novembro 19, 2017

Técnicas de colagem em literatura

Gosto de colagem, mas não gosto da colagem. Expandindo, gosto do processo criativo por detrás da colagem usada nas artes visuais, mas raramente me entusiasmo com as obras resultantes, ficando-me pelo prazer que retiro da apreciação dos processos criativos. Com “Outono” (2016) de Ali Smith, aconteceu-me o mesmo, e por isso dei por mim a refletir sobre as técnicas e objetivos da colagem enquanto terminava a sua leitura.

O tradutor, Manuel Alberto Vieira, não surge destacado na capa por acaso, fez um excelente trabalho, capaz de converter o impacto da lírica em inglês para português.

A colagem é um processo ancestral, apesar de cunhado apenas nos tempos do Modernismo, já que só nessa altura ganha relevo, porque ganha adeptos que lhe dão esse relevo, tais como Georges Braque e Pablo Picasso. Para isso contribui também a revolução que decorria, por essa altura, em redor do significado da arte, dos seus criadores, técnicas e acima de tudo objetivos. Mas contribui também os efeitos da revolução industrial que veio permitir um controlo muito mais fino dos distintos elementos, pelas diferentes colas e vernizes fundamentais na sustenção das diferentes técnicas. Neste sentido temos a procura do Novo junto com o Poder do industrial, e por isso não admira que a colagem assente num processo industrial de montagem, ou como viria a ser definido mais tarde, de assemblagem. Ou seja, juntar diferentes partes de materiais e formas com vista a criar um novo todo.

Em “Outono” a protagonista Elisabeth é professora de história de arte, tendo realizado uma tese sobre uma artista real, Pauline Boty [1938-1966], uma das poucas artistas britânicas a trabalhar o domínio da Pop Art, seguindo as passadas de Andy Warhol. Smith poderia ter-se ficado pela referência, mas não o faz, Boty ganha um papel central, tornando-se não apenas protagonista, mas ao mesmo tempo uma influência maior nos temas discutidos, e mais relevante ainda, do meu ponto de vista, na técnica literária.

Assim, se ao começar a leitura me deslumbrei com a lírica incutida, aos poucos fui detetando que a poética de Smith não assumia um caráter regular, que não era só o tempo que variava terrivelmente, o discurso eram discursos que mudavam de tom, os temas salpicavam de tudo um pouco, e a beleza rítmica nem sempre emergia. A meio do livro comecei a enfastiar-me, comecei a desprender-me, ao mesmo tempo que tentava compreender o que estava a acontecer, dizendo para mim próprio, “tudo isto não passa de um amontoado de eventos presos por fita cola”! E então fez clique, compreendi o que Smith estava a tentar fazer, o seu estilo não era só distinto e novo envolvido por qualidades poéticas, tinha um propósito, Smith seguia as pegadas da sua protagonista, Boty, e criava assim uma espécie de colagem literária. 

"54321" (1963), é uma das obras de Pauline Boty mais citadas ao longo de "Outono"

Podemos pensar que não é bem a mesma coisa, já que a colagem escrita não é nova, e mais, é algo ligeiramente distinto. Quantos experimentos não foram já desencadeados a partir da mescla de múltiplos textos distintos, por vezes feitos por múltiplos autores ou em múltiplas épocas distintas, mas com o objetivo de criar uma obra una. Aliás, o que é “Ulisses” (aqui analisado) se não uma grande colagem literária de estilos de escrita? Mas Joyce assume essa colagem, separa, para que não restem dúvidas, os estilos em capítulos. Smith não o faz, Smith nunca assume a colagem. Mas olhando para a arte de Boty, o que vemos é exatamente isso, colagem não assumida. Repare-se como a colagem em Boty existe não existindo, ou seja, o que temos é uma técnica única (pintura a óleo) numa tela, da qual brota uma imagem que assume características da “colagem”. Ou seja, os elementos pertencem a outros materiais (fotografia, jornais, etc.) mas esses são aqui reconstruídos, se separados na proveniência autoral e material, aqui surgem juntos porque redesenhados sem recurso material aos originais. Do mesmo modo, Smith seleciona e corta múltiplos elementos distintos que insere no seu discurso por recurso a mudanças no tempo, espaço, e vozes distintas assumidas pela narração (o discurso indireto livre, tão amado pelo Modernismo). 

"It's a Man's World I" (1965) de Pauline Boty

"It's a Man's World II" (1965) de Pauline Boty

Neste sentido, é muito interessante a desconstrução que Smith faz da obra de Boty, de que aqui realço o destaque dado à tela desaparecida, "Scandal '63" (ver abaixo), na qual surge pintada uma fotografia, tornada icónica, de Christine Keller, a figura central do escândalo britânico Profumo (recomendo a visualização do filme "Scandal" de 1989 para compreender o caso). Dessa tela sobrou apenas uma prova da sua existência, uma fotografia (ver abaixo), mas o mais interessante é que nela, Boty não recorre a fotografia icónica (ver abaixo), mas antes a uma variante dessa. Ou seja, Boty terá tido acesso aos negativos da sessão fotográfica, tendo escolhido uma muito próxima, mas distinta (ver abaixo). Deste modo, Smith não apenas fictiona mas aproveita para lançar leituras interessantes sobre a arte de Boty. Numa nota lateral, aproveito para dizer que conhecer, ou procurar informação sobre o escândalo de 63, sobre a artista, tal como estar por dentro do sucedido com a campanha do Brexit é central para conseguir ligar os distintos elementos que Smith vai assemblando ao longo das páginas.

 A fotografia que nos mostra Boty segurando a tela desaparecida "Scandal '63" em 1963.

A fotografia icónica de Christine Keller, figura central do escândalo de 1963, por ser amante, aparentemente ao mesmo tempo, do Secretário de Estado de Guerra, John Profumo, e de um espião russo, Yevgeny Ivanov.

Os negativos originais da sessão fotográfica de Keller, em que se pode ver a imagem selecionada por Boty para a sua tela (a segunda na vertical, mais à esquerda).

Mas, como dizia na abertura, se adorei compreender o processo criativo, o resultado não me entusiasmou, e não porque a escrita de Smith não seja excecional, mas antes por algo mais perceptivo, mais experiencial, porque do mesmo modo também não me encantei pelas obras de Pauline Boty, assim como também nunca me apaixonei com as colagens de Hannah Höch, entre outros criadores do movimento. No fundo, e voltando a Joyce, reconhecer a qualidade técnica, admirar o virtuosismo, compreender o alcance do que se pretende não é suficiente para nos fazer sentir. Não que não nos provoque, repare-se como o João Carlos Pereira na sua resenha no Goodreads, captou muito bem o efeito deste processo de assemblagem:
"Registo apenas alguns dos adjectivos que me suscitaram a leitura da novela "Outono": "versátil – desconcertante - decepcionante – mutante – original – extravagante - ilógica – surpreendente – admirável – desequilibrada – repetitiva – inconsistente – confusa – heterogénea – incombinável – desigual – complexa – incompreensível – fatigante – invulgar."
Por outro lado, “Outono”, dito pela própria autora, é apenas a primeira parte de quatro. Ou seja, li apenas um quarto de um todo, e talvez exista muito mais nos restantes volumes que assumo poderem vir a alterar o meu sentir sobre um todo que ainda desconheço. Não sabemos se o Brexit continuará sequer a surgir como pano de fundo, que diga-se, está para mim ainda demasiado "quente", para se dar à literatura. Repare-se como o assassinato de Jo Cox surge aqui quase em nota de rodapé, algo que me incomodou, mas que provavelmente não poderia ser diferente, já que correria o risco de contaminar o resto da narrativa. Mas é provável que o tempo continue a ser central, não apenas pelo modo como Smith brinca com as disparidades de idades dos protagonistas que "viajam no tempo", mas especialmente pelo que se pode resumir num dos momentos mais altos deste volume, em que soltei várias gargalhadas em catadupa, quando se define o sucedido com a obra de Pauline Boty da seguinte forma:
"Ignorada. Perdida. Redescoberta anos mais tarde. Depois ignorada. Perdida. Redescoberta novamente anos mais tarde. Depois ignorada. Perdida. Redescoberta ad infinitum." (p.196)

novembro 14, 2017

Animação: "À Noite Eu Danço com a Morte"

Não tem grande história, é mais um filme de fim de curso francês, mas são seis minutos de puro deleite e encanto visual. "La Nuit Je Danse Avec La Mort" (2017) parte de uma aparente apologia das drogas para nos levar até à salvação pelo amor, mas a premissa acaba servindo para nos levar até à vertigem da imaginação, aos mundos alterados das realidade alternativas, psicadélicas e fantásticas.




Vincent Gibaud, formado na LISAA, conseguiu financiamento através de crowdsourcing, e juntou ao seu grupo de trabalho uma equipa de quase 50 pessoas para nos dar a ver esta pequena jóia da animação. Em termos técnicos, não temos nada de muito excecional, mas a coesão e a simbiose entre o que se mostra e pretende dizer é tão intensa que não conseguimos desligar do filme, nem depois deste terminar.

 "La Nuit Je Danse Avec La Mort" (2017) Vincent Gibaud

novembro 12, 2017

A Avó e a Neve Russa (2017)

O autor, João Reis, conseguiu surpreender-me com esta segunda obra, ao mudar completamente de registo, desde a escrita ao tema, ainda que mantendo alguns laivos daquilo que poderá vir a dar contornos à sua marca autoral. Claro que a isto não é alheio o facto de o livro ter nascido de uma residência artística no Canadá, o que vem dar razão a muito daquilo que sabemos, em termos criativos, sobre o contexto cultural e a mudança, e os seus impactos na mundividência e imaginário. Por outro lado ainda, este segundo livro de João Reis tem mais fôlego, dando conta da sua capacidade para gerar e gerir complexidade narrativa.


Começando pelo menos bom, a escolha de uma criança de 10 anos para protagonista foi um risco tremendo, e se foi praticamente superado, era inevitável o surgimento de deficiências. Olhar o mundo, de modo dramático, pelos olhos de alguém ainda em formação, tão distante ainda da consciência completa do drama que habita, é muito complicado. Salinger enfrenta problemas parecidos em “Uma Agulha no Palheiro”, apesar de estar a lidar já com um adolescente. O nosso protagonista aqui aproxima-se mais, em idade, de Tom Sawyer e Huckleberry Finn, mas Twain foi mais inteligente fugindo às complexidades do drama, desenhando tudo sobre um novelo de aventuras, recorrendo a personagens secundárias para introduzir níveis mais complexos de análise da realidade.

No campo narrativo surgem também alguns problemas que me parecem motivados pela necessidade de cumprir com a encomenda da residência artística, ou seja, a construção  de um cenário cosmopolita. Mas se a multiplicidade de proveniências dos nossos personagens é totalmente credível num país reconhecido pela sua construção a partir de todas essas identidades, o facto de Reis se servir das várias grandes tragédias ocorridas nos países de cada um dos provenientes torna o cenário narrativo menos orgânico e insuflado de premeditação na escolha dessas origens. O ponto que mais negativamente me marcou foi a aproximação entre o Holocausto e Chernobyl, em que se sente o recurso ao elemento emocional, indo depois mais longe, até ao simbólico (manequins). Este último ponto, do simbólico, metáforas figuradas, já vem de trás em Reis, parecendo ser uma marca que procura instituir nos seus textos, mas que é algo que não abona em favor da explicitude dos mesmos.

Dito tudo isto, o livro é mais, e se tem problemas tem tanto ou mais virtudes. Desde logo o personagem, que sofrendo ocasionalmente de alguma inverosimilidade, acaba por funcionar como uma âncora a que nos agarramos e não mais largamos até à última página do livro. A sua inocência e ingenuidade são absolutamente impressionantes, capazes de nos arrastar para o interior das nossas memórias de criança, e ver o mundo pelos olhos dele e nossos, porque Reis conseguiu encontrar o tom perfeito para potenciar a nossa empatia. Existe todo um desenhar de esperança frágil que concorre para nos dar a ver um mundo difícil sob tons menos hostis e que garante o nosso interesse e colagem contínua aos pensamentos da criança.

A narrativa está dividida em duas partes, uma primeira mais de contextualização em que nos é dado a conhecer o mundo daquela criança e os conflitos que a rodeiam, e uma segunda parte em que se enceta a aventura, que acaba por fazer valer todas as virtudes daquela criança. A sua inocência e esperança alimentam e propulsionam o sentido narrativo, muito alimentado pelo companheiro de viagem e pelas diferentes peripécias que vão tendo de enfrentar. Neste sentido, Twain tinha razão, as aventuras com amigos e os encontros fortuitos permitem dar a ver muito mais do interior das crianças, do que uma abordagem dostoyevskiana de entrar pela psicologia dos personagens adentro. O companheiro que segue com a criança, e os diferentes conflitos encontrados, funcionam literalmente como espelhos externos do interior da criança, e por isso vamos sentido que a conhecemos cada vez melhor com o progresso de toda essa segunda parte.

Tudo isto é servido por uma história que não tendo nada de muito original, nem muito particular, acaba por dar uma volta completa, fechando o círculo de sentidos, preenchendo por completo a nossa necessidade de significados. A criança cresce com o passar de páginas, e nós crescemos com ela, o mundo que era mais distante e alimentado pela ingenuidade, vai-se tornando mais real e consequente. Nada é fácil nesta nossa realidade, e se em criança a ausência de compreensão parece facilitar o atravessar e aceitar das dificuldades, nada nos garante que em adultos tenhamos atingido a plenitude da compreensão dessa realidade. Talvez o fundo da questão não assente na não compreensão, talvez o nosso problema em adultos seja antes o foco circunscrito aos problemas e conflitos, esquecendo tudo o que de bom existe em nosso redor, permitindo que o lado negativo acabe por toldar todo o lado positivo que a vida também contém.

novembro 11, 2017

Animação portuguesa no i9

A animação "Macabre" de Jerónimo Rocha e João Miguel Real realizada em 2015, chegou à rede há quinze dias através do canal Dust, especializado em curtas de ficção-científica, tendo sido ontem objeto de destaque no i9, um dos sites de referência sobre tecnologias, inovação e ficção-científica. Se não fosse por mais nada, já mereceria o destaque aqui pelo modo como foi recebido na rede, apesar de que pela informação que consegui obter, o filme não ter tido grande sorte nos festivais. Estas duas abordagens, ou recepções são interessantes já que dão conta da ambivalência que senti ao ver o filme.




Começando pelos festivais, e pela estética da obra, podemos dizer que o filme atinge pontos bastante altos em termos de cenário, ambiente e atmosfera, muito à custa da ilustração e design de som, assim como da composição e enquadramentos. No campo da animação, estando longe da perfeição, oferece não raras vezes momentos bem conseguidos, que nos prendem e tornam credível toda atmosfera. Contudo o filme peca em duas componentes demasiado evidentes, a duração (19 minutos) e a estrutura narrativa. Poderia entender a vontade de estender a duração para ajudar à criação da emocionalidade de suspense, mas é claramente excessiva, acabando por obrigar os criadores a recorrer não apenas a redundâncias como a clichês, o que ainda a meio do filme já começa a fazer perder o interesse da audiência. A duração acaba por ter impacto na narrativa, nomeadamente porque por via da necessidade de enchimento do tempo acabam surgindo ideias gastas, imensamente vistas, sem ponta de originalidade e que mereciam ter ficado de fora. Porque se a elipse narrativa que segura a síntese da obra é muito boa, uma boa parte do trabalho criado para preencher o interior da elipse é, muito honestamente, mediano.

Ou seja, se o i9 e o Dust têm interesse no filme é pela elipse narrativa desenvolvida, que acaba por dar todo um sabor instigatório ao texto da obra, fazendo-nos refletir e voltar atrás no filme mentalmente para recuperar o que vimos, e voltar a sentir o todo mais intensamente. Mas diga-se, não era necessário o recurso a Escher para tal, ainda que pudesse ter surgido como homenagem, assim como não eram necessárias as quantidades de redundâncias que vão surgindo, parecendo os realizadores ter receio que o público não compreenda o que se vai passando. A premissa que segura a elipse é per se imensamente forte, e acredito que se o filme tivesse menos de metade da sua duração, tendo em conta a qualidade apresentada nas diversas componentes artísticas, teria conseguido chegar bastante mais longe em termos de reconhecimento.

"Macabre" (2015) por Jerónimo Rocha e João Miguel Real

novembro 08, 2017

Sentidos e Tecnologia

O mais recente episódio da série Dark Web do Nowness — uma série de pequenos filmes que segue o género "Black Mirror" — intitula-se "Senses" (2017) e responde literalmente pela designação, criando uma experiência, de cinco minutos, que nos entra pela mente adentro ativando toda a nossa visceralidade.



O melhor da curta, em termos narrativos, advém pela estrutura e progressão, que começa por nos agarrar por um lado mais narcisista e techno-sexual, evoluindo por diferentes possibilidades até à consagração pela RV. No campo da direção artística temos todo um trabalho de cor e montagem que fazem notar como tudo segue em crescendo, adotando a linguagem audiovisual uma estética que serve a impressão de sentires, substituindo-se à ausência dos estímulos reais presentes na diégese virtual. Tanto a narração como a direção artística acabam por desenvolver um filme bastante singular, simultaneamente sensorial e autoral. Em entrevista, Fran de la Fuente, diz
"I’m fascinated by cinematography in general. A lot of what’s on the final picture was worked on in the early stages of the script. We wanted to create a very specific and accentuated look. That required designing, in detail, every scene prior to shooting. We used a wide colour palette, and worked with contrast, depth of field and camera movements. Above all, I think one of our biggest successes was finding the right locations! Throughout the whole project we complemented each other very well; we contributed what each of us knew better and is more passionate about. But we also took a lot of risks, and we achieved many of them! "
"our objective was to work mostly on fashion and advertising. Like scenes and settings. In that sense we were inspired by many other young directors of music videos, short films like ours, and so on. Also, for me personally, Black Mirror is beyond any doubt a clear visual and narrative inspiration. "
O filme é um trabalho completamente independente, financiado pelos próprios criadores, Alexan Kevork Sarikamichian e Fran de la Fuente, ambos argentinos e formados na Universidad del Cine, Buenos Aires, sendo a música também original para o filme.
"Senses" (2017) de Alexan Kevork Sarikamichian e Fran de la Fuente (mirror link)

novembro 07, 2017

Animação: "Eu Estou Aqui"

A componente visual é tão despida e a animação tão conseguida que para os mais desatentos pode parecer apenas mais uma pequena curta a falar de problemas existenciais. Mas, se pararem de seguir a história e mensagem, e atentarem no detalhe do que nos está a ser dado a sorver audiovisualmente, vão perceber a profunda mestria da arte da animação.




O que temos aqui é apenas uma pequena mancha branca que se movimenta, e sobre a qual se movimentam três traços principais, os olhos e a boca. É verdade que a voz é sumptuosa, rica em textura, cheia de dramatização, mas é a imagem que lhe dá o encanto, e faz o todo transcender-se. O modo como os olhos vão da indiferença à tristeza, e como a boca dá corpo às palavras que se vão ouvindo, tudo junto com o menear da cabeça ao ritmo do discurso, torna a animação praticamente hipnótica.

"I'm Here" (2016) de Eoin Duffy

Por outro lado, a mensagem é também muito forte, e vale a pena ver até ao final, ainda que o resultado possa sentir-se críptico, a sinopse — "Alone in an aging cosmos, a traveller’s pilgrimage comes to an end." — e uma segunda visualização ajudarão sem dúvida a chegar ao âmago da ideia.

novembro 05, 2017

Depois do Fotorrealismo

No outro dia deixei aqui algumas questões a propósito dos avanços da Inteligência Artificial no campo das artes digitais o que gerou alguma discussão, tendo depois o Artur Coelho partilhado, em resposta no Facebook, o video-ensaio "Goodbye Uncanny Valley" (2017) de Alan Warburton, que pode ser visto no final deste texto. Entretanto a Nvidia colocou online um vídeo impressionante (ver imediatamente abaixo), junto ao texto "Nvidia reveals photoreal fake people portrait generator", no qual dá conta dos resultados da investigação que tem andado a desenvolver em redor da IA e do fotorrealismo. Vale a pena espreitar esta evolução da Nvidia antes de entrar no vídeo de Warburton em que se discutem novas estéticas do pós-fotorrealismo.

  Nvidia reveals photoreal fake people portrait generator

O trabalho de Warburton pretende exatamente discutir o que teremos depois deste fotorrealismo que não só se se tornou hoje uma realidade, como uma realidade criada pelas próprias máquinas. Para o efeito propõe um enquadramento para análise com que concordo, constituído por 4 dimensões: "Uncanny Valley", "Frontier", "Wilderness" e "Beyond". As duas primeiras dizem respeito ao momento atual, sendo brevemente analisadas nos seus aspetos mais comerciais e incrementais. As duas últimas dizem respeito à possível resposta que a arte tem para dar ao avanço tecnológico.

Enquadramento do CGI por Alan Warburton

A dimensão de "Beyond the Frontier" é subdividida em três grandes vectores: "Post-Truth"; "Post-Cinema"; "Theoretical Photorealism". Os três casos são paradigmáticos do que temos vindo a assistir no mundo das artes visuais e audiovisuais, colocando em causa muitas das fundações de realidade que detínhamos, ao mesmo que tempo que abre perspectivas imensamente ricas sobre aquilo que nos espera nestes campos. Ou seja, se os casos de post-truth dão conta de potenciais distopias, o "post-cinema" mostra-nos todo um novo mundo cinematográfico que nos aguarda, e o "theoretical photorealismo" dá-nos ainda mais esperança, ao juntar a arte e ciência.




Já a dimensão de "Wilderness" apesar de ser aquela que mais encaixa numa conceptualização de Arte, no seu sentido de procura pela subversão dos paradigmas existentes dos usos e potenciais das técnicas e tecnologias, acaba sendo aquele que para mim menos oferece em termos de novas ideias. Reconhecendo o engenho e a criatividade dos artistas por detrás das diversas obras apresentadas, tendo adorado a maioria delas, ficam-se pela subversão, tal como ficaram os movimentos do modernismo — surrealismo, dadaísmo, cubismo, etc. Não é suficiente fazer diferente, introduzir estranheza, grotesco ou barroco, para que as ideias possam seguir sendo utilizadas e transformadas, é preciso algo mais.

"Goodbye Uncanny Valley" (2017) de Alan Warburton

novembro 02, 2017

"Stranger Things 2" e os Media nos 80

“Stranger Things 2” não difere muito da primeira temporada no que toca ao conceito, diferenciando-se no entanto bastante a nível técnico, desde a escrita à cinematografia.  Nota-se um cuidado tremendo, tudo foi muito pensado e analisado, cada detalhe que vemos, ouvimos ou percepcionamos foi lá colocado com um objetivo muito concreto, o que garante a toda a série uma coerência impressionante, e explica em parte o seu sucesso.

A televisão como centro da cultura dos anos 1980

Este caráter técnico muito cuidado acaba por contrastar com o tema de fundo da série, os anos 1980, um tempo em que muito do que se fazia estava longe da perfeição. Mas o trabalho de realização não se limita a repescar ou a prestar homenagens a obras dessa época, toda a estrutura narrativa assenta numa mescla de padrões decalcadas dessas obras. As estruturas mais evidentes surgem desde logo pelo uso do grupo de crianças que partem à aventura ("ET", 1982; "The Goonies", 1985; "Explorers", 1985) a que se junta o padrão do grande mal que veio do desconhecido ("The Evil Dead", (1981) "The Thing", 1982; "Aliens", 1986). Neste caso a série é mais arrojada que por exemplo o filme “Super 8” (2011), pois não se constrange no uso do horror.

Um dos múltiplos postais de promoção da série que citam diretamente filmes de horror, no caso "Aliens" (1986), ao que junta a data prevista de saída, junto ao Halloween.

Os anos 1980 não são os primeiros a ter direito a este tipo de adaptações, no entanto são os que têm ostentado mais sucesso. Por exemplo Netflix produziu uma outra série, “The Get Down”, dedicada aos anos 1970, tendo recorrido ao respeitado cineasta Baz Luhrmann, mas que não passou do episódio 11, apesar de um resultado audiovisual excepcional. Contudo o público alvo dos anos 1970 é muito mais escasso, desde logo porque nessa década a televisão e o cinema ainda não tinham assumido o controlo total da cultura, o que fez com que muitos dos que viveram essa época não tenham acedido a veículos de massificação de cultura. É verdade que existem alguns resquícios dessa identidade massificada nos anos 1970 mas mais no campo musical. Aliás, talvez não seja por acaso que “The Get Down” se baseie na música, no "disco sound".

Série “The Get Down” (2016-2017) da Netflix

Neste sentido, podemos dizer que muito do que alavanca a recuperação da cultura dos anos 1980 se deve ao facto de termos, hoje, as gerações que viveram nessa época a sua adolescência, em lugares centrais de poder, desde as empresas às universidades, passando por tudo o que é comunicação social e produção cultural, mas aquilo que os torna verdadeiramente particulares é o facto de pela primeira vez termos tidos obras de massificação global da cultura, que chegaram a quase todas as geografias e de forma muito rápida, por meio da Televisão. Se olharmos à evolução dos media e à produção cultural que os alimentava, existem pelo menos dois elementos centrais: por um lado, o aumento da relevância da televisão na cena pública, que faz com que aumente a necessidade de maior produção de produtos audiovisuais, em que se inclui a necessidade da música começar a surgir com telediscos; e por outro lado, sendo a televisão hegemónica, e ainda sem o espartilhamento em canais segmentados, os mesmos ideais, valores e identidades vão ser repassados para todos de forma igual. Podemos dizer que os anos 1980 funcionaram como a ponta de um funil, que fez convergir toda a diversidade cultural que vinha de trás. E repare-se como tudo isto vai começar a desaparecer a partir do meio da década dos anos 1990, quando a internet surge e começa a tomar conta dos interesses das gerações que estão nessa altura a crescer.

A semelhança com "Close Encounters of the Third Kind" (1977)

Isto acaba por conduzir “Stranger Things 2” a um paradoxo em termos de media, porque se a maioria da cultura que suporta os anos 1980 na série provém diretamente do cinema (The Exorcist, 1973; Jaws 1975; Close Encounters of the Third Kind, 1977; Halloween, 1978; The Warriors, 1979; Escape from New York, 1981; Poltergeist, 1982; The Thing, 1982; E.T. the Extra-Terrestrial, 1982; Gremlins, 1984; Ghostbusters, 1984; Indiana Jones and the Temple of Doom, 1984; Karate Kid, 1984; The Goonies, 1985; The Terminator, 1984; The Breakfast Club, 1985; Stand by Me, 1986, ver muitas outras referências e ainda mais), isso só se explica porque a geração que recorda estes filmes, não se recorda de os ter visto nas salas de cinema, mas na televisão. Do mesmo modo, se a série é supostamente uma série de televisão, o media que a suporta é a Web (Netflix), e muitos dos que hoje a veem não usam a televisão para a sua visualização. No fundo temos um produto de televisão que homenageia o legado cultural da televisão, não tendo esta estado na base da produção, nem antes nem depois. Isto está relacionado com o afunilamento cultural do parágrafo anterior, mas merecia todo um estudo per se.

Voltando à série em si, é impossível não falar do modo como exerce a sua atração sobre os espetadores. Já percebemos que o tema são os anos 1980, o cinema, a música e a televisão dessa época. Já percebemos que existe um público muito alargado de pessoas que se identificam com essa época e essa cultura, e que garante à partida o sucesso da série. Este público está hoje na meia-idade, e como disse acima algum dele até bem posicionado na sociedade, mas isso não o impede de se questionar sobre o que conseguiu e não conseguiu, de voltar às dúvidas existenciais que pensava terem desaparecido com o final da adolescência. Para muitos, esta série é o antidepressivo perfeito, já que os leva de volta à idade da inocência, antes do conhecimento dos problemas, das responsabilidades, dos empregos, casa e filhos. De certa forma podemos dizer que a pré-adolescência e adolescência representa para uma parte significativa de pessoas, o eldorado desta vida, o tempo em que a imaginação era tudo, e a criatividade era ilimitada, mesmo que os adultos e professores teimassem em dizer que não. Depois de adultos, mesmo com algumas pergaminhos na parede e sem falta de meios no bolso, tudo parece mais vedado e artilhado à nossa volta. Pode-se fazer muito mais, ir de férias, adquirir a consola ou televisão que se quiser, comer a doçura que nos apetecer, quantas vezes no apetecer, mas a liberdade de que se dispunha, de que o mundo estava a nossa mercê desapareceu, sendo que o que verdadeiramente aconteceu foi a nossa transformação, ganhámos consciência dos limites que a sociedade nos impõe e por isso dos nossos próprios limites. “Stranger Things 2” abre uma janela, ainda que temporária, para esse mundo sem limites.

Por outro lado, e apesar da série ser recomendada para adultos, os seus principais intérpretes são um grupo de crianças, pré-adolescentes, que servem de padrão narrativo em analogia aos filmes dessa época, e acabam por trazer para a frente do ecrã pais e filhos, mas nesta segunda temporada parece existir algo mais. Os pré-adolescentes em cena, não estão apenas a fazer o papel de crianças nos anos 1980, gerando identificação com as crianças de hoje, estão ainda a gerar identificação direta entre os espectadores agora adultos e as suas nostalgias de criança. Existem dois momentos em que isto é muito evidente: a abrir a temporada, no salão de jogos, e a fechar a temporada no baile de finalistas. Em ambos os casos, os miúdos não teriam idade para ali estar, contudo se ali aparecem, é acima de tudo para manipular as memórias que vamos revisitando por meio dos estímulos que as referências cinematográficas vão gerando.

No fundo, “Stranger Things 2” é um cocktail de estímulos desenhado para nos impactar emocionalmente, para nos agarrar através daquilo que mais prezamos nas nossas vidas, as memórias das nossas experiências. Sendo estas memórias um reflexo do que fizemos, mas mais do que isso, daquilo que somos ou daquilo em que nos tornámos. Porque é nestas memórias que as nossas emoções mais profundas se baseiam para nos ajudar a reagir, é aí que estão gravadas as nossas decisões morais, sobre o que correu bem e correu mal, e por isso quando ativadas reagem fortemente. Neste sentido, não admira que tantos e tantos espectadores se digam profundamente afetados emocionalmente pela série.

novembro 01, 2017

O Pai Goriot (1834)

Foi o meu primeiro Balzac, apesar de não ter sido a minha primeira escolha. Comecei com “Ilusões Perdidas” mas ao fim de pouco mais de 50 páginas, a falta de dinâmica associada ao número de páginas que me aguardavam (736) fez-me ir à procura de uma obra mais acessível. Segui para “O Pai Goriot”, uma vez que vinha rotulado de emblemático e simultaneamente tinha sido o seu maior sucesso de público, logo teria que ser mais acessível. Enganei-me, foram precisas quase 80 páginas para surgir uma cena de envolvimento do leitor, ainda assim a pouco mais de meio senti que devia desistir, não era para mim, no entanto persisti e ao fechar da última página dei por mim totalmente rendido à mestria de Balzac.


A razão para ter sido tão difícil entrar em Balzac prende-se essencialmente com algo que tenho vindo a identificar em vários autores — Stendhal, Eça, entre outros — que trabalham no fio da relação estética entre o romantismo e o realismo. Podemos quase chamar-lhes uma espécie de pré-realistas, no sentido em que trabalham os temas realistas, mas ainda agarrados a ferramentas românticas. A primeira evidência de tal é a beleza da lírica, a de Balzac é verdadeiramente sumptuosa, mas que acaba por privilegiar o belo da forma em detrimento da compreensão das ideias. A segunda evidência tem que ver com o modo como realizam as descrições dos espaços, apegando-se ao detalhe numa busca por afirmar a total realidade do que se relata, mas que acaba resvalando para o excessivo e hiperbólico, propriedades caras ao romantismo. Tenho no entanto de dizer que foi por este modo de trabalhar que chegámos à essência do que mais interessa no realismo, a complexidade dos personagens, e neste campo Balzac é magistral.

Deste modo se a narrativa começa bastante lenta, incapaz de nos agarrar, derivado de um excessivo trabalho de contextualização, aos poucos vamos conhecendo os personagens, e vamos compreendendo que eles são muito mais do que aquilo que nos pareceram no primeiro quadro, no segundo e no terceiro. As personagens são ricas em dimensões de si, porque pensam uma coisa mas procuram fazer outra; porque quando pressionadas pelo tecido social, respondem em função da figura que os pressiona mesmo que isso contradiga os seus princípios; porque na sociedade em que habitam, cumprem diferentes papéis sociais, sendo ao mesmo tempo: pais, amantes, amigos, inquilinos, patrões, esposos, sogros, ricos e pobres.

Pegando em toda esta belíssima caracterização de personagens criada por Balzac, podemos avançar para a temática de fundo de “Pai Goriot”, que se centra nos processos de ascensão social na cidade de Paris, no início do século XIX. Para o efeito Balzac coloca-nos no lugar de um jovem, Rastignac, chegado à grande cidade, provindo de famílias humildes, que vem atrás do elevador social da Educação, ou seja fazer o seu curso de Direito. No entanto a pensão em que fica vai levá-lo a conhecer uma miríade de diferentes personagens, cada um conhecedor de diferentes modos de ascender socialmente. Sendo vários deles muito relevantes, o principal é o Pai Goriot, que aí vive, antes detentor de grande fortuna, mas uma vez oferecida em dote às filhas, que depois o quase renegaram apesar dele não acreditar em tal, vê-se sozinho.

Cena final de Rastignac com o Pai Goriot

Ao longo do livro existe uma viagem continua entre os salões da alta-sociedade parisiense e os espaços mais pobres, como a pensão em que vivem os vários personagens principais, no entanto Balzac praticamente apenas decora os espaços pobres, deixando os da alta um pouco distantes. Neste sentido, e se no início da minha leitura sentia Balzac como mais um burguês tipo daquele século, daqueles que escreveram porque tiveram acesso a fortunas que os dispensaram da necessidade de procura de subsistência, à medida que fui avançando e fui entrando pelos personagens e relatos ficcionais adentro, fui compreendendo que tal detalhe seria difícil para alguém sem experiência do mesmo. Procurando então, verifiquei que Balzac tinha pais que lhe podiam assegurar uma vida cómoda mas não sem trabalhar, os seus pais provinham da pobreza tendo subido com grande esforço, não tendo tido Balzac casas de contactos e conhecimentos abertas diante de si, teve de trabalhar e procurar encontrar-se no meio do frenesim que era a cidade mais populosa daquele século.

Ao chegar ao último terço da obra, com todo o cenário composto, todas as personagens descritas e detalhadas nas suas multi-dimensionalidades, Balzac assume o controlo total do enredo, torna-se metódico no tom e ritmo, tendo eu sentido por vezes que estava a ler mais uma peça de teatro do que um romance, tal a força da dramatização criada. É nesta fase que vamos sentir verdadeiramente o impacto das posições sociais nas relações familiares, e em que Balzac começa a querer tirar-nos o tapete que sustentava a lógica e racionalidade, para nos manipular emocionalmente. Do meu lado, não pude deixar de me levar pela relação entre pai e filhas, por tudo aquilo que a paternidade nos concede, mas também tudo aquilo a que nos subjuga. Não pude deixar de me surpreender pela força do relato escrito ainda no início do século XIX, tão longe ainda das ideias de família nuclear que viríamos a adotar no século XX, mas que mostra bem como todos estes conceitos sociais provêm dos nossos instintos, da nossa necessidade absoluta do social.

O pai Goriot e as suas duas filhas

Dito tudo isto, a obra detém uma tal riqueza de variáveis passíveis de análise, que uma resenha de blog se torna manifestamente insuficiente para dar conta. Claro que não faltam extensas análises académicas, teses completas, sobre a obra e o autor. Também se diga que não é um texto para ser lido uma única vez, tendo em conta a complexidade formal da obra, e o enorme detalhe, é um texto que carece de segundas e terceiras leituras, em função do que se pretenda analisar em concreto. Também não é por acaso que Balzac não se deteve nesta obra única para realizar a sua análise da Sociedade, e se lançou na odisseia da sua vida, construindo aquilo que viria ficar conhecido como "A Comédia Humana", uma série de quase cem livros, mais de dez mil páginas, em que trabalhou infindáveis perspectivas do devir humano.

outubro 29, 2017

O Cérebro Narrativo

Damásio não se cansa de tentar fazer avançar o conhecimento no domínio da consciência, do conhecimento de si, em particular do modo como compreendemos o mundo e a nós mesmos. No estudo “Decoding the Neural Representation of Story Meanings across Languages” (2017), agora publicado na revista Human Brain Mapping, a sua equipa apresenta pela primeira vez, evidências empíricas da existência de estruturas narrativas no nosso cérebro, que se podem encontrar de modo universal nos seres humanos, operando indistintamente em múltiplas línguas, sendo ativadas tanto por meio de histórias orais como escritas, e à partida também audiovisuais.



Não é de agora que se suspeita que existe em nós uma predisposição para estruturar a informação em blocos narrativos, ou seja, criar pedaços de histórias para dar sentido à realidade e mais facilmente memorizar a mesma. Joseph Campbell (1949) apesar de trabalhar em Antropologia e se ter socorrido da Mitologia e da Psicanálise, chegou a afirmar algo como: as histórias estão interligadas com aquilo que somos e desejamos ser. No início dos anos 1980 Walter Fischer defendia a existência de um "paradigma narrativo" que estava na base de toda a comunicação humana, sem o qual não nos entenderíamos uns aos outros. Desde o aparecimento das neurociências que muitos estudos têm sido dedicados a estudar o modo como compreendemos a realidade, e a tentativa por entender o modo como contamos histórias tem sido um dos vetores dessas abordagens.

São múltiplos os estudos que têm sido realizados para compreender o poder do ato de contar histórias e que tem invadido o discurso em quase todas as áreas. [Infografia da OneSpot a partir de dados coligidos por Widrich (2016)].

Ora a estrutura que parece operar as histórias no nosso cérebro é designada como “default mode network” (DMN) tendo sido inicialmente identificada como “"resting state" network that shows high baseline activity when people are asked to rest without engaging in any specific externally-focused task [Raichle and Snyder, 2007; Raichle, 2015].”. Esta estrutura crê-se estar na base de “such cognitive processes as mind-wandering [Smallwood and Schooler, 2015], thinking about one’s self [Qin and Northoff, 2011], remembering the past and imagining the future [Østby et al., 2012], and in general to support stimulus-independent thought [Smallwood et al., 2013].” Por outro lado “the activity in the DMN is consistent when a story is presented in different modalities (spoken vs. written), or in different languages (Russian vs. English to native speakers of these languages), indicating highly abstracted representations of the stimuli in this network [Chen et al., 2017; Honey et al., 2012; Regev et al., 2013; Zadbood et al., 2016].” Num outro estudo realizado por Chen et al. (2017) foi possível encontrar também “evidence that there are shared patterns of activity in the DMN across participants when describing scenes from an audiovisual story”.

Ou seja, os vários trabalhos vêm demonstrando que vamos para além da mera operação sintática — forma das letras e palavras — assim como da mera análise semântica —  sentido das frases, sendo capazes de operar a um nível narrativo, ou “alto-nível semântico”. Isto é, “abstracted beyond the level of independent concepts and language units, the brain seems to systematically encode high-level narrative elements”. Ou seja, trabalhamos por meio do DMN as palavras e os seus sentidos para simular histórias mentais, para assim compreendermos o que nos está a chegar por via dos sentidos. Mas como se diz acima, isto não trabalha apenas com os sentidos, isto trabalha de modo quase-contínuo em nós, alternando com o modo cognitivo de foco (em que exigimos toda a nossa capacidade cognitiva para realizar uma tarefa) operando como uma espécie de máquina de “sonhar acordado”, que nos vai oferecendo pontos de vista sobre o mundo, e sobre nós próprios pela interação com o mundo externo, assim como pela interação entre pedaços de informações provindas de experiências do passado, memorizadas em nós.

Neste sentido quando acedemos a histórias exteriores a nós, pelo facto de usarem a mesma estrutura organizativa que o cérebro utiliza para as simular, recorremos a toda uma “cognitive architecture” que realiza um “stitch together individual words, link events with their causes, and remember what came before to build a holistic understanding”. Isto explica porque é tão fácil conectarmo-nos com o que vai sendo contado, e em certa medida, porque ouvir ou ler uma história, não se diferencia muito de sonhar acordado, o que acaba por dar suporte ao sentimento de “imersão” ou de “perder-se numa história”, o sentimento de esquecimento do mundo real à nossa volta.

No final, a equipa de Damásio veio dar razão a muito daquilo que sempre soubemos: que gostamos de histórias porque o nosso cérebro passa a vida a contar histórias a si próprio; ou ainda que as histórias servem para enquadrar a realidade e compreendê-la, não apenas os seus acontecimentos e os seus mundos, mas mais ainda em particular, as suas personagens, que usamos como modelos para nos colocar no lugar de, para simular e empatizar, para no fim de tudo, aprender.


Nota: Tendo o trabalho sido desenvolvido por uma equipa considerável, é muito interessante ver como no final surge apresentada a divisão de trabalho efetivo realizado por cada um dos membros da equipa. Talvez seja prática em certos domínios, mas julgo que seria algo a implementar em todas as publicações científicas.

Todos os excertos inglês retirados do artigo:
Dehghani, M., Boghrati, R., Man, K., Hoover, J., Gimbel, S. I., Vaswani, A., Zevin, J. D., Immordino-Yang, M. H., Gordon, A. S., Damasio, A. and Kaplan, J. T. (2017), Decoding the neural representation of story meanings across languages. Hum. Brain Mapp.. doi:10.1002/hbm.23814