assunto.

Sociedade Civil: Nelson Zagalo, Rogério Ribeiro, Eduarda Maio, Maria Carvalho e Jorge Loureiro [17.4.2014]

Em síntese, procurei passar a ideia de que o "vício" em videojogos, apesar de real, não é diferente do "vício" em séries de televisão, ou em telenovelas. Existem no entanto algumas diferenças no acesso a este tipo de artefactos que contribuem para que a sociedade sinta que os jogos podem ser mais viciantes, nomeadamente o facto das pessoas não controlarem o tempo que podem estar a ver uma série ou telenovela. Quando acaba um episódio que está a passar na televisão, são obrigadas a desligar. Por outro lado quem já viu séries em caixas de DVD sabe bem o quanto custa parar de ver uns episódios atrás dos outros, muitas vezes pela noite dentro.

Este tipo de vício pode ser desenvolvido também com livros, e em menor grau com o cinema (o cinema tem uma menor capacidade para exercer este vício porque não se estende no tempo). Existem vários casos de miúdos que passam dias inteiros mergulhados em livros, mas aí as pessoas não recriminam, porque a atividade de leitura é vista pela sociedade como uma atividade nobre. E esse é o outro problema dos videojogos,  é que são ainda considerados um media menor. Duas questões concorrem para esta visão, a associação com a brincadeira de crianças, algo que os pais querem afastar dos filhos à medida que crescem, e por outro lado os jogos de casino ou de azar, vistos como um lado negro do ser humano.

Ora os videojogos, apesar de serem relevantes para as crianças, não são um meio usado apenas por crianças. Tal como a banda desenhada, são meios que servem a comunicação humana, e a comunicação pode ser dirigida a qualquer faixa etária. No caso dos jogos, o seu público majoritário está neste momento situado na faixa dos 30 anos. Relativamente aos casinos, não existe qualquer relação, já que os videojogos se situam no terreno do chamado “círculo mágico”, ou seja aquilo que acontece ali não pode ter efeitos na realidade, como acontece num casino em que se pode perder ou ganhar dinheiro real.

No fundo, os videojogos devem ser vistos, como são vistas as séries de televisão, os filmes no cinema ou os livros da literatura. Se me preocupo com aquilo que os meus filhos veem na televisão, também tenho de me preocupar com aquilo que jogam. Se não quero que o meu filho passe o dia em caso fechado a ver filmes, também não devo querer que passe o dia jogar. Todos estes media/artes servem os seres humanos de forma fundamental, informando-os e agilizando-os socialmente, são importantes para a regulação da vida em sociedade, mas todos eles precisam de ser consumidos com moderação, e de forma suficientemente diversificada. Um livro não dá o mesmo que um jogo, nem um jogo dá o mesmo que um filme. Mas na vida, a maior parte daquilo que precisamos e aprendemos, é com os outros seres humanos, por isso os media devem ser usados com moderação, é preciso dar tempo aos que nos rodeiam, eles precisam de nós, mas nós também precisamos deles para crescermos.

O programa pode ser visto na íntegra no RTP Play.

novembro 18, 2013

Racionalizar o formato das séries TV

Ontem comecei a ver Breaking Bad (2008-2013). Vi os três primeiros episódios. Gostei, o conceito é muito bom, o ator principal é excelente, a narrativa mantém-nos sempre interessados. Mas no final decidi não continuar a ver a série. A razão não se prende com esta série, em particular, mas antes com o formato das séries de TV. No fundo, é a razão única pela qual não vejo séries de televisão, a sua duração e o confronto com o tempo que nos falta. Vi algumas temporadas de X-Files, 24, de Six Feet Under, de Sopranos, e vi apenas alguns episódios das mais recentes Dexter, RomeLost, The Walking Dead, ou Game of Thrones. Não vi muita coisa que na atualidade muitos dos meus colegas seguem e admiram, e por isso procurei perceber melhor porque não o faço.


Vejamos, Breaking Bad tem 5 temporadas, 62 episódios, o que pede um investimento da nossa parte equivalente a 60 horas. O que é possível fazer com 60 horas em termos de consumo de media?

  • Ler 3 livros (~20h)
  • Jogar 4 videojogos (~15h) 
  • Ver 30 filmes (~2h)
  • Ler 45 livros BD (~1h30m)
  • Jogar 60 videojogos indie (~1h)
  • Ver 200 curtas (~15m)

Não me parece que seja um problema de quem cria as séries, mas um problema do próprio meio de Televisão. A série está desenhada para ser consumida ao longo de meses/anos. Ou seja, a série precisa de entreter o espectador, precisa de o manter interessado, e quanto mais tempo o conseguir fazer melhor. Como os episódios são semanais, e as temporadas anuais, a redundância é obrigatória e extensa.

Em termos imediatos, a série exige apenas 1 hora, o problema acontece quando juntamos tudo num pacote de DVDs. Ou quando olhamos para trás e nos damos conta que estivemos 60 horas sentados no sofá a sintonizados nos detalhes de um personagem e das suas atividades diárias. Será isto mau? Não sei responder. Posso apenas responder por mim, o que sinto e como sinto.

Cada vez que acaba um episódio de uma série boa, sinto que o guionista o faz de modo a manipular as minhas emoções e a conduzir as minhas expectativas, para que eu não deixe de ver o próximo episódio. Quando olho para os episódios que faltam, sinto uma ansiedade enorme, ainda tenho mais 5, 10 ou 15 horas pela frente, só naquela temporada. Se quiser chegar ao final, tenho de multiplicar isso pelas várias temporadas.

Mas o pior acontece quando a ansiedade toma conta de mim, e faz passar pela minha mente as inúmeras outras coisas que poderia estar a ver, ler ou jogar. Por muito boa que a série seja, começa a perder-me, a arrastar-se. Ao fim de alguns episódios, parece que estou encalhado naquele universo narrativo, e não terei forma de lhe escapar durante muito tempo ainda.

Talvez tudo isto não passe um problema de excesso de racionalização. Talvez. Mas também é verdade que sinto que o retorno de uma temporada completa é pouco maior que aquilo que um ou dois episódios conseguem oferecer. Da soma de todos aqueles episódios e horas acaba por resultar demasiada redundância e uma muito baixa diversidade narrativa em termos temáticos e estéticos.


Actualização 19.11.2013

O debate que se seguiu a este texto no facebook foi interessante e ajudou-me a ver perspectivas diferentes sobre este assunto. Nomeadamente a aceitar melhor o formato, e o que cada um consegue retirar dele se souber gerir a relação da melhor forma. Ou seja, se estiver mais concentrado sobre o episódio que vê semanalmente, do que em ver toda uma temporada, ou uma série completa. Apesar disso deixo mais algumas reflexões que realizei depois disso.

Concluo de toda esta análise, que não gosto de "ganchos narrativos", já não gostava em criança, quando comecei a ler Marvels. Ficar ali colado na expectativa, um mês para saber como continuava a história. Tinha um lado que me agarrava, mas por outro percebia, já nessa altura, que estava a ser manipulado, e não achava grande graça, obrigarem-me a comprar todas as séries Marvel, para poder seguir o fio da narrativa. Aliás para quem jogou The Last of Us (2013) pode encontrar esta mesma crítica dita por Ellie, quando acaba de ler um comic e encontra o célebre "To Be Continued", a sua reação expressa tudo aquilo que sinto! Por isso mesmo aqui há uns anos quando voltei aos comics, acabei desistindo da Marvel. Hoje só leio séries curtas, e quando elas se começam a estender, termino, raramente vou além da 2ª ou 3ª série.

E assim não é por acaso que também não gosto de sequelas no cinema ou nos videojogos. É um claro aproveitamento do espectador, na esmagadora maioria das vezes. Os executivos de Hollywood descobriram a pólvora desse poder do seriado e do gancho, com as sequelas, e por isso muita inovação tem sido evitada pelo cinema ao longo dos últimos 10 anos de modo a controlar os riscos financeiros.

abril 25, 2012

Ted Tremper, e a consagração das Séries Web

A web é cada vez mais um canal de produção cultural audiovisual. Demorou a criar-se a ideia de série web, foram muitas as experiências falhadas, mas parece que ao chegar à segunda década de 2000 estamos a encontrar a forma de o fazer. Em 2009 foi criado o primeiro festival na área, os Streamy Awards e em 2010 o Vimeo Festival+Awards.


Alguns casos muito interessantes são o exemplo da série web N. de 2008 criada pela CBS e Marvel com argumento de Stephen King. Fazendo uso de trabalho de ilustração tipicamente Marvel, e com uma animação limitada ao movimento das ilustrações de modo a tornar mais barata a produção, com 25 episódios e uma duração de 2 minutos. Podem ver a série completa aqui.


A série web Off Book sobre novas correntes artísticas da PBS iniciada no ano passado, e que previa um total de 13 episódios, teve um tal sucesso que se justificou continuar a sua produção sempre em ambiente web. Tenho publicado aqui no blog todos os episódios, que saem normalmente de 15 em 15 dias, às quartas-feiras.


Mas se as séries web começaram a germinar seriamente e a criar conceitos novos, não foi graças ao investimento institucional, mas antes ao trabalho de freelancers. Em 2008 em Portugal foi criada a série web de animação Spam Cartoon de André Carrilho e João Paulo Cotrim, com desenhos de Cristina Sampaio , João Fazenda, e som de  José Condeixa. São muito pequenos episódios de 30 segundos que realizam criticas, à política nacional e internacional. Foram criados 62 episódios.


Claramente que existem muitas mais séries nacionais e internacionais, mas o que me levou a escrever este texto foi a descoberta de mais um autor de séries web, Ted Tremper. Realizador, escritor, e improvisador com formação em escrita e cinema pela School of the Art Institute of Chicago. A sua primeira série Break-ups: The Series foi um enorme sucesso no campo da improvisação, tendo ganho o 2010 Vimeo Global Film Festival Award para “Best Original Series”. Podem ver um dos três episóidos submetidos ao Vimeo "Katy & Ted".


No ano passado Ted Tremper partiu para um novo conceito, Shrink. Se o conceito de Break-ups era original, este não fica nada atrás. Um jovem doutor não consegue entrar para nenhum programa de residência, passo obrigatório para poder receber a licença de psiquiatria. Ele terá de cumprir este passo de terapia supervisionada, antes de poder começar a pagar o crédito realizado para as propinas no valor de  $586,000.


Por isso decide inovar, e cria um programa de terapias grátis na sua garagem, de modo a poder cumprir as 1750 horas necessárias. O trabalho resulta em excelência por muitas razões, uma das quais passam por continuar a apostar na improvisação de toda a representação. O tema não era possível num canal nacional, e a forma ainda menos. Temos assim mais um conceito original, e brilhantemente implementado por Ted Tremper. Fica o último episódio da série, publicado ontem.


Para quem sentir que este é o seu caminho, dê uma vista de olhos nos 30 Passos para Ser Freelance Videographer.

setembro 22, 2011

A consciência da televisão

É mais uma talk elucidativa esta que a TED Women nos traz, realizada por uma comunicadora brilhante, Lauren Zalaznick, sobre a relação da televisão com o seu público. Zalaznick que é atualmente presidente da NBC Universal Entertainment & Digital Networks and Integrated Media, antes de chegar à televisão foi produtora de filmes de culto como Kids (1995) e Girls Town (1996), e depois na televisão produziu conceitos de sucesso de Reality TV como Project Runway, Top Chef e Real Housewives.


Zalaznick defende nesta comunicação, The conscience of television, que a Televisão possui uma consciência e que essa está intimamente ligada a nós.
"So why I believe that television has a conscience is that I actually believe that television directly reflects the moral, political, social and emotional need states of our nation -- that television is how we actually disseminate our entire value system." 

Para demonstrar isto mesmo, realizou um estudo em profundidade e extensão de enorme valor para a nossa compreensão da realidade da Televisão, um estudo no qual,
"We went back 50 years to the 1959/1960 television season. We surveyed the top-20 Nielsen shows every year for 50 years -- a thousand shows. We talked to over 3,000 individuals -- almost 3,600 -- aged 18 to 70, and we asked them how they felt emotionally. How did you feel watching every single one of these shows?"

Os dados existentes de um estudo desta natureza terão com certeza muito mais para analisar e interpretar do que aquilo que pode ser dado a ver em 15 minutos, contudo fiquei bastante impressionado com dois dos gráficos apresentados que passo a mostrar.


Neste primeiro gráfico foram comparados os dados oficiais das estatísticas americanas de desemprego com a apresentação de séries alusivas à fantasia e imaginação, ou seja que reportam para o escape, para a fuga da realidade e sensação de bem estar. Nos anos de crash das bolsas em 73-74, apareceram as séries "The Bionic Woman", "Six Million-Dollar Man" e "Charlie's Angels." Depois no início dos anos 80 mais um pico de desemprego e o aparecimento das séries de glamour "Dallas" e "Fantasy Island". Este gráfico mostra um mapeamente perfeito dos estados de alma das pessoas e das respostas dadas pela televisão em cada época.

Este segundo gráfico é ainda mais interessante porque nos fala do aparecimento e domínio da Reality TV nos últimos anos, e apresenta pela primeira vez uma explicação lógica para isso. Muito se tem discutido sobre o conceito, sobre o "mal moral" desta nova televisão, mas o seu poder e atratividade não param de aumentar. Zalaznick fala-nos aqui pela primeira vez de algo que me parece fazer sentido e que passa por ligar a Reality TV ao poder de julgamento.
Ou seja neste quadro podemos ver como as séries de comédia, Seinfeld ou Friends entre outras, predominam até 2001 e aí entram em declínio, porque o género de comédia, ou melhor o sentimento de humor, deixa de ser o procurado pelos telespectadores. Em 2001 com o rebentar da bolha das dot.com, o 9/11, e do terrorismo global as pessoas deveriam procurar o escapismo e o conforto mas com a imposição da internet como meio de comunicação global, as respostas dadas nos anos 70 e 80 deixam de fazer sentido e a Televisão vê-se obrigada a ceder parte do seu poder de decisão e julgamento.


A Reality TV surge como uma resposta à ausência de interatividade no media de eleição que é a televisão, ocupa um espaço mental e dá corpo ao sentimento, preenchendo a necessidade humana de controlo, de poder decisório. Os telespectadores podem agora decidir quem será o próximo Ídolo, o próximo estilista, o próximo Chef. As pessoas podem não perceber o mundo, sentirem-se totalmente desamparadas face à globalização do terrorismo sem causa, face à complexidade astronómica da crise financeira global, mas podem pegar no telefone e decidir quem querem que ganhe...

outubro 19, 2010

espaço 3-D, um não espaço

Em Agosto deixei aqui um texto relativo ao desastre estético do 3-D, o efeito de estereoscopia, e nesse texto referia, "O problema é que nessa planificação apenas os personagens e objectos podem recorrer do efeito, o Espaço, esse continua igual". Percebi que era um assunto a desenvolver mais, mas não dava e nem estava no objectivo específico daquele texto. Nessa altura alguém deixou um comentário onde dizia
"Quando o filme é absolutamente 3D, também o espaço pode ser trabalhado de forma a corresponder ao efeito 3D estereoscópico."
Ora se isto é verdade, é-o apenas em parte. Porque o espaço pode ser trabalhado tridimensionalmente, como o é sempre, uma vez que o cinema possui profundidade de campo.

Mas o que temos com o actual método utilizado pelo Cinema 3-D e TV 3-D limita-se a oferecer uma sensação de espaço via perspectiva, que já existia antes. Porque aquilo que um efeito de tridimensionalidade devia fazer era ganhar profundidade de campo para a frente também, e isso não acontece. Essa sensação de projecção de espaço externa ou para frente está ausente e em seu lugar temos apenas os personagens e objectos que se movem nesse eixo. Podemos mesmo levar este 3-D à comparação com uma técnica de artesanato conhecida por "decoupage 3d", na qual se recorta uma mesma imagem 3 a 4 vezes (ou apenas uma depende do objectivo estético) e se colam sobrepostas criando a sensação de volume no objecto.


Ou seja o sistema que nos anúncia e vende a ideia de entrar no filme pelo lado do 3-d, de estarmos inseridos no mundo visual é de algum modo uma fraude. Isto porque quem trabalha com plataformas de realidade virtual sabe bem o que é necessário para o efeito se dar com algum grau de eficácia.

Os sistemas de realidade virtual foram inicialmente desenhados para visualização com óculos agregados a um sistema de detecção dos movimentos da cabeça, o que permitia criar a ilusão de presença no espaço tridimensional. Ora este sistema sendo singular, só permitia um utilizador por experiência. Em alternativa foram então desenvolvidos simuladores mecânicos, como os que podemos ver nas feiras populares (ex. o pavilhão da realidade virtual da Expo 98), capazes de envolver o experienciador visual e somaticamente conferindo-lhe assim uma percepção mais evidente de imersão.

Para colmatar o problema de mais de um utilizador e assim da percepção e embebimento num ambiente tridimensional foi criado em 1992 um novo conceito de RV a CAVE. Um sistema no qual temos um mínimo de três paredes projectadas podendo chegar à integralidade de um cubo, ou seja 6 faces projectadas.

Sobre cada uma das parede é projectada uma parte do mundo virtual que em conjunto criam a "redoma" de "realidade" como se pode ver na imagem abaixo.


E foi exactamente esta falta que senti quando vi Avatar (2010):
"...acredito que se esta tecnologia for antes pensada para preencher todo o muro frontal mais uns 50% das paredes laterais de uma sala de cinema, aí julgo que poderemos ganhar algo." [VI]
O efeito é tudo menos a percepção de um espaço tridimensional, daí eu dizer nessa análise também,
"Quando tomamos atenção ao detalhe perdemo-nos por vezes a ver a beleza do recorte dos personagens sobre o fundo, mas isto parece surgir como layers (camadas) de elementos independentes no filme. Julgo mesmo que este modo acaba por elevar mais barreiras de artificialidade do que aquelas que retira. Sentimo-nos a olhar para dentro de um mundo “plástico”." [VI]
Julgo que explicada a tecnologia será fácil perceber quão diferente é aquilo que está anunciado no comercial da LG abaixo e aquilo a que realmente poderemos ter acesso perante um mero ecrã. Julgo também que respondo ao comentário e demonstro a impossibilidade do espaço tridimensional tendo em conta as actuais condições de projecção.

outubro 04, 2010

Televisão anos 90

Depois do documentário de André Valentim Almeida onde se analisava a geração e o consumo de TV nos anos 80, vem agora um documentário sobre a geração que consumiu a TV dos anos 90 por Cristina Boavida, Zapping - 18 anos de televisão privada em Portugal (2010). Se traçar o perfil do consumo televisivo dos anos 80, com 2 canais não é difícil, traçar o dos anos 90, com 4 canais, também não. Mas traçar esse consumo no momento actual é outra coisa.

A melhor expressão e talvez a que mais qualifica a TV portuguesa dos anos 90 é dada por Alberta Marques Fernandes, a cara que abriu a TV privada em Portugal, ao dizer, "dessacralizámos a televisão" ao mesmo tempo que Felisbela Lopes, professora da Universidade do Minho, define o efeito como um salto para o abismo do "voyeurimo".

Já quando o António Barreto nos diz que "o Espaço Politico hoje é a Televisão", está a falar desfasado no tempo, como se estivéssemos em 2000 e não em 2010. António Barreto fala a partir do trabalho que fez no excelente documentário Portugal, um retrato social (2007), mas nesse trabalho terminaram a pesquisa sob os auspícios da corrente vinda dos anos 90. Uma corrente que se vem fechando ao longo da primeira década de 2000 e que em 2010 é já totalmente diferente. Em 2010 Portugal e o resto do mundo é diferente.

É verdade que nas três décadas assistimos a 3 grandes transformações da relação da Televisão com o espaço mediático e social:

. nos anos 80 assistimos à abertura ao mundo externo, com a invasão dos programas estrangeiros (Animação e Cinema)

. nos anos 90 assistimos à abertura às pessoas do país, com programas populares (Big Show Sic, Perdoa-me, etc) e com os "visionários" da década Ediberto Lima e Emídio Rangel.

. nos anos 2000 apesar de José Eduardo Moniz e Manuela Moura Guedes terem pegado na galinha de ovos de ouro de Ediberto e Rangel, e que lhe valeu o reconhecimento (leia-se audiências) durante toda a primeira metade da década (Big Brother, Jornal da Sexta, etc.), na segunda metade a alteração da paisagem mediática deu-se em profundidade.

Em 2010 podemos ver como a questão já não passa pela Linha Editorial, nem pela Grelha de Programação, nem pelo Reality Show mais alucinado, não é mais uma questão de conteúdos mas radicalmente de forma ou acesso aos mesmo. Com o cabo e a diversidade de Canais Temáticos, a Internet e a possibilidade de ver e ouvir o que se quer, e as redes sociais que levaram o conceito de proximidade onde a televisão nunca poderia ter levado deu-se a descentralização do meio de acesso às massas.
A televisão como caixa continua em casa das pessoas, mas tem hoje muito mais uma função de Montra do que de Janela. Na montra colocamos o que queremos, na janela vemos o que nos é dado a ver. É uma montra tecnologicamente evoluída que nos permite mudar a grande ritmo o que vemos, segundo não só as nossas preferências, mas também segundo os nossos estados de espírito e de humor do dia, e da hora. O media passou de "T" maiúsculo a "t" minúsculo perdendo a capacidade de agir como media e passou a agir como mero suporte dos conteúdos.

Como é dito a fechar a reportagem, a televisão que conhecemos, e que teve um papel relevantíssimo durante quase 50 anos de história da humanidade, "está hoje em vias de extinção", fruto da transformação mais importante ocorrida na nossa história enquanto espécie. A alteração de que falamos é a transformação do processo de comunicação do analógico em digital e a disseminação do canal de transmissão bidireccional que é a internet tornando-se num canal omnipresente.



Zapping - 18 anos de televisão privada em Portugal (2010)