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maio 29, 2022

As Universidades não são centros de formação são centros de criação de conhecimento

Algumas das notícias mais badaladas sobre a irrelevância das universidades nos dias de hoje costumam focar-se em jovens brilhantes que desistiram da universidade para criar empresas tecnológicas e se tornaram milionários. Exemplos não faltam, de Bill Gates a Steve Jobs, passando por Mark Zuckerberg ou Jack Dorsey, ao mais recente Alexandr Wang. Se esse for o vosso propósito, ser milionário, nada contra. Mas o exemplo de Dexter Holland, vocalista dos The Offspring, que desistiu da Universidade para projetar a banda e afirmar a sua carreira internacional, tendo depois voltado para terminar o seu Doutoramento em Biologia Molecular, com uma tese em HIV, serve para demonstrar que a universidade é, antes de qualquer outra coisa, um centro de criação de conhecimento, não de dinheiro.

Dexter Holland, fundador dos The Offspring nos anos 1980, doutorou-se em Biologia Molecular em 2017

agosto 08, 2021

Aprender a arte ou o ofício? (The Secrets of Story)

Matt Bird fez um mestrado em guionismo na Universidade de Columbia, pelo qual pagou 60 mil dólares, passado um ano, quando se apresentou num estúdio para fazer o seu primeiro trabalho de escrita, pediram-lhe para realizar uma tarefa e ele entrou em pânico. Nunca tinha ouvido falar de “introduções de personagens” em séries de televisão, não fazia ideia do que era suposto fazer. Passados alguns anos, escreveu o livro “The Story Secrets” (2016) para, segundo ele, explicar como se fazem essas introduções, e para dizer que o mestrado da Columbia não tinha passado de uma “ilusão”, um “acampamento de fantasia”, mesmo uma “fraude”. Antes de falar sobre o que é o livro de Bird quero falar sobre o que é um mestrado, já que o que aqui se discute faz parte dos grandes equívocos sobre o Ensino Superior.

"Os meus professores tinham-me dito que eu era um grande escritor, então porque é que isto era tão difícil? Porque não conseguia fazer isto? Porque não tinha estas competências? Mas o que realmente me marcou neste incidente foi a terrível constatação de que, apesar da minha educação de luxo e de todos os elogios que me tinham feito, não sabia realmente o que estava a fazer. De todo". Matt Bird

julho 04, 2021

A Universidade, hoje e amanhã

O Expresso escrevia ontem que existe uma “revolução em curso nas universidades: menos teoria, mais prática e ensino à distância” e suporta essa ideia numa afirmação de um reitor de uma universidade portuguesa: 

“Não podemos continuar a dar as aulas como fazemos há 50 anos, porque hoje lidamos com jovens que são nativos digitais e que têm uma mentalidade completamente diferente. Muitas instituições vão definhar se não se adaptarem às novas tendências a nível da metodologia, da organização dos currículos e da evolução tecnológica.” Amílcar Falcão, reitor da Universidade de Coimbra, in Expresso, 3 julho 2021

O Expresso legenda esta imagem assim: "A imagem de um anfiteatro cheio de alunos a ouvir um professor pertence cada vez mais ao passado."

março 13, 2021

Perdidos no Pensamento (2020)

Memórias desencantadas sobre a academia, em que se procuram pistas para continuar a acreditar no valor da reflexão, da edificação da vida interior. A questão que move Zena Hitz em "Lost in Thought: The Hidden Pleasures of an Intellectual Life" (2020) é: para que serve uma vida intelectual? O que a leva a questionar o valor da dedicação à construção do pensar. E mais iminente ainda, se o pensamento é o fim, ou é apenas um meio? Hitz não dá lições do alto da cátedra, à lá Séneca. Ela subiu todos os degraus académicos, chegou ao topo, numa universidade de elite americana, e depois resolveu abandonar tudo.

fevereiro 26, 2021

A academia e o problema da mente-corpo

Rebecca Goldstein é uma académica da área da Filosofia, tendo começado a sua carreira no domínio da Física, acabaria por mudar-se para a Filosofia e seguir o ramo da Filosofia da Ciência. Isto é importante, porque este seu primeiro romance — "The Mind-Body Problem" (1983) — contém enormes traços autobiográficos. Um dos seu livros posteriores — "Incompletude: A Demonstração e o Paradoxo de Kurt Gödel" (2005) — dá conta da relação entre Godel e Einstein em Princeton, tendo-o lido antes, serviu-me aqui para compreender em muito maior detalhe o mundo e a cultura da autora. Mas, para primeira obra, o que verdadeiramente impressiona, não é o caráter conceptual,  é a audácia. A capacidade de criar uma voz familiar que não se acanha, que se expõe sem constrangimentos.

dezembro 05, 2020

A política por detrás da Universidade que mata a Curiosidade

Trago um conjunto de reflexões que me foram proporcionadas pela interação de argumentos apresentados por três livros: "The Professor's House" (1925) de Willa Cather, "Leonardo Da Vinci" (2017) de Walter Isaacson, e "A Mind at Play" (2017) uma biografia de Claude Shannon. Porque continuamos a lutar todos os dias? Porque nos sacrificamos? Porquê ter desejo, sentir dor e prazer. Porquê? Para quê? Para quê avançar na educação e construir uma sociedade altamente educada, capaz de proporcionar a si mesma grande conforto, quando tarde ou cedo acabará por colapsar, por razões internas ou externas, mas reduzida a escombros de onde outras terão de voltar a emergir quase do zero?


A resposta parece apontar para a desistência, um niilismo, dada a insustentabilidade de qualquer dos argumentos. Mas se isto nos toca no fundo, e agita o que pensamos e repensamos diariamente, sabemos que a resposta não pode ser o NADA. Algo em nós anseia por mais do que o nada, e procuramos conhecer o que existe para além desse nada. A resposta, parece estar na análise dos nossos antepassados, pessoas que encontraram respostas contra esse nada e que viveram segundo essas mesmas respostas.

Neste sentido, e por fruto do mero acaso, calhou ler "Professor's House" durante o tempo em que andava a refletir sobre a biografia de Leonardo Da Vinci, daí que tenha concluído que na nossa história nenhuma outra pessoa poderia ser melhor antídoto para o nada. Não porque deu respostas aos "porquês", mas exatamente porque quando olhamos para a sua vida percebemos que essa pergunta não faz sentido. Leonardo nunca se questionou porquê, passou toda a sua vida, até à morte, a questionar-se sobre o como. A sua curiosidade por saber como o mundo funcionava era infinita. Foi por isso mesmo que acabei concluindo que Leonardo não era um artista, mas um designer. A arte foca-se excessivamente nos porquês, enquanto o design está totalmente focado nos como. Esta mesma ideia é apadrinhada pela leitura da biografia de Claude Shannon, um engenheiro por natureza, com um espírito de "tinkerer", muito próximo do designer Leonardo, sempre em busca de respostas aos como.

Por outro lado, Willa Cather traz ainda para a discussão a pressão constante a que a Universidade está sujeita pela sociedade e seus políticos, no sentido de apresentar resultados quantificáveis e medíveis, justificadores do investimento público (repare-se que o texto é de 1925). Contudo ao colocarem esta pressão sobre quem investiga, retiram-lhe a essência, destroem-lhe a curiosidade e o engenho. O sujeito investigador, passa a questionar-se sobre o porquê de fazer o que faz, para quê? Sabe que é para melhorar a sociedade, mas sabe que isso é parte de um formalismo político. Dentro  de si, existe um sujeito, um indivíduo, e trabalhar para o suposto bem comum é relevante, mas não chega para apaziguar a constante interrogação interna. 
“Both, with all their might, had resisted the new commercialism, the aim to “show results” that was undermining and vulgarizing education. The State Legislature and the board of regents seemed determined to make a trade school of the university. Candidates for the degree of Bachelor of Arts were allowed credits for commercial studies; courses in bookkeeping, experimental farming, domestic science, dress-making, and what not. Every year the regents tried to diminish the number of credits required in science and the humanities. The liberal appropriations, the promotions and increases in salary, all went to the professors who worked with the regents to abolish the purely cultural studies. Out of a faculty of sixty, there were perhaps twenty men who made any serious stand for scholar (..) They were, moreover, the only two men on the faculty who were doing research work of an uncommercial nature, and they occasionally dropped in on one another to exchange ideas.” Willa Cather, (1925). “The Professor’s House”
Leonardo é hoje imensamente reconhecido pelas suas obras de arte, e no entanto aquilo que o manteve vivo toda a sua vida foram os seus cadernos, a sua investigação sobre o design do mundo — da água à anatomia, do voar aos engenhos militares. Nada do que fez nesses ramos teve qualquer valor para a sociedade, porque nada disso foi publicado em forma ou tempo útil, obrigando aos que o sucederam a terem de redescobrir tudo. Mas se olharmos ao caso de Claude Shannon, o responsável por todo o pensamento que sustenta aquilo que hoje designamos por Sociedade da Informação e Comunicação, nada do que fez alguma vez foi feito com o intuito de criar a Informática ou a Internet. Ambos, Leonardo e Shannon, moveram-se apenas e só pela mais pura e absoluta curiosidade, um é hoje imensamente admirado, o outro mudou o mundo.

Se continuarmos a obrigar os professores-investigadores universitários a focarem-se na produção de artigos em massa e na angariação de projetos apenas em função do retorno financeiro, por mais científicos que sejam, não só conduziremos estes professores-investidadores para o niilismo, matando a sua curiosidade, como os seus resultados não passarão de produtos em série, conduzindo a Universidade ao estatuto de simples fábrica, condenando-a, tarde ou cedo, ao colapso.

julho 07, 2018

Fábula da Academia do século XXI

A academia era responsável por criar conhecimento, imaterialidade de experiência humana, tinha sido assim a sua génese e assim sobreviveria por vários milénios. No entanto nas últimas duas a três décadas, por várias razões, o conhecimento foi sendo convertido em produto, em matéria resultante e concreta. O conhecimento deixava de valer per se para valer apenas em função do que podia ser medido, quantificado e apresentado como rendimento efetivo.

Sócrates, Academia de Atenas

Começando pelo aumento massivo do ensino superior nas últimas décadas, um aumento de instituições e recursos humanos que inevitavelmente começaria a gerar pressão para que se justificasse o dinheiro investido pelos contribuintes. O conhecimento per se não interessava propriamente a quem ia chegando ao Ensino Superior, já que este era visto como “centro de treino para emprego”. Não se tiravam médias de 19 para ir aprender Medicina, mas apenas e só para ter acesso ao emprego de médico. O conhecimento era um cartão de emprego. Ora, durante algum tempo a relação entre o ensino superior e a empregabilidade foi suficiente para justificar a sua existência, mas essa linha foi ultrapassada quando os números aumentaram exponencialmente e se percebeu que o ensino superior não tinha cartões de emprego para oferecer a todos. Foi então preciso encontrar formas mais criativas de justificar o investimento massivo.

Produzir pessoas com elevados recursos de conhecimento precisava de ciclos muito grandes, não era só o tempo que demorava a produzir o empregado “superior”, era ainda preciso bastante tempo, fora da academia, para este começar a produzir, por isso era preciso encontrar formas alternativas de aumentar o ciclo de produção das universidades. Reduzir o número de anos dos cursos ajudou, Bolonha tinha sido uma vitória, mas sabia a pouco. Muito melhor era se pudéssemos transformar o conhecimento diretamente em produto, politicamente classificado como “transferência de tecnologia” ou “ligação à sociedade”. Os professores precisavam então de acordar para o mundo à sua volta, sair das suas “torres de marfim” e “falar” com a sociedade. Na verdade, e visto de fora, os professores faziam muito pouco, ou nada, diziam que se dedicavam ao conhecimento, mas isso era pouco diferente de se dedicar ao ócio, era preciso pô-los a trabalhar. Havia então que secundarizar o aprender e ensinar, e passar a produzir. Dizia-se, ‘O conhecimento só vale a pena quando aplicado em produtos’, quando 'dá dinheiro'. Chamavam-lhe inovação e criatividade, e diziam à academia que ela tinha a responsabilidade de salvar a economia dos seus países. Com isto esquecia-se a sua principal função, o conhecimento e a formação de pessoas com esse conhecimento, ao que se acrescentou ainda o declínio da natalidade. Era preciso fazer algo que mantivesse o fluxo de estudantes.

Os rankings vieram “ajudar” as universidades mais antigas que tinham perdido espaço para a emergência das que tinham surgido como “centros de formação”. Estar bem posicionado no ranking permitia às universidades tornarem-se atrativas, e assim reganhar alunos a essas instituições “arrivistas”. Mas os rankings eram internacionais, dizia-se que eram independentes e por isso muito bons. Mas também por causa disso precisavam de usar uma única língua, não era possível realizar rankings se o conhecimento produzido fosse nas línguas dos seus países, e como o poder económico era regulado pelo Império Americano, que outra língua além do inglês poderia ser adotada? Começaram então todos a produzir papéis (artigos e textos) na língua que esses rankings pudessem perceber. As pequenas conferências em que os académicos se encontravam e discutiam conhecimento em estado bruto começaram a escassear, cada um estava agora apenas interessado em produzir e publicar papéis. Porque eram esses papéis que permitiam aos rankings classificar as universidades internacionalmente. Quantos mais papéis fossem publicados no sítio em que mais pessoas queriam publicar, mais reconhecidos eram esses papéis. Não mais interessava o que dizia o conhecimento, era tudo uma questão de dança e posicionamento de papéis que garantiam rankings, ou seja, produto.

O número de papéis duplica à razão de 10 anos. Enquanto isso os autores passam a assinar papéis uns dos outros para garantir aumentos de produção de papéis.

Os rankings produziam reconhecimento, ofereciam status, e com ele atraiam alunos que escasseavam, mas também serviam para triar financiamento. Como vimos, a academia já não podia sobreviver só com o ensinar, tinha de produzir, todos o diziam, mas na verdade havia pouco dinheiro para pôr nas mãos dos académicos para potenciar essa produção. Desejava-se que produzissem mas que o fizessem com o mínimo, que fossem criativos, usassem o conhecimento, a “suprema” matéria-prima, a massa cinzenta, para criar produtos. Desta forma os rankings ajudavam também a decidir quem de entre esses académicos tinha direito a receber mais apoios, a ver projetos financiados com os dinheiros que iam sobrando aos estados. Por isso não tardou até que grupos de académicos passassem a dedicar mais tempo a numerar, listar e quantificar os seus feitos do que a discutir conhecimento. Muitos destes passaram a dedicar-se às metodologias de avaliação dos seus próprios feitos, passando até por especular a probabilística dos mesmos a 5 e a 10 anos, enquanto atacavam rankings por usarem maus indicadores e elogiavam outros por usarem as melhores fórmulas de cálculo.

Na verdade, os rankings e os papéis, o produto, interessavam apenas a um grupo restrito, quem os escrevia fazia-o por obrigação, quem fazia a revisão por pares fazia-o por obrigação, e quem os citava fazia-o por obrigação, sobravam as editoras que ganhavam milhões pelo meio, ao que se juntavam as agências de rankings que ganhavam mais alguns milhões. Os políticos fechavam os olhos, na verdade todo esse sistema permitia-lhes tomar decisões sem terem de perceber nada do conhecimento criado pelos académicos. Não admirava por isso até que o próprio comissário europeu para Ciência e Investigação fosse alguém que nunca tivesse produzido qualquer conhecimento, não era preciso, as tabelas e gráficos produzidos por estas empresas eram suficientes para tomar decisões. E, no entanto, a indústria real não queria saber desses rankings nem papéis para nada, da relação que podiam estabelecer com a academia, estava apenas interessada no que poderia ganhar em termos de melhoria das vendas do seu produto, e para esse efeito os papéis eram inconsequentes.


Repare-se como a produtividade não depende dos papéis nem da investigação, já que o aumento de investigadores não representa qualquer aumenta de produtividade.

A ânsia pelo produto conduzia assim ao desaparecimento do conhecimento de cada país, da sua especificidade regional e cultural, porque interessava mais aquilo que era comum a todos, porque só assim poderiam entrar nos locais em que todos “tinham” de publicar. O Império Americano e seus satélites jogavam em casa, os outros tinham de duplicar a velocidade, para em paralelo criar conhecimento e colocá-lo na língua desses. Se em domínios aplicados o conhecimento era facilmente aceite em inglês básico, em domínios fundamentais, em que a língua era ela própria criadora, não bastavam meras proficiências das escolas de inglês do bairro. Deste modo, o Império transferia-se da economia para o conhecimento, e do conhecimento novamente para a economia, tudo conjugado numa hegemonia que se queria robusta.

Os papéis noutras línguas simplesmente desaparecem.

De cada vez que um papel era publicado num daqueles sítios em que todos queriam publicar ficava-se feliz, mas apenas naquele dia, naquela hora, já que apenas interessava o que ainda estava por publicar, porque o que interessava era aumentar o número de papéis, para garantir o aumento e manutenção do reconhecimento que per se não trazia qualquer felicidade. De cada vez que um projeto científico era aprovado, ficava-se feliz, mas apenas até se iniciarem os trabalhos e perceber-se o inferno da gestão burocrática do mesmo que mudava a cada seis meses. Mesmo assim, a ânsia pelo reconhecimento e o receio da falta de financiamento que justificasse a sua posição, faziam com que mal iniciado um projeto se iniciasse de imediato a submissão de um novo, mesmo sem qualquer novo conhecimento que o justificasse.

O conhecimento era produto, o conhecimento era agora algo perfeitamente delineado, medível, quantificável e claro vendável. Para quê entrar em dialéticas quando uma folha de cálculo podia pôr um fim imediato a quem tinha razão. Aliás, dentro da própria academia os físicos viam a filosofia como morta, porque a razão já não era baseada em conhecimento, a razão era oferecida por cálculos baseados em número de papéis, número de citações, locais em que se tinha publicado, projetos financiados e quantidades de financiamento. Assim, a razão que tinha por dever instigar e incentivar a centelha humana, elevar o humano para além dos limites do pensar, tinha ela própria sucumbido e sido transformada em produto.


Referências

junho 24, 2013

Do humanismo ao mercantilismo. Arte, desporto e universidades.

"Mona Lisa Curse" (2008) é um documentário que trata um assunto bastante sensível em termos financeiros, e por isso mesmo foi jogado para debaixo do tapete. O assunto aqui tratado assola-me há já alguns anos, tendo encontrado aqui uma voz que diz frontalmente muito daquilo que eu penso sobre muita da arte contemporânea, e sobre os mercados da arte. O mais preocupante, é que aquilo que aqui é discutido em termos de mercados, não se veio a aplicar apenas à arte, mas antes se propagou a quase todo o tipo de atividade com valor humano intrínseco.


"Mona Lisa Curse" foi criado por Robert Hughes, crítico de arte durante mais de 30 anos da revista Time, e considerado pela The New Yorker o mais famoso crítico de arte de sempre. Neste filme Hughes dá conta do modo como a arte se transformou num negócio, num investimento de mercado, durante a segunda metade do século XX. Hughes marca o início desta cruzada com a vinda da Mona Lisa para Nova Iorque, em 1963, onde foi exibida no MET durante um mês, tendo tido honras de celebridade de cinema. As pessoas vieram aos milhares para a ver, e nada mais seria igual no mundo da arte. Os museus abriram-se à população, e a arte tornou-se num objecto de cobiça.
"The Kennedys managed to turn the Mona Lisa into a kind of 15th-century television set — instead of 1.5 million people looking at one image flashed on 1.5 million screens, you had them all looking at it on one screen, which was the picture itself, and that was the only difference. They didn’t come to look at the Mona Lisa, they came in order to have seen it. And there is a crucial distinction, since one is reality and experience, and the other one is simply phantom.” Robert Hughes
Em termos financeiros, Hughes diz que o mercado da arte é o maior mercado desregulado do mundo, apenas ultrapassado pelo mercado da droga. Ao longo dos últimos 30 anos, fomos assistindo à evolução, altamente especulativa, do valor da arte. Desde o quadro de Warhol, "Men in Her Life", que não passa de uma reprodução de várias fotografias de Elizabeth Taylor, vendido em 2010, por Jose Mugrabi, por 63 milhões de dólares até à insanidade da compra de "The Card Players" de Cézanne pela Família Real do Qatar, por 250 milhões de dólares em 2011. As razões destes valores, nada têm que ver com as obras em si, nem com os seus autores, a única coisa relevante aqui é a garantia do investimento. Ou seja, são valores que o mercado acredita serem possíveis recuperar no futuro, mas estamos no puro reino da especulação, a criar um bolha que mais tarde, ou mais cedo, acabará por rebentar.

The Physical Impossibility of Death in the Mind of Someone Living (1991) de Damien Hirst. Avaliado em 12 milhões de dólares. Uma obra tão única, que em 2006 devido a deterioração do animal,  a obra teve de ser refeita, com um novo tubarão!!!

O problema agrava-se quando falamos de arte contemporânea, e de artistas como Jeff Koons, Damien Hirst, ou no caso português de Joana Vasconcelos. Como diz Hughes, os preços das suas obras são totalmente manipulados pela promoção e publicidade, e nada têm que ver com a qualidade das mesmas.
“The market is manipulated by collectors who decide to bid up the work of an artist [they’ve already invested in]. So when artist X comes up on the auction block, the collectors all bid it up, so that they can then multiply the value of their existing holdings in artist X by the value of the inflated sale.” [Telegraph]
Enquanto via este documentário, não conseguia parar de pensar, no que pensariam os colecionadores depois de verem aquilo que Robert Hughes diz de forma tão frontal. Mas a reposta à minha questão não tardou, descobri que este documentário passou uma única vez em Inglaterra, no Channel 4, a 5 de Dezembro 2009, às 18h. Não foi vendido para mais nenhum canal de televisão. Ou seja, não só não passou mais vez nenhuma na televisão britânica, como não passou em nenhuma televisão de qualquer outro país do mundo. Mais, não existe à venda em nenhum formato, nunca foi editado por qualquer instituição ou empresa. A única cópia que circula online, é a gravação dessa única vez que passou na televisão, e é difícil de encontrar online, porque está constantemente a ser retirada dos sites por infração de direitos, ao contrário da maior parte dos documentários sobre arte da BBC. Isto é obviamente fruto do poder de influência dos senhores que são ridicularizados no filme. O documentário não é apenas uma afronta à sua intelectualidade, é antes de mais um verdadeiro perigo para a valorização da sua "mercadoria".

Um discurso como o proferido por Robert Hughes, um dos críticos de arte mais importantes do século XX, pode deitar abaixo muito do valor especulativo que muitos artistas têm granjeado. Como diz Hughes, o trabalho de Andy Warhol era vazio, a sua importância foi fabricada, tal qual uma campanha de promoção nos media. Algo que Dali também seguiu quando foi para os EUA. Estamos a falar da valorização da imagem, do estatuto de excentricidade que confere distinção e celebridade, para assim conseguir inflacionar a sua importância, e no final o seu valor. No final do documentário Hughes conversa com o colecionador, Alberto Mugrabi, filho de um dos detentores da maior colecção de artefactos de Andy Warhol, e pergunta-lhe o que ele pensa de Warhol. Aqui fica o diálogo,
Mugrabi: "I think Warhol is probably one of the most visionary artists of our time." 
Hughes: "I thought he was one of the stupidest people I have ever met in my life." 
Mugrabi: "Why is that?"
Hughes: "Because he had nothing to say." 
Posso até admitir que Hughes reage com demasiada violência, talvez com algum ressabiamento. Ou até que simplesmente não foi capaz de evoluir com os tempos, se manteve preso aos seus parâmetros do passado. Nomeadamente no caso dos museus, não posso de todo defender instituições fechadas. Acredito que estas devem estar abertas à população, e tudo devem fazer para conseguir atrair as pessoas até si, para que possam todas usufruir de obras que pertencem à humanidade. Agora Hughes tem razão quando ataca o caminho trilhado no sentido da massificação dos museus, no modo como se tornaram em máquinas de fazer dinheiro. Um museu deveria servir de guardião de obras únicas, não deveria dedicar-se a celebrizar as obras, a transformar a arte numa mercadoria de promoção do nome do museu.

O maior problema, é que não foi apenas a Arte que se transformou nisto, tudo no ocidente se transformou nisto. Desde a FIFA e o Comité dos Jogos Olímpicos no mundo do desporto, às grandes Universidades americanas, que agora exportam os seus modelos para todas as europeias, tanto na Educação como na Ciência. Há 20 anos seria impensável uma universidade fazer um spot publicitário, hoje tornou-se banal. Em Portugal podemos até ouvir, na rádio, universidades a anunciar duas licenciaturas pelo preço de uma. Ou seja, não interessa o que se aprende, interessa apenas o canudo, o valor da mercadoria que se compra.

O mercantilismo simplesmente canibalizou o humanismo. Em nome de uma alegada auto-sustentabilidade financeira, vale tudo. Os sistemas de produção de conhecimento e cultura - Educação, Ciência, Arte, Deporto, etc - precisam de se autojustificar constantemente, porque a sociedade simplesmente deixou de os considerar valores intrínsecos da humanidade. Tudo depende agora de alguém com dinheiro, que lhe ache graça, e decida investir. E assim, a arte, a ciência, a cultura, o desporto, passam a ter o valor que os mercados lhe atribuem, nada mais do que isso.


Caso o vídeo acima deixe de estar disponível, use este link para fazer download (400 mb).